domingo, 25 de novembro de 2007

O frasco azul

© Manuel Cardoso


Nunca pude pegar no frasco azul que estava na prateleira de cima do armário fechado à chave. Era diferente de todos os que estavam na mesma fila e, durante muitos anos, foi mais do que um frasco, foi o centro dos mistérios daquela farmácia porque o doutor Alves, grave e rabugento quando eu lhe falava nele, só me advertia:
- Naquele frasco nunca se mexe!
E eu chegava a pensar em Aladinos escondidos porque, de outro modo, para que se havia de querer um frasco em que nunca se mexe?

A farmácia era um mundo maravilhoso. Armários de cerejeira com portas de vidrinhos forravam todas as paredes e serviam de divisória a vários compartimentos. Tinham linhas esguias com movimentos arte nova que lhes acentuavam mistérios e encantos. O balcão ficava ao centro do salão de entrada onde as pessoas eram atendidas. Sobre ele, havia duas balanças: uma de precisão, dentro de uma caixa de vidro, e outra de pratos de latão reluzente onde o ajudante Julinho pesava cartuchos com folhas de sene e outros chás. Todos estes estavam em potes de faiança, em prateleiras à vista, e eu gostava de assistir àquelas andanças de tira o pote, pousa no balcão, tira a tampa, estende um papel, despeja folhas secas. Cada pote com a sua virtude, com a sua cor e, sobretudo, com o seu aroma peculiar.
Que para aromas a sério não havia como as essências. Estas estavam num armário lá dentro, em frasquinhos pequeninos de vidros multicores, e era também lá dentro que, com gestos de uma meticulosidade de exagero, se misturavam, gota-a-gota, à água de rosas ou à água-de-colónia para dar uma apurada fragrância. Ficava no ar um perfume que logo fazia ali o cheiro da casa das tias ou da casa dos primos, segundo as gotas a mais ou a menos que se vertiam disto ou daquilo dentro das garrafinhas quadradas de vidro facetado, de rótulos já gastos e em que murchavam flores amarelas.
De vez em quando, vinham receitas de manipulados mais complicados que o Julinho lia com ar entendido mas para as quais ia chamar o doutor Alves que ou estava à porta a conversar com os amigos ou estava sentado a uma secretária cheia de papéis. Quando eu andava por ali (e eu andava por ali quando o meu pai conversava com o doutor Alves) ia até lá dentro depois do pai dar licença, dizendo:
- Ó Alves, deixe lá o garoto ir lá dentro meter o bedelho – e olhava para mim com manifesta cumplicidade.
E eu ia e ficava fascinado a ver abrir-se o armário onde estava o frasco azul e a tirar-se um pozinho de outro frasco com a ponta de uma espátula, misturá-lo num almofariz de porcelana, juntar gotas de qualquer coisa, misturar depois com manteiga de cacau e meter, cuidadosamente, numa caixinha redonda de papel encerado em cuja tampa se escreviam umas letras e uns números. Ficava sempre tudo no seu lugar e o armário era fechado à chave, uma chave pequenina que o doutor Alves tinha presa à corrente do relógio. O Julinho aparecia então e limpava escrupulosamente a pedra de mármore, as espátulas e tudo o que fora utilizado.
Uma tarde houve uma dessas receitas para aviar. Já estava eu lá dentro e o doutor Alves olhou para o papel, fitou-me um instante e disse-me:
- Chega-te mais pr’além!
Tirou a chave do bolso do colete, esticou a corrente, abriu o armário. Estendeu o braço e levou a mão ao frasco azul, pousando-o com todo o cuidado no tampo de mármore e dele tirou um quase nada de pó, com uma espatulazinha, que sacudiu para um papel colocado numa balança pequena de pratos suspensos. Fechou o frasco, voltou a pô-lo na prateleira, lá em cima, à esquerda de todos, e disse-me:
- Neste frasco nunca se mexe!
Como ficava suspenso daquela frase! Um frasco intocável a não ser para o doutor Alves! Atarracado e muito azul, parecido com o do iodo mas mais forte, boca mais larga, mais pequeno e mais rotundo e misterioso, muito mais misterioso que o do iodo! Daí que tenha sido uma desilusão quando, finda mais uma hora de esperas e de misturas, vi o doutor Alves entregar ao cliente um frasquito com um líquido transparente e recomendar-lhe que devia pôr umas quantas gotas no olho inflamado. Estava à espera de algo mais sensacional, mais raro do que um simples remédio, um colírio para os olhos! Foi a única vez que vi mexer no frasco azul para aviar uma receita. Ainda me atrevi a perguntar o porquê de um frasco tão especial mas a resposta foi vaga demais:
- Não é para meninos! Nunca se mexe naquele frasco!


No fim desse verão fui para um colégio e quando voltei no Natal tive o desapontamento de saber que o doutor Alves morrera e que a farmácia fechara. Solteirão, vieram uns sobrinhos de fora herdar o espólio e o doutor Castro, um advogado que tratara da liquidação da herança, viera a ficar com parte do recheio como forma de pagamento. Pelo Ano Novo já se sabia que vinha para cá um outro doutor a abrir outra farmácia. Teve que ser outra porque o dono da casa onde ficava a antiga não se entendeu com o novo inquilino quanto a valores de arrendamento. Mas quase tudo o que estava naquela passou para a nova. Foi o Julinho quem tratou da mudança e ele foi junto com a mobília, adoptando logo o novo patrão, o doutor Jorge. Correu tudo bem, ainda assisti ao transporte dos armários na carroça do Vila Real antes de partir para as aulas, vi encherem-se as estantes com a frascaria e os apetrechos todos. Quase todos porque o cofre e o armário pequeno lá de dentro ficaram em casa do doutor Castro. Dizia o Julinho que ele queria mais tarde fazer negócio com o novo doutor. Ele achava aquilo mal, não devia ter ficado com aquelas coisas em casa. Afinal, eram da farmácia e os sobrinhos do doutor Alves não lhe tinham já pago o suficiente em dinheiro?

O doutor Castro tinha uma filha, mais velha do que eu mas muito nova também. Todos diziam que era muito bonita, que era mesmo a mais bonita das meninas da vila mas nem por isso tinha pretendentes porque o pai a aferrolhava e a mantinha à distância de calças. Que eu soubesse. Mas ela morreu enquanto eu estive fora nesse trimestre e quando cheguei para férias da Páscoa recebi instruções terminantes em casa para não falar do assunto a ninguém e muito menos não dizer nada à família do doutor Castro. Nem sequer os pêsames. A história estava para mim completa se não fosse a visita à nova farmácia.

A nova farmácia cheirava a drogas mas de um modo diferente da antiga, era um cheiro mais limpo. Havia umas estantes novas em que se alinhavam remédios já prontos, em embalagens coloridas que agora se vendiam muito. O Julinho mostrou-me tudo e até me disse que o novo doutor sabia mais do que o doutor Alves e que estava a aumentar muito a freguesia. Também lhe tinha aumentado o ordenado. Os compartimentos de dentro eram mais simples e ao sítio onde se faziam as preparações e manipulados, o Julinho chamava agora laboratório. Era neste espaço que estava o armário com os frascos fechados à chave. Lá estavam todos com os seus rótulos que eu agora lia bem. Havia nomes de pronúncia engraçada como “estricnina” e mesmo cómicos como “fezes de ouro”. Dois frascos iguais de “cantáridas em pó” e ... não estava lá o frasco azul!
- Então o menino não sabe? Com esse frasco é que se matou a filha do doutor Castro! Eu logo vi que não era frasco que se tivesse em casa!
Fiquei atónito! Então por isso...e o Julinho continuou:
- Aquele frasco era veneno! O maior veneno da farmácia!
- Como é que se chamava?
- Cianeto!
- Cianeto! E então o frasco? Onde é que está?
- O frasco está no tribunal.
Não percebi então muito bem as explicações do Julinho sobre tudo aquilo mas fiquei perfeitamente a entender o ar sério do doutor Alves quando mexia no frasco e afirmava peremptório:
- Neste frasco nunca se mexe!
O tribunal mandou o frasco para a farmácia do hospital e por lá andou durante anos até que ficou vazio e até que o hospital teve obras. Este foi praticamente arrasado e todo o mobiliário, utensílios obsoletos e trastes que sempre aparecem em edifícios antigos andaram aos tombos por arrecadações provisórias, foram diminuindo por delapidações e destruições, dos restos acabou por fazer-se um leilão ao monte.



Dezenas de anos depois, num rebusco no armazém onde se guardava o bric-à-brac, a Joaninha Centeno encontrou meia dúzia de frascos e de potes antigos. Ela é a farmacêutica nova, filha do doutor Jorge, acabou o curso e de refazer a velha farmácia da vila. Com a remodelação tudo mudou. Os armários, o balcão, a luz, tudo diferente. Não há filas de frascos e potes orgulhosamente perfilados em prateleiras arrumadas. Gavetas, com rolamentos suaves, guardam por ordem alfabética centenas de caixas com nomes insípidos lidos com indiferença por um visor de uma máquina de pagamento automático. Daí que a Joaninha quisesse essa meia dúzia de frascos e de potes antigos para decorar, para dar um toque de farmácia à sua loja. No meio deles encontrou o frasco azul. Ficou contente quando o marido, dado a antiguidades, lho gabou. Que era antiquíssimo, da fábrica do Rato ou dos primeiros da Marinha Grande, uma preciosidade. Atarracado, boca larga, tampa esmerilada e já falhosa na pega, bonito, diferente de todos os outros. E quando o vi sozinho e em destaque na prateleira de vidro numa destas tardes em que fui comprar aspirinas, estendi os dedos para lhe pegar. Ouvi de súbito a Joaninha:
- Manel, nesse frasco não se mexe!
Ela contou-me a preciosidade que ali tinha. Que não queria por nada que se partisse. Eu contei-lhe a minha história do frasco. E nunca mexi naquele frasco!

O Kaladrium

© Manuel Cardoso


Em Safres, pequeno lugar agreste encastoado nos penhascos de granito sobre o Tua, brotou uma família de clérigos. Entre todos, o António desconcertava e sobressaía. Logo pela manhã, rezada a hora prima, ar ainda frio e promessa ainda da luz nascente, saía a caminho dos seus pobres e com tal entusiasmo – ele amava o próprio amor! – que se diria antes ter Deus à sua espera. Era essa a sua oração íntima: “um dia, meu Deus, fazei-me ir ter convosco nesta hora!”.
Nesse afã se demorava mas sem faltar a qualquer obrigação, de modo que se murmurava que alguém mais o ajudava a calcorrear as distâncias e a não ser notado nas ausências. Não faltava sequer quem jurasse que, na ponte de Sabrosa, num ápice atravessava aos saltos de ameia em ameia.
De tal modo que, apesar do recôndito do sítio, a ele chegou o olhar arguto de D.João de Sousa, Bispo do Porto e Arcebispo Primaz de Braga, fazendo dele seu pagem e capelão – e abrigando-o assim de uma penumbra de superstição que sobre ele se vinha tecendo.
Serviu o prelado durante anos a fio até que um dia começou a doer-se dos rins. E cegou. A sua resignação fez-se à altura da sua fatalidade. Nem os médicos de Sabrosa nem os de Murça, metidos a caminho de Safres no mister de lhe dar saúde, lhe aliviavam, sequer, as dores.
Desde finados de 1709 que ficou de cama.
O vento e a invernia fustigavam as janelas do quarto e ramalhavam a mata. As neves desse inverno grave de fomes trouxeram os lobos a rondar como agentes dessa morte anunciada e os seus uivos repetidos ouviam-se como um eco dos gemidos aflitos do padre. Pelo Natal ficou sem se mover, dores constantes e mais agudas, de hora a hora pedindo que o mudassem não tanto para alívio mas mais para entreter a morte, prolongar a redenção.
Apesar de cego, das pontadas que lhe atenazavam as costas, das dores que lhe oprimiam o estômago, da incapacidade de se mexer, o seu espírito estava sempre refugiado naquelas que foram as suas horas das horas, nos momentos da luz nascente das manhãs, no tempo da sua felicidade.
Lúcido, acompanhava as orações que se faziam no quarto, dia a dia, semana a semana, recitadas pelos circunstantes que o visitavam de longe, toada monótona de invocações e suspiros. Até que numa terça feira de Fevereiro se apercebeu de um som diferente. E perguntou.
Todos se calaram, atentos a uma toada inaudita num timbre inaudito. Vinha de fora de casa. Abriram uma das janelas. Não chovia mas as árvores pingavam ainda. Num sobreiro, encosta acima, um pássaro branco desconhecido entoava uma melodia suave, apaziguadora.
Pediu os sacramentos. Rezaram-lhe o ofício da agonia. Três dias o pássaro cantou, música penetrante pelos pingos da chuva que caía, escura e persistente. Desde manhã de sexta feira que uma inquietação interior o perturbou mais ainda. A mesma ave cantou mais forte, mais melodiosa, mais arrebatadora. Abriram de novo a portada da janela para se ouvir melhor. Foi então que, a flutuar, o kaladrium passou defronte e, virando o pescoço, fitou os olhos vazios do doente.
Abraçado a um Cristo, sentiu que as dores o estavam a deixar. “Só não sei, meu Deus, por que não me deixastes morrer no princípio de uma manhã, a cair da ponte de Sabrosa ou da de Canaveses, quando ainda mal se vê e o sol desponta onde despontou também a vossa luz”.
Um vento suave lavou o céu sobre o rio, a leste de Safres, e uma luz paradoxal, vinda de nascente, brilhou por instantes nos seus olhos cegos.
- Eu a pensar que ia ser noite e ainda vai ser a aurora!
Nunca mais ninguém viu ou ouviu aquele pássaro branco.

FOGO!

© Manuel Cardoso


- Deixa arder! Deixa arder, que é do Menéres!
- Sai daí que ainda te chamuscas, ó palonço!, deixa arder, que é do Menéres!
O incêndio lavrava feroz na encosta de cá do rio, um mato denso de tojo e de estevas em que pontificavam umas dezenas de sobreiros, tochas gigantes a sumir-se num estralejar mirífico e portentoso que se fundia na noite. Um grupo assistia, cá de longe, encavalitado numa fraga vasta a servir de balcão ao espectáculo, armado de pás, machadas e sachos, sôfrego às labaredas a consumirem, uma a uma, as árvores centenárias. De onde em onde viam-se os pirilampos azuis dos carros de bombeiros vogando no meio do negrume sobreposto no laranja. Um rapaz, camisa meia rasgada por alguma ponta de esteva, chegava ofegante, olhar suado:
- Não se consegue fazer parar! O vento voltou e agora não se segura deste lado!
- Mas tu que andas praí armado em valente? Deixa arder que ninguém te paga para isso! Os bombeiros não andam aí?
- E nós não devemos ajudar?
- Ajudar, a quê? Os sobreiros não são nossos, não fomos nós que chegámos o fogo, não temos nada que ver com isto. O Menéres, que é rico, que venha cá! E também, a ele, não lhe faz diferença.
Um carro dos bombeiros passou mais perto, acertou com os faróis no grupo, assim descoberto no meio do mato como numa ilha de anedota e acelerou a roncar numa reduzida em direcção ao magote. Empoleirados no cimo, agarrados a um canhão de água, dois bombeiros distinguiam-se contra o clarão vermelho que refulgia nos capacetes e nas viseiras levantadas. O carro parou com uma oscilação que levantou poeira.
- Olha! – ouviu-se uma voz do grupo – eu não me importava de ir lá em cima pra que me ajudassem a segurar na mangueira!
- Mas, quem é aquela?!
- É uma bombeira!
- Estes são de Mogadouro! Caramba, andam cá muitos bombeiros!
- Ó menina, ó menina! Não precisa de mais um ajudante?
- Cala-te! Não vês que os outros podem não achar piada?
- Ora, isso que tem? Nós somos mais, não há que ter medo!
Um bombeiro que vinha dentro da cabina esticou a cabeça mais para fora para fugir à confusão das mensagens rádio que algaraviavam e perguntou:
- Daqui há algum caminho para a aldeia?
- Precisam de água para o depósito, é? – perguntou um dos do grupo.
- A gente queria era beber uma cerveja. Já há uma hora que andamos aqui e estamos cheios de sede.
- O caminho é por ali, detrás daquelas carrasqueiras, sempre prá direita.
- Obrigado.
Arrancaram com uma fumarada de gasóleo e poeira.
- Olha-me estes! Então os bombeiros podem beber em serviço?
- Por isso é que depois não são capazes de apagar os incêndios!
- Uma cerveja agora também não ia mal! Ó Artur, vai lá buscar uma grade à Zita. Traz cá para a gente.
- Pagas tú?
- Deixa na conta do Menéres! Hoje o incêndio é por conta dele!
- Olha que ele hoje não mete para aqui as botas!
- E pra quê? Mesmo que isto lhe arda inda vai ganhar a nota se meter um projecto. Mais lhe vale estar quieto.
- Os ricos têm sempre sorte!
- Anda que não é a mim que ele apanha para ir para ali!
- Está descansado que aqui não o vês, pá. Inda se fosse no Verão a medir a pilha da cortiça...
- Uma das pilhas! Praí eu ia! Podia ser que me desse sociedade! Agora práli pró fogo...
- Inda chamuscas as farrepas!
- Quer não que eu não gosto da minha farpela!
O incêndio recrudescia. Ouvia-se o crepitar, aumentava o clarão e o fumo, subia pela encosta o ruído de fritadeira que fazem as estevas e as urzes quando o calor lhes ferve as seivas e lhes rebenta os caules. O barulho mais intenso chamou a atenção do grupo que olhava todo na mesma direcção onde agora aumentava o vermelho, de que o vento levava pedaços céu acima, misturados com cinzas e fumos.
- Ele inda há-de ir ter aos pães dos da Paradinha. Os pobres. Aquilo já não vale muito...
- Se agora estávamos lá abaixo no Carril inda atalhávamos a algum coelho a fugir!
- Ou a algum porco! O ano passado o Zé Monte caçou um a fugir ao fogo de Malta.
- Eu inda comi um cacho desse!
- Deu-lhe um tiro?
- Qual tiro! Atirou-se a ele e cravou-lhe uma faca de mato entre as costelas que o tombou logo!...Isso sim, foi de ser visto!...
- E o porco não o feriu sequer?
- Não era grande e vinha já cansado, meio tonto…
- Ah! Assim está bem. Senão anda que o Zé inda se lixava, que os porcos com aqueles dentes haviam de o deixar pior que um Cristo!
- Com’ó cão do Zé Preto que quando foi da batida ficou co’as tripas de fora!
- E inda se safou! Eu quando os vi dar aquele dinheiro ao veterinário inda lho disse “mas pra que ides gastar? O cão vai morrer decerto! Deixai-o mas é!” E inda se safou, o lafrúzio!
Mais dois homens vinham a pé, ar cansado e roçadoura nas mãos, ignorando o grupo que se calou ao vê-los. Seguiram caminho adiante, meio curvados do esforço e dos anos que já tinham. Passado o resquício de respeito, o magote recuperou o pio.
- Bem, pessoal, vamo-nos mas é para a aldeia que são horas. Assim como assim inda podemos ver o programa das garinas na SIC.
- E elas são boas! Na sexta passada aquilo era material...
- Calai-vos lá! Material do melhor era o que Talas trazia há dias no BM quando parou no Feira Nova. Aquilo sim!
Assobios.
- Pois o que tu querias era ter uma mula dessas, ó Chamusco! Olha que dá muita despesa!
- Mas também dá rendimento! E mais que a minha a lavrar por aí!
- Ai isso é! Rende mais essa numa hora no bem-bom do que a tua à semana a lavrar sulcos!
- Mas também a minha contenta-se com feno e erva enquanto que as outras...
- Caramba, desgraçam um homem! Olha o Zé Ruivo: foi-se a elas, andava por lá uma dessas de alto sustento que era de Braga...
- Era brasileira!
- Não era nada, era dessas russas ou romenas...
- Então foi outra porque esta era de Braga...
- Não era! Porque enteimas? Era brasileira!
- Então não era aquela que aparecia no Duque...
- Não, pá! Essa era das de Bragança, do Abano! Esta, a do Zé Ruivo, era de Braga...
- Caramba que és teimoso! Era brasileira!
- Mas tu viste-a, foi?
- Não só a vi como ainda lhe botei as mãos...
- Aaaah! Então tu também ajudaste à festa do desgraçado!
- A mim lixou-me duzentos contos! Em quinze dias!
- Pois o Zé ficou sem mais de mil! Teve que vender o lameiro das Lagas.
- E ficou sem a mulher que lhe fugiu com os filhos para casa da mãe!
- Quanto a isso não sei se foi mal se foi bem porque com um pau de virar tripas como aquela rabujona ele não ia longe!
Gargalhadas.
- Eh! Pá, olhai lá além ao fundo: é um carro a arder?
- Não, não. É o sobreiro da Mesa que acabou de tombar e está a arder.
- Mas está lá mais qualquer coisa...
- Ai está, está...
- Ah! Já sei! É o carreto do teu tio que estava debaixo.
- Ena, pois é! E ainda este ano lhe tinha posto tábuas novas e uma folha de zinco!
- Já não volta a dormir lá com a Marquinhas!
- Vamos embora ou não? Já tenho a garganta seca.
- Vamos! Pode ser que ainda lá estejam as bombeiras de Mogadouro!
Saltaram da fraga abaixo, dois dos que estavam mais na beira. Entretanto, uma luz de faróis varreu o grupo e quando chegou mais perto, a vir do caminho da aldeia e a roçar pelas carrascadas, percebeu-se que era um Range Rover.
- Altamente! Quem é que mete para aqui um jeep destes?, disse um dos que ainda estavam em cima.
Abriu-se o vidro do condutor e uma pronúncia só levemente à Porto, saída debaixo de um boné de padrão inglês, perguntou:
- Se faz favor dizem-me, para ir para a clareira dos Quatro Caminhos é por aqui, não é?
- É sim, sempre para baixo até ao rio e depois um desvio à direita ao pé de uma fraga grande.
- Estão para lá os bombeiros – acrescentou outro -, vai ver logo as luzes.
- Estão a bombar água de um fundão que há ali...
- Eu conheço esse sítio, só não tinha a certeza de se poder lá chegar por aqui. E vocês não vão lá dar uma ajuda?
- Nós?!
- Sim, davam jeito. Está-se a tentar evitar que o fogo passe para os centeios da Paradinha.
- Bem... mas daqui lá...
- Entrem aí para trás. Apertados, cabem todos!
Foram todos, arrumadas as pás, machados e sachos na bagageira, os seis amontoados no banco de trás, emudecidos, a sentir o perfume de uma mulher nova que ia ao lado do condutor. O rádio tocava o Oceano Pacífico da RFM. Houve um que se atreveu:
- O senhor é de Macedo?
- Nem por isso. Sou do Romeu, da Casa Menéres.

textos transferidos

Por uma questão de coerência e uniformidade, vou transferir para adriveinmycountry alguns textos que se encontram também no blog d'O Sol, afim de estarem de algum modo compreendidos pelo mesmo conjunto espacial, tal como o estiveram na concepção. Não o vou fazer com os que foram repescados de textos publicados e que trunquei propositadamente aqui e ali conforme fui necessitando naquele espaço.
Aliás, vou deixar o blog d'O Sol para meros apontamentos ou alguma intervenção propositada - o que não faz com que sejam menos importantes! Às vezes um apontamento é tudo!
Estarão entre esses trasladados o Fogo!, Os Foguetes, O Kaladrium, etc., todos os que têm um cunho mais familiar ou conterrâneo.
A ideia é ir revendo-os e daí que, ao longo do tempo, possam vir a sofrer algumas modificações que as sucessivas revisitações venham a fazer...

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Ontem fui à Travessa da Espera

Anteontem e ontem estive em Lisboa a tratar de assuntos diversos relacionados com uma das minhas actividades e, mesmo em cima da hora de me vir embora, passei pelo Bairro Alto onde me aguardava o meu filho Vicente por causa de uma mudança de móveis. Uns cunhados meus foram viver para Nova Iorque e deixaram vago um terceiro andar/águas furtadas na Travessa da Espera. Ficam num edifício com história, familiar e não só, e no qual a Mariana e eu, no rés-do-chão, passámos os dois primeiros anos depois de casarmos. Chega-se ao dito terceiro andar por umas escadas que existem no miolo do prédio, sobre as quais uma enorme clarabóia deixa cair luz a jorros. Já junto ao telhado, todos os aposentos são cheios de luz, também, com janelas grandes, mirantes sobre as telhas e vidraças de trapeira. Havia sol e, dentro, todos os aposentos estavam e estão com aquele ar de abandono, falhos de móveis, trastes espalhados, restos de papelada, algumas estantes e armários vazios. Na entrada há ainda o espaço dos bilhetes de recados com alguns punaises a prender folhinhas e aqui e ali ficou nas paredes esta ou aquela moldura, alguns bibelots pelo chão, bric-à-brac por todo o lado, abandonado deste lado do Atlântico. E livros.
Umas poucas dezenas de livros ficaram numa pilha e nuns caixotes de cartão. A Giulia e o Pedro tinham dito que os poderíamos levar. Peguei nuns quantos e trouxe-os. Dois deles, em tamanho dos mais pequenos, chamaram-me a atenção pela capa e há um que me tem feito hoje companhia. Já o folheei e comecei a ler durante a hora de um teste de anatomia que há bocado dei aos alunos. Chama-se Family and Friends, é de uma Anita Brookner, que desconhecia até ontem,e é daqueles que apetece ler de um ápice, que se tem pena de o não ter escrito e que só falta ser comestível: na capa um retrato de Klimt, daqueles que o génio dele faz das mulheres seres etéreos, reais ainda, pintados com cores que são tudo menos cores, são só sensibilidade e riqueza interior. A capa é um detalhe do retrato de Gertha Felsövanyi, pintado em 1902 e que está numa colecção privada da Galeria Welz, de Salzburgo. Ainda por cima, dos de bolso e guardado meses e meses, senão anos, sem ser aberto, tem aquele cheirinho característico dos livros ingleses de bolso antes dos químicos do papel reciclado.
Estou agora com imensa vontade de ler o livro todo (187 páginas), de saber quem é Sofka e o que irá acontecer a Frederick, a Alfred, a Mireille e a Babette (Mimi e Betty) e de saber onde é que a autora desencantou a foto com que começa o livro, uma foto que não vemos mas de cuja descrição parte todo o enredo.
É que é um gosto enorme observar fotos, entrar dentro delas, descobrir e cumprimentar as pessoas que lá estão, viver nas situações, experimentar as alegrias e dramas que chegam através dos olhares. Fotografias de sépia em que pego ou que vejo em computador e que me olham de uma forma inexistente mas, à sua maneira, também etéria, e me interpelam num silêncio e num olhar arrebatador como o olhar sensível e cheio de riqueza interior de um retrato de Klimt. Não me canso de olhar para a Gertha Felsövanyi, nunca me canso de um destes olhares de Klimt! Como será a Anita Brookner?
Eu ontem não sabia, ao andar com o Vicente, aposento a aposento, a imaginar como é que a empresa transportadora irá desmontar e trazer as estantes e cómodas e mesas que vamos trazer para aqui, que hoje iria estar com um puzzlle feito de olhares e a ler um livro escrito a partir de uma foto! Vou ter de mandar um e-mail à Giulia e ao Pedro! A dizer obrigado!

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

um dia de inverno

Tem sido um dia de Inverno. O primeiro, este ano. Chuva, vento e frio. Até agora tínhamos tido um Outono de esplendor marroquino: frio à noite com estrelas, calor de dia de sol, céu límpido até onde o horizonte chega. Hoje mudou tudo. Ficou afastada a que já se temia ser uma seca. Estamos a passar os meados de Novembro, hoje já são 19, verdade seja.
Tem sido um dia de neura. Contratempos logo de manhã, mais contratempos durante a manhã e mais ainda à tarde. Os da manhã foram de serviço, burocracias que me puseram especado na secretária a resolver problemas e me alteraram a agenda, já de si alterada por ter tido que mudar as aulas que deveria dar hoje, e me impediram de estar em representação numa visita de estudo sobre castanheiros, do Centro de Investigação de Montanha, do IPB. À tarde os contratempos foram mais chegados e mais difíceis: primeiro, o Vasco: caiu na escola ao escorregar com uma das canadianas com que anda por ter partido o joelho esquerdo. Fui buscá-lo, chovia a potes e estava abrigado num toldo de uma loja da rua da Chenop. Trouxe-o para casa, já se vê. Tinha acabado de acender a lareira quando me ligou o Carlos Mendes a dizer que um carro da Terras Quentes se tinha estampado na curva à entrada para o paredão da barragem do Azibo e que a Raquel e o João se tinham magoado. Falei entretanto com a Lília, que estava a caminho do hospital de Macedo, para saber exactamente o que se passava. Já me ligou do de Bragança (agora os doentes são obrigados a passear pelo IP4, que não é “nada” perigoso, para serem atendidos nas diversas valências de que precisam…) onde está de serviço o dr. Mourão (mas afinal quem a tratou foi o meu compadre e amigo dr. Afonso Ruano, nota a posteriori) que a vai tratar a, pelo menos, uma fractura da clavícula. O João, que ia a conduzir o automóvel, fez um curativozito e nada mais, por enquanto. Ao que parece, terão entrado na curva em excesso de velocidade e aquela curva não é para brincadeiras: o piso é em paralelo e eu mesmo já lá andei aos baldões mas sem consequências, há um ano ou dois atrás. E o que iam eles fazer hoje, num dia de chuva, naquela estrada? Pois iam a Limãos, onde andam a substituir o soalho da igreja e onde seria e será necessário inspeccionar o sub-pavimento, que está cheio de corpos enterrados, para averiguar do interesse arqueológico da questão.
Agora estou no sótão, vou corrigir testes, actualizar e-mails – e vou lá abaixo buscar uma cerveja!
Está vento, ouve-se sobre o telhado, em rajadas. Aguardo que me tragam cá a casa um cão, para tratar. Assim que tiver tudo resolvido volto aqui, para escrever. Até daqui a uns dias!

terça-feira, 13 de novembro de 2007

O PEDIDO DE CASAMENTO


© Manuel Cardoso


Ensolarado e com calor, o doutor Carvalho subiu suavemente as escadas de cantaria da casa e disse a uma criada que o anunciasse ao senhor morgado. Vinha pedir a mão de uma das filhas de Sua Excelência. A conversa passava-se no salão grande e apanhava o morgado desprevenido.
- Oh, senhor doutor Carvalho, tenho que ouvir o que pensa a minha Josefa. Ó Josefa, ó Josefa!
Uma das criadas apareceu.
- O senhor morgado chamou?
- Chamei pela senhora. Onde está?
- A senhora foi só lá abaixo. Eu chamo-a já.
- Chama e diz-lhe que venha que está aqui o senhor doutor Carvalho. E arranja-nos aí qualquer coisa... o senhor doutor toma um chá frio com rodelas de limão? Talvez uma água acidulada... Eu também. Olha! Serve aí na sala de dentro que está mais fresco!
A Josefa chegou sem estranhar a presença do doutor apesar de ser a primeira vez que vinha ali a casa sem ser numa tarde de procissão e festa.
- Olhe, está aqui o senhor doutor Carvalho a pedir uma das nossas filhas para casar com o doutor Sousa.
- Qual delas?
- Ora, senhora D. Josefa, eu não me atrevo a escolher com qual das duas. Acredito que sendo ambas filhas e educadas por vossas excelências...
- Quanto a isso pode crer. E o meu marido? Que acha?
- Bem, eu, desde que a senhora esteja de acordo…
- Pois devo estar. E então, se tem que ser que seja com a mais velha, com a Cândida.
- Fico penhoradíssimo a vossas excelências!...
- Eu vou chamá-las.
Vieram como quem vem para fazer companhia ao chá e, depois dos cumprimentos e de se sentarem à mesa, a D.Josefa deu-lhes a novidade:
- O senhor doutor Sousa mandou fazer um pedido às meninas pelo senhor doutor Carvalho e o pai e eu achamos que seja a menina, Cândida. Vamos ter que pensar na resposta a dar... daqui a uns dias acertamos um prazo, senhor doutor Carvalho. Depois mandamos notícias.
Assim sem mais despediram o doutor Carvalho mas não sem antes este ter agradecido o chá com limão:
- Com este calor, sabe divinamente! Ainda por cima bebo-o como se fosse um brinde de bom augúrio ao futuro do meu querido amigo José e, evidentemente, da gentilíssima menina senhora dona Cândida!...
A Cândida nem piou durante o tempo todo. Apenas se exprimia com o olhar, surpreendidíssimo pelo inesperado.
- Ora, respondeu sacudida a D.Josefa, deixe-se dessas retóricas. Guardamos isso para um brinde a sério quando o José cá vier a casa... ele chama-se José Felizardo, não é?
- E se a senhora D.Josefa me permite, felizardo sê-lo-á mais ainda quando lhe der a boa nova...
- Não, não, doutor Carvalho! As novas dá-las-emos nós daqui a uns dias. Digamos que não dizemos que não. Aqui o senhor morgado e eu vamos acertar uns detalhes e depois mandamos recado.
Os detalhes demoraram bastante. O morgado escrevera a pedir notícias certas sobre o doutor Sousa e demais parentela. Recebera informações de Argemil e de S.Pedro de Padrela mas tardavam de Lisboa. Dizia-se que havia aí qualquer coisa e que o dr. Sousa até mudara de nome...
Tantas delongas enervavam o José Felizardo que, já desesperado, resolveu dirigir-se por escrito ao solar:

Ilustríssimo Senhor Morgado

Por intervenção do nosso amigo comum o Dr. Carvalho mandei pedir a V.Sª. a mão de sua filha mais velha por julgar que serei feliz realizando o meu casamento com ella.
Respondeu-me o medianeiro que V.Sª. annuía ao meu pedido; mas parece que tem havido defficuldades suscitadas depois dessa annuencia e que dahi tem resultado uma quase incerteza, da qual preciso sair.
Dão-se circunstâncias pelas quais necessito tomar com a maior brevidade uma resolução definitiva, e por isso nesta mesma data me dirijo ao nosso Revº. Abbade pedindo-lhe que me trate deste negocio com a seriedade que o caracteriso, e que me dê a resposta que preciso por toda esta semana sem falta. - No entanto entendi que me devia dirigir tambem a V.Sª. por este meio para lhe significar que me julgarei summamente feliz se V.Sª. me quizer dar a honra de entrar no número da sua família, e que muito desprazer sentirei se isso não chegar a realizar-se. Realize-se porem ou não, (o que, como já disse é necessario decidir no prazo indicado, ficando eu certo que no caso de se me não dar uma resposta é o mesmo que em nada se tivesse fallado ), digo faça-se ou não, eu sou e serei

De V.Sª.
Attº.D.or. e Ob.mo. Am.º e C.

Macedo, 17 de Julho de 1870

José Felizardo Rodrigues de Souza


O morgado releu a carta, pousou-a na mesa e ficou a pensar, olhando pela sacada as hortas onde uma data de gente se afadigava na rega, como iria poder apressar o assunto. De facto, o dr.Carvalho pedira uma das duas filhas em casamento. A Josefa sentenciou logo que seria a Cândida. O José soube-o logo, daí agora carregar na tecla. Porquê hesitar? Estavam esclarecidos os antecedentes do homem: um tio padre pagara-lhe os estudos em teologia e ele afinal apareceu bacharel em direito. Foi esperto. O país precisava mais de advogados, que tinha a menos, do que de padres, que tinha a mais. Mesmo as vozes sobre Lisboa, soubera-se: mudara de nome ao fazer o Crisma: chamava-se Felizardo José e passara a chamar-se José Felizardo. Modas.
Ainda antes da ceia falou no assunto à senhora.
- Temos que dar uma resposta, Josefa. Disse que era a Cândida, será a Cândida. Porquê agora tentar que seja a Ana Maria?
- Se o meu marido pensa assim, pois que seja. Chama-se o senhor Reitor e ele que venha cá com o advogado.
E vieram. Encontraram-se no salão grande da entrada os Morgados, o Senhor Abade, Reitor de Macedo e irmão dela e os drs., o José e o Carvalho. Em cima da mesa do centro, sobre uma salva de prata, estavam uma garrafa de cristal em balão e um velho cálice de vidro grosso da fábrica do Rato. Conversas feitas, o Morgado encheu o cálice de aguardente:
- Pois que então seja à saúde da nossa filha e do senhor doutor que lhe vai ser o marido!
Deu um golo e estendeu-o à D.Josefa. A seguir foi cheio de novo e desta vez foi o Abade Tomás Aquino a fazer a saúde. Bebeu em dois tragos. Cheio outra vez, coube ao pretendente fazer um agradecimento e saudar os donos da casa e a menina Cândida.


Tiveram um casamento feliz mas com um desfecho trágico. Ainda hoje existe o cálice do pedido, preciosamente guardado no armário dos vidros da sala de jantar. Na foto, o casal em 1872.

domingo, 4 de novembro de 2007

Latães

©Manuel Cardoso

A aldeia é pequena mas tem um nome erudito. Virá de “latanes”, em latim, aquilo que está escondido.

Já foi há uns anos. Manhã de novena de bofarra (diz-se por aqui que a bofarra, o nevoeiro, quando vem com o frio do inverno, dura uma novena!), tinha ido à aldeia tratar de um animal qualquer. Não me lembro qual, porque o que se passou a seguir apagou-me essa memória. Nesse tempo, eu deslocava-me de jeep nas deambulações pelas aldeias, um UMM Alter II cheio de audácia, capaz de façanhas de que tenho saudades. Como tivesse que seguir para Corujas, aldeia vizinha, e por alcatrão fosse uma grande volta, perguntei como poderia atravessar pela serra, poupando caminho. Lá me explicaram. Mas, ou porque não visse a derivação com a bruma, de tão densa que estava, ou porque me parecesse mais batido o caminho que subia – quer-me parecer hoje que uma providência feliz, de qual trasgo benfazejo!, me dirigiu então – fui seguindo por umas rodeiras, no meio de giestas, que em breve esmoreceram a pista e se apagaram. Contudo, a luz estava mais forte no meio do cinzentão do dia e eu segui, sempre a subir, tombando as plantas com uma aceleração a baixa velocidade, explorando o terreno.
De repente, momento de revelação e plenitude!, dissipou-se a névoa e fiquei num alto, luminoso e fantástico!
Um mar de nevoeiro estendia-se sob um sol brilhante, céu azul puro, serras ao longe, quilómetros e quilómetros ao longe!, como se fossem ilhas: Bornes, Santa Comba, Marão, Alvão e Padrela; de Espanha, S. Mamede, os Montes de León com La Cabrera – a nossa Sanábria – escondidos atrás da Nogueira. Tudo nítido, numa nitidez absoluta. Parei o jeep. Saí.
Ar frio. Luz, uma luz intensa, uma luz imensa. Entre mim e as serras, o nevoeiro, branco, fantasticamente branco e a mover-se, como num filme. Uma imensidão mesmo. Só, ali, numa nesga de espaço, terreno breve de restolhada de centeio, um carvalho e um sobreiro a pontificar neste ponto mais alto da Serra de Ala, Alturas de Latães, como confidentes de um episódio que era partilhado comigo. Uma emoção tão grande como a paisagem. Tudo inesperado. Porquê naquele dia e ali só eu entre a terra e o céu? Talvez do frio que corria numa aragem cheia de emoção, limpei duas lágrimas. Que lugar tão bom para fazer uma casa!
Passaram-se anos.
Vivíamos na baixa de Macedo, no rés-do-chão da casa de família, lugar aconchegado mas a antítese: pouca luz, horizonte a morrer logo a metros, no muro do quintal e nos telhados do velho palheiro e na antipatia dos telhados dos vizinhos.
Numa ida à Escócia, lugar maravilhoso que para sempre me ficará memorável, tinha podido recordar-me vezes sem conta daquele meu episódio trasmontano. Havia muitos cenários parecidos, era quase o mesmo que Latães mas com castelos! Semanas depois de regressarmos, como sequela de um estiranço em Aberdeen em que andámos quase oito quilómetros a pé para descobrir onde ficava a velha catedral e a visitar, a Mariana adoeceu com uma pneumonia. Que se veio a transformar numa pneumonia de repetição. O médico aconselhou apanhar sol, muito sol. Lembrei-me então das fragilidades dos pulmões dos gémeos prematuros, da necessidade do sol, senti vontade de mudarmos de casa. Lembrei-me do terreno de Latães.
Para aqui viemos. Construir a casa foi o cumprimento de um desígnio. Pagá-la-ei ao longo da vida. Um fardo que terei para sempre? Talvez antes um sonho que viverei para sempre, um sonho que começou na manhã em que atravessei de jeep de Latães para Corujas pela primeira vez.
Tem estado soberbo o horizonte, este Outono. Vê-se tudo até ao fundo, como dessa vez. Ainda hoje estive a ver o pôr-do-sol, alguns aviões a riscar o céu – que a essa hora fica tingido de um violeta que só aqui! – e a respirar fundo. Os tons estão verdes, demasiado verdes ainda, folhas que teimam em não cair e de amarelos atrasados. Há mesmo algumas flores! Estarei a viver do lado de lá / de cá do espelho?????

terça-feira, 30 de outubro de 2007

O VINHO DAS ARCAS

© Manuel Cardoso

Nas noites de inverno nas aldeias da Terra Fria de Trás-os-Montes, desde tempos imemoriais que se afugenta o gelo com um copo de um vinho excelente que acalenta a mais necessitada das almas. É um vinho que surpreende. Um forasteiro desprevenido, dado o primeiro golo e sentido o sabor forte e aromático, imediatamente é assaltado por uma dúvida evidente: se nestas aldeias altas e frias as vinhas não passam de pequeníssimas manchas nalguma encosta mais soalheira e mal dão uns cachos de uva miúda e agridoce na maioria dos anos, como é possível um vinho destes, graduado, rescendente? “Comprado!”. Mas o dono da casa exprime, orgulhoso:
- Esse foi pisado na nossa casa!
- Ah, tem vinhas...
- Não, não. Compramos as uvas.
Ainda hoje, nas aldeias da Serra de Nogueira se mantém este costume de comprar as uvas lá em baixo, em zonas da Terra Quente, e trazê-las para cima para fazer o vinho.

Ora, conta uma lenda antiga que, certa vez, levado um pipo com as primícias desse ano para Braga, ao Arcebispo, então senhor destas terras do leste do seu território, este terá perguntado:
- De onde são as uvas que tão bom vinho dão?
- De Arcas e Nozelos, de Vilarinho de Agrochão!

Esta história é curiosa não só por enaltecer as qualidades das uvas de que falamos mas porque delimita uma área geográfica que corresponde ao que foi o extinto e velhíssimo concelho de Nozelos e que hoje está repartido pelas três freguesias de Arcas, Vilarinho do Monte e Vilarinho de Agrochão. Os terrenos destas três evoluem em encostas abruptas sobre o rio de Macedo e a ribeira de Ferreira, sendo que ambos confluem no vale de Nozelos e que constituem um microclima onde amadurecem as uvas que tão bom vinho dão.

São antiquíssimas as referências ao néctar deste lugar. Já o foral de Agrochão, dado por D.Dinis em 5 de Julho de 1288, manda cobrar como imposto a quarta parte do vinho, medido pela medida de Nozelos. Mais tarde, D.João II, doa a João Teixeira de Macedo, alcaide mor de Montalegre, a 30 de Maio de 1484, as rendas de pão, vinho e aves da terra de Macedo e Nozelos com as aldeias de Arcas, Vilarinho do Monte e Vilarinho de Agrochão.

Ora, no centro da área deste antigo concelho de Nozelos há um planalto breve que tem a extensão necessária para nele se esticar uma aldeia ao sol, a meio da qual se ergue, orgulhoso, o Solar das Arcas, dos Pessanhas. Orgulhoso de quê? Se mais não tivesse de quê, bastar-lhe-ia o vinho, o tal bom vinho que as uvas dão!

O microclima das Arcas fica entre duas regiões vinícolas célebres: o Douro e Vinhais. Se da primeira é supérfluo qualquer comentário, da segunda há que dizer algo. O nome já diz ser terra de vinhedos, vinhal, vinhais. Tradicionalmente, desde o Império Romano segundo alguns autores, foi essa a sua riqueza e, durante séculos, forneceu a zona interior e meridional da Galiza de vinho acabado e mandava aguardente para o Douro e para o Porto. Um geógrafo espanhol, Mendez da Silva, escrevia no tempo da União Ibérica: “es un valle de muchas viñas, donde se origina el nombre”. Um outro doutor coevo, Francisco de Monçon, que, sendo madrileno, viveu na corte de Portugal durante o século XVI, dizia que os portugueses se podiam gabar de ter vinhos que competiam com Alemães e Flamengos e cuja qualidade os suplantava mesmo, nomeadamente os de “Vinhais e outros”.

As crises do oídio e da filoxera arruinaram as vinhas desta região e, ao contrário das do Douro, nunca mais se recompuseram totalmente e perderam as posições de mercado. Estes vinhedos eram paredes-meias com os das Arcas e hoje, debruçados sobre o mapa, não sabemos bem se estas eram uma continuação daqueles e uma sua sobrevivência ou um prenúncio do Douro a cuja sorte viriam a estar ligados.

O solar das Arcas teve uma garrafeira fabulosa. Foi constituída e apurada ao longo do século XIX por Manuel de Almeida Pessanha, grande lavrador, viajado em França e introdutor de inovações, Governador Civil de Bragança e Par do Reino, e mais tarde continuada pelo seu genro, Francisco de Assis Pereira do Lago, Visconde das Arcas. Sucessivas partilhas e outros descaminhos foram-na minguando à formiga. Restam hoje algumas raras garrafas, das anteriores às crises do oídio e da filoxera que dizimaram as antigas cepas. O autor destas linhas pode orgulhar-se de, numa tarde, há uma trintena de anos, no jardim solarengo dos Cortiços, ter provado, apreciado e ouvido uma explicação com devoção sentida, de um vinho seco, decantado e arejado de uma garrafa fosca, colada com um rótulo de uma cercadura azul e manchado, muito manchado e bolorento mas onde se distinguia perfeitamente numa caligrafia castanha escrita à pena: ARCAS 1832 !

A crise do oídio que começou em meados do século XIX deu uma machadada grave nos vetustos vinhedos nacionais mas não fez esmorecer a energia empreendedora da casa das Arcas que leva a fama dos seus produtos até Lisboa a tal ponto que Garcia de Lima, na sessão da Câmara de Deputados de 8 de Junho de 1863, afirma que os vinhos brancos das Arcas são tão bons como os do Douro. Nas Cortes bebia-se vinho das Arcas. Na década seguinte esta fama é justamente reconhecida além fronteiras e, mesmo para lá do Atlântico, os vinhos são premiados nos Estados Unidos da América no concurso internacional de Filadélfia em 1876.

A filoxera devastou todo o país a partir da década de oitenta mas foi num ápice que o Visconde, perspicaz a prever a situação e conhecedor dos métodos modernos de cultivo, fez reconverter as vinhas, possibilitando mesmo que, durante anos, todo o termo das Arcas estivesse integrado na região produtora de mostos de vinho do Porto. Replantou e soube manter os adagues ao abrigo das pragas. Não houve mortórios desolados no termo das Arcas!

E hoje, ao percorrer-se este canto de Trás-os-Montes em que a paisagem apresenta extensões de abandono recente, de incêndios revoltantes ou de matos silvestres onde crescem a preguiça e a crise económica, deparamos com um pequeno microclima de vistas insólitas, matas ordenadas ao pé de vinhedos lavrados, encostas abruptas trabalhadas com teimosia, gentes cavando um chão avaro mas que lhes dá, não o sustento porque agora já se não vive disso, mas um orgulho especial, orgulho que ali foi plantado imemorialmente, apurado pelos Pessanhas e que se materializa no tal vinho surpreendente, de aroma forte e agradável e que inevitavelmente coloca na boca de quem o beba:

- De onde são as uvas que tão bons vinhos dão?
- Das Arcas e Nozelos, de Vilarinho de Agrochão!


Bibliografia:
1.Alves, Francisco Manuel, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança.
2.Pires, Armando Valfredo, O Concelho de Macedo de Cavaleiros.
3.Oliveira, Artur Águedo de, O surpreendente testemunho do Doctor Francisco de Monçon 1544
4.Costa, António Luís Pinto da, A questão do Alto Douro e a exportação de Vinhos do Porto (1865-1909) in Brigantia vol.X nº3
5.Ilustração Portuguesa
6.Gazeta das Aldeias

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

O rapto da Tia Dores

© Manuel Cardoso

(As cenas passaram-se com o século XIX já a bem mais de meio.)

Uma manhã de caça a salto e extraviada arrastou o José Manuel desde Alvites até ao Brinço. As perdizes tinham saído de feição, tal como o compadre as prometera, a esvoaçar nas restolhadas, à frente do focinho dos perdigueiros. Parecia que adivinhavam o caminho. Uma vez aqui, outra vez ali, o bando passava sobre os freixos do ribeiro, atravessava o valezito para além, subia pela encosta a desaparecer nos adagues de uma vinha amarela.
- Ó compadre, de quem é esta vinha?
- Isto já é do casal do senhor Abade...
- Então tem um grande casal!
- Grande?! Tem muitas terras aqui, olivais em Alvites, em Vilarinho do Monte, em Vale de Lagoa e na Açoreira, sortes no Vimieiro e na Carrapatinha, lameiros em Ala e em Meles...
- Caramba!
- Tanto como ele só o casal grande, de Ala! O lagar do Brinço só para a casa trabalha ao mês!
Um tiro, logo mais outro, ele mesmo descarregou a espingarda. Com o segundo caiu uma, das do bando mais próximo. Duas tinham ficado mais longe, os cães farejavam-nas numas silvas encostadas a um muro alto. Era o muro da Tapada, uma propriedade dos Lopes obrigatoriamente disputada em partilhas e onde um rebanho pastava os galhos de uma fila de amendoeiras podadas para dar a folha aos animais. Um dos perdigueiros trouxe mais uma perdiz. O José Manuel levava já um cinto bem composto, uma meia dúzia delas e uma lebre que lhe tinha saltado quando saíra duma leira pousada e entrara numa restolha. Estava feita a manhã.
Entraram no Brinço com garbo. O pequeno grupo dava nas vistas: ele com botas e chapéu suíço, calças à montador e cartucheira de cabedal engraxado onde reluziam as fivelas polidas e as cápsulas de latão dos cartuchos St.Étienne, o compadre com o seu chapéu da América, uma das abas revirada, camisa branca de folhos com o colete de caça e cartucheira à bandoleira, como no tempo dos Cabrais em que se bandeava com os Pessanhas. Dois moços, colete lavado e camisas de manga enfonada, levavam-lhes as espingardas e cuidavam dos cães, cauda espetada e focinho à procura das cadelas da terra.
A aldeia preguiçava numa manhã serena. Não se via ninguém. As casas de xisto sombrio e telhas ferrugem permaneciam mudas e quedas. Apenas se ouvia o chiar longínquo de uns carros de bois. Foram andando e deram a volta defronte da Casa do Passadiço, como quem não quer a coisa. Nada. As janelas estavam abertas mas nem uma renda buliu. Estranho. A menina estava avisada. Ele mandara um bilhete, tinha sido claríssimo a combinar aquele encontro casual...
- O compadre tem a certeza...
- Absoluta!
Na rua à esquerda da Igreja estava, ao fundo, a fachada caiada da casa dos senhores e, mais perto, a casa ocre da taberna do Chico com a sua varanda de madeira pintada de zarcão com linhaça. Encaminharam-se para lá. De umas pipas lavadas de fresco, que secavam à sombra de um chorão, espairava-se um cheiro meio a mosto e meio a vinho vinagre.
- Chico, ó Chico!
- Lá vai! – ouviu-se uma voz a vir dos fundos e logo acudiu, a limpar as mãos a um pano, olhar semicerrado de vir para a claridade.
- Olha! Mas é o compadre Zé e o menino Zé Manuel!? Ena, e trazem cá uns cintos!
- Já vimos desde Alvites! Era para ficarmos por lá mas atrás de um bando fomo-nos chegando para aqui...
- E chegam-se muito bem! Eu já os atendo. Rebentou-se-me para ali uma pipa e tenho andado nestes trabalhos mas já os atendo... ó Maria! Ó Maria!
Ouviu-se um “que é l’á?” sumido.
- Anda cá e põe ali um pano naquela mesa. É só um instante, amigos. Isto num esfregante fica tudo nos trinques!
- Tenha calma, homem, temos tempo.
- Não se vê ninguém na aldeia... estão todos a dormir?
- Estão para Meles. Há lá um enterro, da Ti Antónia, já velhinha, e como ainda tem por aí uns primos e parentes, lá foram. Os carros ainda saíram há pouco.
- Então, e foram todos, foi toda a gente?
O Chico hesitou por momentos na resposta.
- Nem todos foram para o enterro, está bem de ver. Daí da casa nem foi ninguém… da do Passadiço também não foram, quero dizer, o senhor Padre foi, tinha de ir para os ofícios, mas o pessoal ficou por aí, a casa até está aberta…
- Então, e a menina Maria das Dores? Ficou cá?
- Eu disso não sei bem, quero dizer, sei que não está cá.
- Ai não está cá?
- Não está.
- Então, onde está?
- Então, compadre Zé, diga-me cá: não foi só pelas perdizes que voam que vieram até aqui! Sempre é verdade o que se diz pela terra. Aqui o menino Zé Manuel é que quer fazer de perdigão... e logo à menina Maria das Dores!
- Ó menino! O que vai arranjar! – ouviu-se a voz da Maria, atentíssima à conversa e incapaz de suster o desabafo.
- Cala-te, mulher! Que é que tens com isso? O menino não leve a mal... as mulheres gostam sempre de meter a colherada. Mas diga-me: é sério? O senhor Morgado e a sua mãezinha, a senhora dona Josefa, dão licença? Que eu não tenho nada que ver...
A mulher entrou outra vez na conversa:
- O senhor Abade ainda vai consentir, vai ver. Ora, famílias tão ilustres...
- Então, se a menina Maria das Dores não está... então está aonde?
- Bem, saíram logo cedo. Parece que foram pô-la em Fornos, nas Oblatas. Diz que é para estudar, para aprender...
Nas freiras! Tinham-na ido por nas freiras e logo em Fornos de Ledra, aldeia pedregosa e pobre, longe de tudo! Estudar, estudar! Para isso que a pusessem em Braga ou no Porto! Agora ali, sumida na tacanhez poeirenta de uma aldeola, de umas paredes de pedra com janelas sem vistas para lado nenhum que não fossem mais pedras e umas oliveiras que se espremiam a custo para dar um azeite turvo!



O Abade de Ala era fulminante nos discursos. E intolerante nas opiniões. Arrebatava um mundo numa hora de pregação – e não se comovia nem pestanejava pelos que não convencia. Gostava de ter por perto os que com ele concordavam e os outros, os irreconciliáveis, ficavam-lhe para sempre na mira de um ajuste de contas político. Gabava-se de ser um homem de corpo inteiro e, por isso, a Maria das Dores nunca lhe constituíu um estorvo: era a filha que seria sua herdeira. E que herdeira! Mas logo havia de se ter embeiçado por aquele fidalgote de Macedo, o filho do Morgado! Que lhe diziam dele? Caçava, ia pelas feiras com o pai, passava os dias a ler... ainda se lhe desse para estudar! Mas diziam-lhe que só lia escritores! Poesias e romances! Ainda por cima nunca seria morgado: o Mousinho acabara-lhes com o privilégio. Que ele lá tinha uns cabedais, os pais acautelaram-lhe as libras e fizeram-lhe uma casa grande ao lado do solar, para rendimento... Mas não! Quando os anos passassem tudo iria sumido no tempo gasto em livros, no desleixo e nas viagens de folga ao Douro e a Chaves, nas ervas a crescer e a afogar olivais e prados.
“A menina que faça as malas!” - Ia estudar que bem precisava, depois dava-lhe um dote e que procuraria poiso com alguém mais conforme.
- Oh, Padrinho, se calhar quer-me casar com algum viúvo já de cabelos brancos!
- E se fosse? Pelo menos era alguém que eu já lhe conhecia a vida, não era como esse, esse...
- Que é que ele tem? Ideias políticas diferentes... vive noutra época, só isso.
- Só isso?! Só isso?! Começa logo porque é mais novo! Sim, um miúdo!...
- Ora, Pai! A mãe dele é mais velha catorze anos que o pai dele!
- Hmmm!



(As Oblatas de Fornos de Ledra eram uma casa que começara para ser grande, raízes esticadas a beber bom húmus em pleno tempo de D.Miguel, mas a que as vicissitudes dos anos seguintes, em que preponderara o anticlericalismo violento sinuoso do século dezanove, estiolaram a prossecussão do objectivo. O convento, como lhe chamava o povo, foi-se aguentando com algumas internas 'filhas-família' de fidalgotes sovinas ou com menos rendas para as mandar para Braga ou para o Porto, e tirava partido de se encontrar no meio de um deserto cultural imenso já que outras casas religiosas das imediações iam já extintas na voragem liberal. Passava-lhe perto uma antiga estrada romana e que agora era a estrada real da Torre para Bragança. O convento desapareceu com os alvores da república. Ficou um edifício de granito, grande para a aldeia em que as casas são tão acanhadas como era a visão do mundo das gentes, com uma igreja de paredes meias e um jardim onde cresciam ervas medicinais e aromáticas. Deram-lhe o destino de servir de palheiro e nesta condição albergou uns republicanos 'rojos' fugidos das falanges na guerra de Espanha, na segunda metade da década de trinta do século vinte. Um descuido destes inflamou a palha e o feno lá guardado e o edifício ficou reduzido às paredes num incêndio memorável. Depois disso ainda lhe puseram um telhado... e agora no interior vivem umas pessoas e criam-se porcos!)

 
No tempo da tia Dores ainda o convento era das Oblatas e foram elas quem lhe ensinaram o que as meninas aprendiam: umas letras, umas contas, uns bordados e pinturas. Ensinavam também como lidar com os homens: ser submissas para poder mandar neles. Daí que, quando o Zé Manuel lhe apareceu com o plano mirabolante de fugir do convento e lho explicou detalhe a detalhe, ela tenha concordado logo. Só não entendia aquela necessidade de se esconderem durante umas horas debaixo da ponte de pedra dos Vilares.
- Então?! É para ser como no Alexandre Dumas!
- Ah!, pronto, está bem, está bem, como o Zé Manuel achar melhor!...
Esta troca breve de palavras foi num assomo rápido à porta da capela numa visita que ele veio fazer. Tinha tudo previsto. Estava tudo acertado. Até a Madre Superiora, prevenida por um bilhetinho a embrulhar uma meia libra para as intenções do convento que lhe mandara a D.Josefa, mãe do José Manuel, tinha concordado em só mandar fazer uma busca a cavalo e mandar notícias para o Brinço duas horas depois do fim da missa. Os fidalgos de Mascarenhas tinham concordado em recebê-los lá e em ficar com a Maria das Dores até se aplacar a fúria com que o Abade receberia o aviso. O compadre viria até Fornos com a égua ruça à arreata a acompanhar as meninas de Lamalonga que vinham à missa e, à saída, trariam com elas a Maria das Dores. Não daria nas vistas. Eram conhecidas e amigas. Na estrada de Vila Nova é que se apartariam. Aí estaria ele à espera. Depois seguiriam para Mascarenhas a galope. Teriam que parar na ponte dos Vilares.
E pararam. À espera deles estava um moço que tinha chegado, havia nada, da taberna dos Vilares.
- Então?
- Estavam lá, sim, iam sair depois de mim. Mas não trazem pressa. Os cavalos já vêm cansados e devem só vir a trote e devagar.
Esconderam-se debaixo de um dos arcos, os cavalos tinham-nos posto a pastar num lameiro mais abaixo, tapado por uma volta do renque de freixos e choupos do rio. Sentiram o trote das montadas a passar. Eram três. O Abade mandara os seus três criados a bater a estrada menos provável. Que não lhe restava senão aceitar os factos. Na véspera, ainda recebera uma inesperada carta dos Morgados de Macedo, a pô-lo ao corrente que o filho tinha intenções de casar com a Maria das Dores e que ambos tinham para isso a sua bênção, que ela para todos os efeitos passaria a ser sua filha.
O som das ferraduras foi esmorecendo. Saíram debaixo da ponte, curiosos e muito excitados com tudo aquilo. Perscrutaram a estrada para ambos os lados. Nem vivalma! Foi ela quem falou:
- Então, José Manuel?
- Viu isto? Viu isto? Tal como eu previ! Tal como no Alexandre Dumas!

As folhas de chá

© Manuel Cardoso

O senhor morgado tinha ido a banhos. Estivera uma semana no Moledo do Douro e antes de regressar a casa dera ainda uma saltada de dois dias ao Porto para ver as vistas e trazer uns embrulhos para as senhoras. Já no fim da volta ainda passara na Chinesa e comprara chocolate, café e uma lata de chá, um chá oriental cujo aroma - “cheire só, senhor morgado, depois de o provar a sua netinha não vai querer doutro!” - já produzia efeito. Fizera as compras, despachara uns assuntos, telegrafara para casa a dizer que já ia e metera-se no trem na Campanhã, depois de meia hora de caleche desde a baixa. Tinha tido um tempo esplêndido mas a partir da Régua o céu cobrira e o ar, apesar de Setembro estar no início, arrefeceu. O trasbordo no Tua fez-se já com uma chuva persistente e depois até Mirandela, noite entrada, foi um crescendo de pingos que não esmoreciam. De fora da estação, num negrume que não se distinguia do vapor do combóio em manobras, esperava já a diligência, veículo temível coberto de oleados a pingar. O morgado e o Alves, que o acompanhava desde o início da jornada, acomodaram-se como puderam no interior acanhado.
- Safa, uns dias tão bons acabarem assim!
- E vamos com calma, senhor morgado, ainda nos esperam umas horas até Macedo!
Esperavam, de facto, e mais ainda quando a uma milha do Vilar de Ledra, à saída da ponte de pedra, a traquitana oscila para o lado, bate na guarda e empena o eixo mesmo rés-vés ao cubo da roda. Os viajantes apanharam um susto, saíram e avaliaram a situação. Desatrelaram-se os cavalos para ir por ajuda. Um grupo meteu-se a pé até ao Vilar, à venda da Rosa, onde se faziam as mudas. Neste grupo foi o senhor morgado, levando na mão apenas a mala pequena onde cabia uma camisa, o estojo da toillette, o das colónias, e onde se comprimia a um canto a lata de chá para a sua neta Micas.
Que alívio, chegar à venda da Rosa! Velha matrona trombuda que nunca aprendera nada com os viajantes, ficara sempre rude como a mais rude das fragas. Valia-lhe ter a destreza de moça e a força de um homem pelo que servia ali no ofício de trocar as parelhas quando passavam as diligências. Ele evitava-lhe o poiso sempre que podia. Mas hoje, pelo menos, estava ali a seco e agora com vagar podiam comer qualquer coisa. O lume, a um canto, estralejava giestas e estevas.
O moço de fretes da Rosa, tão atarantado como ela pela chegada inoportuna de tanta gente que vinha para se instalar, não parava de um lado para o outro a acender os lampiões, a espevitar com a tenaz os guiços incandescentes. Que, normalmente, as pessoas vinham só de passagem, mudavam-se os cavalos e seguia-se adiante, os passageiros só bebiam um trago e pronto. Porque é que não se tinham aviado em Mirandela?!
O atraso já era muito, e, também, quem esperava ter de se parar aqui?!
- Ó mulher, também não se aflija que a gente só quer abancar para comer! E paga-se! Não vai de fiado!
- Ora pois! Secamo-nos aqui ao borralho e num par de horas mal será se da vila não nos mandam uma carroça qualquer para seguir de viagem! Entretanto dê-nos aí um petisco a trincar!
- Mas que lhes hei-de dar? Não tenho cá nada, hoje foi feira na vila, já por cá passou muita gente!...Só se lhes der bacalhau! Umas lascas. Que não o tenho de molho...
Ao morgado não lhe apetecia bacalhau. Estava moído da viagem, aborrecido dos contratempos, enjoado de estar ali enfiado naquele buraco mal iluminado por lampiões de azeite, fedendo a vinho estragado e a bacalhau passado. Mas que fazer?!
- Olhe, ó Alves, vamos aqui a uma cartada com estes comparsas de viagem.
- E bebemos o quê, entretanto?
- Ora eu levo aqui um chá da China que vão ver, meus amigos, é um chá dos deuses! – e, pegando na lata colorida de tons castanhos e encarnados escritos a preto, estendeu-a à Rosa para que lhe fizesse aquele chá – Veja bem a senhora, nunca cá teve um chá destes, tome lá e faça-o aí! Só com o cheiro vai-se a fome! E acompanhe-o com umas torradas! Faça aí umas torradas que com o chá vão que nem sonhos!
À terceira ou quarta volta de cartas já o aroma fino se sobrepunha e o senhor morgado urgia:
- Então esse chá, vem ou não vem?
- Está quase, senhor morgado! Não demora nada!
A tisana tardava mas o jogo corria bem, os naipes vinham de feição e o morgado entusiasmava-se:
- Que cheirinho, hem?, ó Rosa!
Passou ainda um bocado mas finalmente sentiu-se a chegada da matrona.
- Ora aqui bem o tchá da tchina com turradas!
Com gesto satisfeito de dever cumprido, deixando um rasto fumegante de cheiro inconfundível, a Rosa pousou um prato manchado de faiança grosseira onde um monte de chá cozido à maneira de esparregado se erguia cercado por torradas de centeio. O morgado, pousando as cartas e arregalando a surpresa para evitar a explosão de mau génio, só articulou em lamento:
- O meu chá para a Micas!...
- Cheira bem e cozidinho! Está aí todo – diz a Rosa - , e mais que não é muito!
- E a água, o que fez à água de o cozer?
- A água?! Para que é que o senhor morgado queria a água?! Temos cá binho! Era para sopa?
- Mas o que fez à água?
- Ora, a água foi para a vianda dos porcos!

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

A Pulseira de Prata

© Manuel Cardoso

Quando foi preciso reparar o fecho do cordão de ouro e os brincos de esmeralda da D.Josefa, o senhor morgado, Bernardino José, aproveitou a boleia e comprou no ourives uma pulseira de prata de dois aros torcidos para uma das suas favoritas de travesseiro, a Custódia do Vilar.
Ofereceu-lha numa noite especial para aplacar os cuidados e medos em que ela andava porque sabia que o seu irmão, de maus bigodes para aquele romance, apregoara na praça que, na próxima vez que o morgado fosse lá a casa, lhe daria a ele desanda tamanha que a D.Josefa demoraria uns mêses para lhe consertar os ossos.
E com efeito, nessa noite, em casa da Custódia, ainda mal aquecido o colchão, ouviu-se um burburinho nas escadas da varanda. Ela começou com lamúrias baixinho mas ele, espadaúdo de ombros e mais ainda de alma, levantou-se, vestiu-se, ajeitou o coldre do St. Étienne para o ter à mão, pôs o chapéu de abas e apertou calmamente os alamares de prata do vasto capote de saragoça. Desenfiou do bolso a sua navalha de lâmina de Toledo. Ela benzeu-se. Ele abriu a porta.
Uma dúzia de homens dispunha-se escada abaixo, vultos contra a parede, degraus de granito de esfrega clareando com o luar. Ficaram-se todos por um silêncio que tudo dizia e o morgado desceu os degraus um a um, lâmina refulgente a fingir que limpava as unhas, cotovelos para os lados a avolumar mais o capote. Já no último degrau, com um assobio, chamou o moço que, num palheiro adiante, lhe guardava o cavalo. Dobrou a navalha, enfiou-a no bolso e, num garbo que lhe era reconhecido:
- Senhores, boa noute vos dê Deus!
Atarantados, enrolaram umas “boas noutes senhor morgado” que não saíram em uníssono. E toda a raiva que os juntara ali ficou esvaída em respeito, um respeito atávico resumido naquelas palavras.
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A D.Josefa não tinha ciúmes. Depois de lhe dar quatro filhos voltara-se para ele e dissera-lhe que já chegava, que estava cumprida a sua parte. Enfiara-se na alcova da sala pequena e não mais lhe visitou o quarto, um quarto enorme e frio de tecto lavrado e de paredes forradas com telas largas e graves de santos. Ele respeitou-lhe a vontade e obedeceu-lhe mais como filho que aceita do que como marido que compreende. Mais novo catorze anos do que ela, era-lhe difícil contrariar a senhora que o levara ao altar com um dote de truz. Ainda por cima cheia de força apesar de seca e pequena, e de capacidades, ou não herdara do tio, Abade de Medrões, confessor privado dos Marqueses de Fronteira, uma inteligência de assombro? Era ela quem administrava a casa, contratava e despedia, decretava ordens aos caseiros das quintas mais longe, recebia rendas das aldeias onde tinham foros, negociava as madeiras e os animais, cobrava os juros das letras de empréstimos, executava a liquidação destes nos casos arrastados e insolúveis. Ela fazia tudo.
De forma que a ele sobrava-lhe tempo. Para ir às feiras e arraiais, à caça e às visitas aos amigos, que tinha muitos – e às saias, que tinha algumas. Mas guardava à sua Josefa um grande respeito e, até, afeição. No bolso do colete trazia sempre um medalhão forrado de veludo, dentro do qual se estampava a figura magestática da sua Josefa. Trazia-a sempre junto ao peito como uma raridade extravagante e todas as outras lhe tinham admirado já o passe-partout que se abria e que, no centro de uma cercadura de bronze, tinha o daguerreotipo da fidalga pintado com um vestido de seda, brincos de ouro e olhar de Miranda.
A par dessa aparente tolerância em matéria de raparigas, ela tinha-lhe definido claramente duas ou três linhas de intransigência: nada de se meter com casadas; nada de jogatinas ou bebedeiras de perder o tino; nada de jóias para as amantes. Com o seu nariz de feitio administrador, sobretudo este último ponto lhe era importante já que “a desforrar-se de capital, que o desforre na família. Prata, ouro e jóias, só cá para dentro, para poder ser herdado – se for para o resto, perde-se e diminui-nos!”.
Levavam assim uma vida de harmonia, ele deixando-a mandar e ela aturando-lhe as aventuras e as manias – que tinha algumas. Fidalgo desde sempre, afinara um bom sentido para a mesa e tinha um paladar apurado. Ela era intransigente em matéria de contas – ele era-o nos cozinhados.
Um dia, sentado à mesa, chega-se-lhe uma travessa de ervilhas. Espetou o garfo. Saltaram para um lado e para o outro.
- Ah, não estão cozidas! Então hoje temos balas! – disse, mais alto de modos a que se ouvisse na cozinha.
Pegou na travessa, atirou-as ao chão fazendo logo correr os seus galgos de caça a farejar o chouriço.
Com estas, a D.Josefa deitava as mãos à cabeça. Porque não queria que o marido tivesse queixas de casa. Queria-o bem vestido, bem alimentado, bem contente. Era, por isso, um drama quando havia reclamações de cozinha e ela logo avançava corredor adiante a dar descomposturas e a provar das panelas não fosse a cena repetir-se.
“Olha lá, Efigénia, cozeste as batatas com a cebola lá dentro como gosta o senhor morgado? Uma cebola para três batatas? Ouve lá, Ricardina, o caldo do senhor morgado foi mexido com a colher de prata?”, pormenores que ele notava.
Então este da colher de prata era um mistério e um superlativo que fizera fama e sobre o qual havia, até, apostas. Em casa dos Sarmentos ele provara de dois caldos verdes e logo afirmara, sem margem para dúvidas, qual é que tinha sido mexido com a colher de pau e qual é que tinha sido mexido com uma colher de prata.
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Depois de uma ausência para a feira de Chacim, chegado ao solar num fim de tarde, foi informado por um dos criados que a senhora saíra, levara a égua branca e fora também o menino José Manuel no Riscão. Tinham ido ao Vilar. Tinha vindo recado a dizer que morrera a Custódia. O senhor morgado sentiu um súbito calor.
- Morreu a Custódia!? E que foi lá a fazer a senhora?
- Não sei, senhor morgado.
Em casa também não sabiam. Só havia recado que pela noitinha a senhora estaria de volta. E esteve, o tempo de ele fazer um semicúpio e mudar de roupa.
- Então, Josefa, que foi a senhora fazer ao Vilar?
- Apresentar pêsames e contribuir para o enterro.
- E para isso não estão lá os nossos primos?
- Estão mas não estão para tudo. A coitada morreu, o resto já não interessa. Vou ver como estão as coisas pela cozinha.
Ele percebeu a não-conversa. Deixou-a ir. Falariam mais tarde sobre a morte da Custódia.
Na cozinha era tanta a azáfama como a fumarada.
- Clementina, já começaram com o caldo? Hoje mexe-lo com a colher de pau, a queimada.
- O senhor morgado hoje não ceia, senhora?
- Ceia, ceia... ceia e bem!
- Mas vosselência...
- Mas que é isto? Fazes porque eu mando e pronto. E sou eu que lho sirvo, ouviste?
- Sim, senhora.
Ao estar pronto, tirada a tampa da panela de tripé a fumegar, foi a fidalga quem se ocupou de o lançar no prato.
O morgado começou a comer o caldo pelas bordas, escaldava. Sorveu e ficou pensativo. Havia ali qualquer coisa... provou outra vez. Havia ali um travo a madeira... mas não. O gosto não era o de sempre mas era impreciso o defeito, não lhe parecia ter faltado a colher de prata. Talvez de estar tão quente. Pousou a colher. Todos achavam que sim, que estava muito quente. Esfarelou uns miolos de pão para arrefecer. Recomeçou a comer. Topou qualquer coisa no fundo, sob as couves.
A D.Josefa, em pé ao lado dele, aguardava.
Com a colher tacteou melhor e levantou, surpreendido e boquiaberto, envolvida nos fios das couves, uma pulseira de prata de dois aros torcidos.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

trovisco

TROVISCO Daphne gnidium L. Há duas plantas diferentes com este nome. Uma chama-se trovisco-macho, existe na Madeira e é muito diferente da que nos interessa e sobre ela nada aqui dizemos.

O trovisco que existe em Trás-os-Montes é um arbusto da família das Timeliáceas cujo nome científico é Daphne gnidium L (1). Há ainda duas plantas muito parecidas, também da mesma família e que têm os mesmos nomes vulgares em diversas regiões do país: trovisco-fêmea, trovisqueira, gorreiro (Alentejo), erva-de-João-Pires, mezereão, mezéreo-menor, mezereão menor. O mezereão, Daphne mezereum L., e a Daphne Laureola, são esses outros elementos desta mesma família. O sabor deste vegetal é muito amargo e, em geral, os animais evitam-no. Contudo, se for ingerido por cavalos pode ser mortal e o mesmo acontece com as galinhas, como se pode avaliar pelo seu nome no país vizinho. Sinonímia internacional: - Castelhano: torvisco, matapollos, bufalaga, matapulgas, matagallina, torbisca, trovisco; - Galego: trobisco; - Inglês: spurge flax, mediterranean mezereon, flax-leaved Daphne; - francês: garou, sainbois, daphné Saint-bois; - alemão: purgierstrauch; - italiano: gnidio. É uma espécie perene, vivaz e sempre verde, floresce precocemente de Março a Setembro. Formam-se verdadeiras comunidades destes arbustos, denominadas troviscais. Prefere o clima mediterrânico e existe até aos 800 metros de altitude. Pode atingir quase dois metros de altura. Tem ramos delgados e flexíveis. As folhas são lanceoladas, coriáceas, de tonalidade verde-azulada e produzem uma secreção resinosa no anverso. As flores são brancas ou levemente amareladas, aromáticas, formam cachos terminais ou em panícula, nas extremidades dos ramos. O fruto é carnudo, uma drupa, ovóide, de coloração que começa por ser verde, evolui para laranja brilhante e vermelho quando maduro e depois passa a ser preto. Costuma haver flores e frutos simultaneamente e as flores chegam a preceder, na primavera, o aparecimento das folhas novas. Esta planta está associada frequentemente a um insecto, uma borboleta , Lobesia botrana, aranhiço da videira – tignoletta dell’uva (it.), grape moth (ing.), arañuelo de la vid (cast.), que nela deposita as suas larvas. Todas as partes da planta são tóxicas. Sobretudo as bagas que são os seus frutos, pelo seu carácter atractivo e por serem semelhantes às de outras plantas comestíveis, representam perigo e em especial para as crianças . A dose mortal não é muito elevada, sobretudo se forem bagas do mezereão (Daphne mezereum): dez bastam para que uma criança possa morrer se não for socorrida a tempo. Os sintomas desta intoxicação são náuseas, vómitos, hipercatarsis, diarreia sanguinolenta, congestão e ulceração da boca e garganta. Também é produzida irritação renal que pode ser grave. O povo usa a raiz triturada numa preparação com farinha, cinza e terra para fazer bolas que, atiradas para os fundões das ribeiras, entorpecem os peixes permitindo a sua fácil captura. Este método de pesca é chamado de troviscada. Os componentes activos da planta são uma resina e a dafnetoxina (2). O contacto da seiva com a pele pode causar dermatites e vesicação. A resina, presente nos frutos, é tóxica quer para homens quer para animais mas foi, apesar de tudo, usada ao longo dos anos quer em cosmética para preparação de um unguento para tingir os cabelos de preto quer em medicina como cicatrizante de feridas. Em Espanha usou-se muito para promover a cicatrização aquando da perfuração das orelhas das meninas, utilizando-se um troçozinho que se introduzia no orifício. Também como insecticida foi usada largamente para eliminar pulgas, piolhos, etc (3). Nalguns países foi usada como purgante, estimulante, diaforética e catártica. Em doses pequenas. Nas situações de doenças insidiosas da pele e nas escrófulas foi empregue externamente. Os homeopatas usaram-na nas dores periósticas que se seguem à sífilis e no reumatismo. Como revulsivo e vesicante e sempre que se pretende provocar a supuração de um abcesso mergulha-se a casca em vinagre e água para a amolecer e aplica-se sobre a zona a incidir com uma compressa, repetindo-se este tratamento à tarde e de manhã até que o resultado esperado se produza. Nenhuma destas utilizações deve ser feita por curiosos mas sim de modo consciencioso porque, repetimos, o uso desta planta não é inofensivo. As sementes de trovisco vendem-se a 225 € + IVA cada 250 grama (4). (1) O nome do género deriva do grego, Daphne, loureiro, nome da bela jovem casta educada no horror ao casamento e que ao ser perseguida por Apolo invocou a ajuda da Terra-Mãe e se transformou num loureiro (daí ser esta a árvore preferida de Apolo). (2) Mezereína, denomina-se também o diterpeno tóxico presente. (3) Foi extraída desta planta e das outras da mesma família a casca para usos medicinais. O princípio activo é a dafnina C15H16O9+2H2O. Esta pode ser decomposta em açúcar e dafnetina, que é uma dioxi-cumarina (Ver Bibliog.: King’s American Dispensatory...). (4) www.sandemanseeds.com BIBLIOGRAFIA Dr. Oliveira Feijão, MEDICINA PELAS PLANTAS, Lisboa, 1952. SEGREDOS E VIRTUDES DAS PLANTAS MEDICINAIS, Selecções Readers Digest, Lisboa José Murcia e Isabel Hoyos, CARACTERISTICAS Y APLICACIONES DE LAS PLANTAS, 2001, www.zonaverde.net www.botanical-online.com/fotosdaphne.htm www.minerva.uevora.pt www.fotodisardegna.it DUNES ATLANTIQUES 2001, in http://perso.wanadoo.fr DAFNE (Daphne mezereum) in http://w3.uniroma1.it King’s American Dispensatory, Harvey Wickes Felter, M.D., and John Uri Lloyd, Phr.M., Ph.D., 1898. in Henriette’s Herbal Homepage, www.ibiblio.org/herbmed/eclectic/kings/daphne-meze.html Plantas Silvestres de España in www.hoseito.com

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

A NOITE DAS BRUXAS


Era o dia de Todos-os-Santos. A aldeia estava mergulhada numa cerração completa. A água escorria pelos telhados devorando as coberturas de telha velha e remexia a terra levando-a regatos abaixo, deixando as árvores chupadas de solo. Clarões magníficos alternavam com estrondos que estremeciam o sobrado, as paredes, a alma. O vento enfiava-se pelas frinchas, enovelava os pingos que caíam nas ruas, juntava aos trovões um chiar lúgubre que nascia nas ramarias já descarnadas dos carvalhos e dos freixos. Um raio desfizera parte do campanário da igreja e o negrilho grande do quintal dos tios.
Desde o início deste misterioso temporal que deixara de haver electricidade e os telefones eram uma ruideira inaudível. As estradas, com o alcatrão esventrado, estavam semeadas de pedregulhos que a água arrastara, com o aterro desfeito pela enxurrada. Algumas casas de curral mal seguras tinham desabado fragorosamente, andando os animais por aí, perdidos ao vento.
Ninguém tinha na memória a recordação de um temporal assim e deste também nem uma só pessoa iria poder afirmar, mais tarde, tê-lo presenciado.

I.

O João chegara para férias na véspera destes acontecimentos. Ao fim de uma clara tarde de Outubro, daquelas que são as melhores para se ir da cidade para a província, arrumara o carro, bem disposto, na garage de casa dos pais. Abraçou todos apertadamente. A Avó, a Mãe e o Pai e a Adélia, velha criada da casa e que queria ao menino João que já é doutor como a um filho. O quintal tinha o verde ralo que vem com as primeiras águas de Outubro e o Riacho, o seu perdigueiro infalível, bamboleava-se sem desfitar os olhos dele à espera de uma efusiva festa de recepção.
Ao jantar, enquanto devoravam um prato de cabrito assado, o João e o Pai fizeram planos para irem à caça no dia seguinte, planos esses abundantemente ilustrados com cenas e factos de outros fins de semana, preenchidos com tiros, correrias, ladradelas de cães, vozes de ordem e cheiro a urze, a esteva e a bicho. Andavam umas perdizes por cima da vinha do Zé da Padeira e o Armando, tractorista da casa, levantara uma lebre na Ribeira Velha, junto ao muro da Lameira das Fragas, no dia de passar a charrua para a sementeira do pão. A caça era, assim, uma ciência exacta feita da geografia em que tinham nascido, de um território comum a vencidos e a vencedores e em que estes eram paternais e protectores para aqueles durante uma boa parte do ano. As razões aparentes deste conflito iam buscar-se às couves roídas antes de serem colhidas, aos olhos da Luíza que se enamorava semana a semana pelo que mais peças conseguisse, a algum convidado da casa que se regalava com o prato cheio daquela carne saborosa e selvagem. Menos exacta do que a caça, era a política de pelourinho, feita de coisas relativas como as amizades e os votos e de coisas absolutas como as zangas de vizinhos, os favores e as susceptibilidades. Para acompanhar o café quente e a aguardente forte, o Pai tinha que resvalar a conversa para um assunto quente e forte e, afagando o cálice entre as suas mãos de dedos grossos e peludos, passando a língua pelos lábios para limpar o álcool que lhe fazia arder o cieiro, concentrou-se para reafirmar mais ainda as suas críticas ao presidente da câmara. Cavacos de freixo ardiam na lareira, vigiados pelo Riacho, deitado debaixo do escano de patas para a frente e focinho apoiado meio em cima delas meio em cima do chinelo da Avó. Às onze da noite já os olhos se lhe fechavam mas o Pai, ainda muito disposto para conversa animada, intimava a Mãe a assar aquele lombinho que, havia dias, o aguardava em vinho de alhos com louro. Comeu-se o lombinho tostado em brasas, com castanhas, arrefecido com copos de tinto maduro. Assim abastecidos, atacaram a política de tal maneira e com tais energias que parecia não estarem às dentadas a torradas de centeio com carne – mas ao presidente da câmara!
- E há agora aquilo das bruxas! – exclamou o Pai meio risonho.
- Das bruxas?! O fulano vai à bruxa, é?
- Quem me falou nisso foi o teu padrinho. Parece que aquele animal quer inventariar as bruxas que há no concelho, não se sabe para quê. Uns dizem que é para a cultura e outros que é por causa dos impostos para as autarquias. Coisas de socialista. De qualquer modo é nunca visto e o que se irá dizer de nós lá por baixo! Isto nem parece de quem tem estudos em Coimbra... bem, que ele não estudou nada enquanto por lá andou, tirou um cursozeco que nem canudo lhe deu...
- Ainda se fosse para acabar com elas, agora irem para aí dizer que na nossa câmara acreditam nas bruxas! O teu Tio, se ainda fosse ele o presidente, não faria nem deixava que se fizesse uma coisa dessas – interveio a Mãe ao mesmo tempo que tirava os pratos de cima de um banco onde o João os empilhara.
- Mas há mesmo bruxas? – inquiria ele segurando a tenaz para acender um cigarro com uma brasa.
A Avó mexeu-se no escano. O João repetiu a pergunta tentando desviar a conversa para as bruxas e depurando-a do lado político.
Quando ele era miúdo ouvira falar de casos estranhos como o do Alfredo, seu colega de carteira, que fora benzido com chumbo quando tinha tido os papos. Ao Augusto tinham tirado as lombrigas aos dez anos à custa de duas galinhas pretas cujas penas apareceram espalhadas ao pé do Cruzeiro Grande. As más línguas disseram na altura que o que ali faltava das galinhas tinha servido para a Maria dos Cravos fazer uns bons caldos e arrozes. Essa Maria dos Cravos morrera uns anos atrás e dera azo a grande celeuma porque as beatas do Padre não a queriam enterrar como um cristão. Ele meteu-as na ordem e rezou-lhe ofício com missa e tudo. Pairavam sobre ela famas que não fez por compreender mas que o assustavam na mesma e quando andava pela aldeia em garoto, fugia-lhe sempre mais ao gato que andava com ela. Lembrava-se bem de o Pai a ter posto fora de lá de casa no dia em que tinha morrido, horas antes, a Avó Beatriz.
Num instante, vieram-lhe imensas recordações dessas à lembrança e como nunca pensara nem falara sobre elas, ia agora satisfazer a sua curiosidade. Deu uma fumaça funda no cigarro para o refazer pegar e, com o fumo entre os dentes, não deixou cair a conversa. Foi a Avó quem lhe respondeu:
- Noutro tempo havia bruxas e tinham o seu fundamento. Não digo que não fizessem a sua vigarice mas prezavam-se a si mesmas e tinham fé no que faziam. Hoje, não. São umas galdérias, meia dúzia de impostoras que querem ganhar dinheiro à custa das crendices do povo. Há uma na vila que vive num bom andar, daqueles por cima do supermercado, que a um pobre casal roubou dezenas de contos (e quem mo disse, sabia-o!) para livrar a mulher do que diziam ser o espírito de um homem que tinha morrido. Hoje só há falcatrueiras!
- Falcatrueiros! No Nugalho há um bruxo que até receita remédios da farmácia e que tem dinheiro a potes nos bancos e andares lá para o Porto!
- E dantes, eram verdadeiras?
- Algumas. A bruxaria a sério é um pacto com o diabo e Deus nos livre! Deus nos livre!
- Já há muito que não há casos destes mas assombrações e coisas assim têm, algumas, que ser levadas a sério! Em Tresulfe...
- - Ah! A casa dos Teixeira! Essa foi mesmo exorcizada por dois padres!
- Aquilo de as nozes saírem disparadas pelas chaminés e de se verem as luzes atrás das janelas foi falado e, de facto, outra explicação não houve do que ser o diabo. Depois de lá terem estado os padres a coisa acabou.
A Mãe do João recontou a cena com todos os pormenores de que se lembrou e ele começava a sentir-se electrizado pela conversa ali à lareira. O Riacho, que já mudara de posição um par de vêzes, estava agora com pesadelos.
- E dantes dizia-se que no 31 de Outubro, que é hoje, as bruxas se encontravam à meia-noite na encruzilhada dos caminhos de Tresulfe, Pinhovelo, Amendoeira e Vale Pradinhos. Dançavam à luz da Lua e cantavam alto, desafinadas, encantamentos àqueles ou àquelas a quem queriam fazer mal ou bem. Nessa noite, dizia-se, apareciam sempre mais bruxas de cada vez que se juntavam e havia quem dissesse que eram as já mortas que se levantavam só para aí vir e que voltavam a ser gente de carne e osso!
- Isso todos os anos?
- Só nos em que calhasse ser lua cheia. Nos outros anos apareciam só as vivas e na terceira lua de Agosto.
A história do encontro das bruxas fora uma tirada da Adélia que, primeiro, não se metera na conversa. Ainda acrescentou novos detalhes. O de os sinos tocarem sozinhos as Avé-Marias como se os Anjos quisessem fazer com que as boas almas rezassem pelas que tão perdidas andavam era, segundo ela, para que toda a gente se guardasse, nesses dias, a si própria. Os sinos tocavam porque as bruxas andavam à solta e o diabo queria fazer muito mal aos que tinham a amizade de Deus.
Olhando a agenda de bolso, o João pôde constatar a coincidência de nessa noite ser lua cheia. E se tudo aquilo das bruxas tivesse um fundo de verdade? Se houvesse ainda uma bruxa a sério? Se o diabo usasse ainda tão medievais processos de penetração nos povos?
A conversa prosseguia à lareira mas já sem contar consigo. O seu pensamento estava ausente em espaço embora não no assunto. Quase sem ter consciência que essa vontade se formava nele nem o que ela implicaria se se verificassem os ses que colocava, resolveu-se a ir nessa noite ao cruzamento dos quatro caminhos. Era quase meia noite no velho relógio da cozinha e isso ia fazê-lo desistir porque não teria tempo de lá chegar mas lembrou-se que as horas dos homens não são mais as dos astros e faltava ainda, na realidade, muito mais tempo do que lhe poderia parecer.
O sono tinha-o abandonado e tanto pior para a caçada do dia seguinte. Iriam só à tarde.
Convenceu o Pai e enfiaram as samarras, puxaram-lhes bem as mangas e puseram as peles para cima. O Pai ainda voltou atrás a buscar uma lanterna e o João lembrou-se de levar o velho Smith.32 que tinha sido do Avô e que ele costumava usar sempre que vinha de férias. O Riacho despertou a um enérgico assobio que lhe era familiar e saíram os três pela porta da cozinha, descendo as escadas de granito e atravessando o quintal ao mesmo tempo que a Mãe, da varanda, dizia um não se demorem cujo tom, com um leve ar de nervosismo, não teve eco como nunca têm eco as vozes da apreensão no meio das do entusiasmo.

II.

Desaparecera a luz fria das lâmpadas da iluminação pública. Percorreram a estrada principal fumando e conversando baixo. Desviaram à direita no cruzamento dos três pinheiros e uma assobiadela chamou o Riacho que, não lhes adivinhando o trajecto, ia uns passos mais à frente farejando a direcção errada. Ganhou-lhe de novo a dianteira e estacou, hirto. Olharam-no com curiosidade. “Algum rato ou coelho” disse o Pai descontraidamente. Mas ao vê-lo, sombreado no meio do escuro da noite e entre os grossos e altos olmos que ladeavam a estrada, dentro do João um circuito rápido de ideias começaram em remoinho como se do mesmo modo como se lembrara de ali vir, assim inconscientemente se lhe instalassem receios que, apesar de não razoáveis, não deixavam de ser receios. A lua estava perfeitamente circular e projectava as sombras esbatidas do arvoredo como manchas pintalgadas parecidas às peças de um puzzle desarticulado e incoerente. Um arzinho arrepiava a pele da cara. Passaram pela ermida do Espírito Santo, erguida no rococó do século XVIII e que no pequeno arco do sino tinha ainda agarrados uns restos de festões do último arraial. O Riacho recomeçara a andar. Seguiam-se apenas duas curvas que se contrariavam silenciosamente. Chegaram.
Quatro estradas estreitas desembocavam umas nas outras, sem sinalização, fazendo quase que um labiríntico nó. O arvoredo, ralo e moldado pela luz da lua, envolvia-o numa sombra tão metálica quão orgânica e leve. Troncos grossos, muitos grossos e altos, uniam-se uns aos outros pelo emaranhado difuso dos galhos finos e desfolhados. Um pássaro nocturno esvoaçou com uma restolhada breve e fugiu para longe. O centro do cruzamento era ocupado por um círculo relvado por ervas espontâneas, do meio das quais se erguia um bloco de rocha deixado ficar para trás pelos empreiteiros da estrada. Uma bruma adensou-se a partir dele, esbatendo ainda mais os contornos irregulares das bermas e em breve e a um tempo, o João e o Pai deixaram de ver a mais de um palmo do nariz.
- Caramba! Um nevoeiro assim!...
- É verdade! Que estranho!...
E um cheiro a enxofre e a folhas queimadas, primeiro brando mas depois mais forte, revelou-lhes que algum acontecimento estava iminente. Não havia a claridade que os nevoeiros possuem e neste parecia que eles se iriam dissolver e apenas os olhos ficar pairando, espectadores que incompreendiam o transcendente a que estavam sujeitos. Horizontalmente, o nevoeiro formou uma bolha límpida no seu interior mas opaca para qualquer horizonte. No centro, o pedregulho começou a irradiar uma claridade intensa como se estivesse a ponto de fundir-se. O João assustou-se quando o Pai lhe segurou no braço para lhe dizer que ficariam até que acabasse o que quer que fosse. Surgiram à volta daquela luz branca-avermelhada nove figuras de mulheres agarradas a bordões e vestidas de túnicas de seda negra de uma elegância perfeita e de uma íntima magestade. Num gesto coordenado, levantaram os braços e a vara e desceram-nos com lentidão, como se medissem o ar ou o tempo. Repetiram tal gesto umas quinze vêzes e então viraram as costas à rocha dando meia-volta e afastando-se dela radialmente, a passos lentos, com paragens rítmicas e tão certas que dir-se-ia haver ali uma coreografia perfeita.
Uma delas ia precisamente na direcção do João e este entreolhou-se com o Pai cuja expressão de incredulidade era ultrapassadíssima pela de surpresa. O João empunhou o revólver e com a outra mão abafou o clic produzido ao puxar a cão atrás. Mesmo assim a bruxa levantou a cara bruscamente e olhou para eles, surpreendida. Deu um grito agudo e apontou-lhes o pau, desatando num estribilho incompreensível de sons desmodulados. As outras acorreram e o João, esquecendo tudo o mais, nem sequer olhando para o Pai, disparou. Uma só vez.
O tiro soou longamente como se o som fosse segredado pelo nevoeiro molécula a molécula e toda a sua textura, fazendo ressonância, o afastasse a custo, em ondas que esmoreciam, poderosas, em ralenti, de chapa contra o fraguedo da Boca do Inferno. As bruxas sumiram, aquele encanto desfez-se, o rochedo escureceu. Depois de uma troca de palavras tremidas e lacónicas, acenderam o foco e abandonaram o local.
Rompeu-se, então, um temporal perseguidor. Trovões encheram o ar de granizo e chuva. Entraram no quintal a correr e subiram as escadas de dois em dois degraus. Encharcados até aos ossos, estavam também a transpirar como se tivessem estado a arrancar batatas sob o sol de Agosto.

III.

Alguém bateu à porta da cozinha. As pancadas, iguais a tantas outras, assumiram na ocasião o mesmo efeito que teriam as dadas de dentro de um túmulo. Tirada a tranca de castanho, entrou o Tio com a sua corpulenta figura toda molhada apesar do seu velho e vasto sombreiro.
- Safa, que temporal! Desculpem vir neste estado e a esta hora... oh!, mas estão todos ainda a pé?!...
Cumprimentou a irmã, a Mãe e o cunhado e voltou-se para o João com um risonho “também cá estás?”. Serviram-lhe um cálice da tal aguardente, ouviu a história do João e do Pai com um olhar que começou por ser interessado e que no fim se exprimia por oscilações entre a suma incredulidade e a suma desconfiança de que neste mundo havia muito para além do que o conseguir produzir os nabos mais monumentais das redondezas.
Bateram outra vez à porta. Era o Joaquim, feitor do tio, comunicando o raio fuzilador do negrilho grande do pátio da casa.
- E a casa? – perguntou o Tio.
- A casa não teve nada, graças a Deus, mas, se o senhor não se importa, nós dormíamos hoje na Georgina...
- Nós?! Ó homem, então traz aí a família? Entrem, ainda apanham uma gripe!
E entraram oito olhos assustados e claros, de madeixas coladas às testas e Mãe atrás, matrona mas ainda bonita como o Joaquim a conhecera na festa do Vilar. A lareira transformara-se num auditório. O Padre João, cuja casa ficava mesmo por detrás do quintal, foi o próximo a chegar para pedir emprestada a escada comprida afim de poderem atar o sino com umas cordas porque estava em perigo de cair. Não chegou a ser precisa a escada. O sino caiu e o bronze fez-se em cacos como se fossem os pratos de Cantão da sala. O Padre João ouviu a história e ficou grave, pensativo, tenso.
- Então foi isso? É o demónio!
Os seus muitos anos e o cabeção davam um tom surreal a esta confirmação do que todos adivinhavam. Rezaram o terço e passaram a noite em velada, de volta do lume, em conversas sumidas e em torradas com fatias de carne que se pôs a assar. A Mãe ainda fez um caldo quente mais tarde, sorvido por todos já quase na alva.
Foram, então, até à igreja. Estava indescritivelmente confusa mas o altar-mór escapara indemne à falta de telhas e aos destroços do campanário que jaziam por toda a nave como se uma bombarda tivesse explodido naquele lugar santo. O pavio da lamparina de azeite do Santíssimo ardia num amarelo sobrenatural, impassível ao vento. A aldeia em peso aglomerou-se entre as paredes, à chuva, rezando. O Padre entoou uma Ladainha, rezou o Terço e por fim ficou conversando baixinho num latim sagrado, num esforço de intimidade com as Potências Celestes. Passaram momentos infindos sem que ele ou a multidão arredassem pé e a cada momento a ansiedade crescia.
O dia passou opressivo. Não se fez a tradicional visita ao cemitério. À noite, o João, o Pai e o Padre foram, a pedido do último, ao cruzamento dos quatro caminhos. Iam fazer um exorcismo.
Ao deixarem a casa, descendo as escadas da varanda, o temporal tornou-se genesíaco. A estrada era um charco contínuo com a água a dar-lhes pelos tornozelos e imensos galhos caídos davam um aspecto de um campo de batalha juncado de cavaleiros decepados. Aproximaram-se do local e, ao passarem pela capela do Espírito Santo, jorrou dela uma luz láctea e forte que saía pelas frestas e pelas telhas e se projectava rectilínea pelo negrume em volta. O pequeno sino começou a tocar como se tivesse saído dos gonzos e rodopiasse por cima da floresta.
De repente, do meio da estrada, saltou-lhes o Riacho, raivoso, olhos impressionantes, dentes brilhando. Mordeu na bainha da batina ensopada do Padre que, a um gesto, o fez sair uivando, embrenhando-se na escuridão em correria espavorida.
Chegaram. O rochedo lá estava, negro. O Padre João benzeu-se, abençoou o João e o Pai, levantou os braços com um crucifixo na mão direita e, quase aos gritos, com uma voz forte mas calma, iniciou o esconjuro que repetiu três vêzes. Do rochedo saiu alguém que era igual ao João mas não era ele; alguém igual ao Pai mas não ele. Puseram-se à frente deles. O que era igual ao João empunhava um revólver negro e, com uma mão negra também, apontou-o ao Padre. O Riacho uivou ao longe um uivo daqueles que os cães fazem quando pressagiam a morte dos donos. Ouviu-se um tiro e o Padre apoiou-se no Pai olhando em frente para a bruxa que era quem disparava e terminou a Oração dizendo-lhe um Amen que se fez sentir como o tiro que o João disparara contra ela, do mesmo modo entranhado de céu a rasgar-se. Desta vez o Padre João estava morto.

IV.

Na véspera do dia de Todos-os-Santos, ao fim de uma clara tarde de Outubro, daquelas que são as melhores para se ir da cidade para a província, o João arrumara o carro, bem disposto, na garage de casa dos Pais. Abraçara todos apertadamente. A Avó, a Mãe, o Pai e até a Adélia, a sempre criada da casa e que queria ao senhor doutor como a um filho. O quintal tinha já o verde ralo que vem com as primeiras águas de Outubro.
- E o Riacho? – perguntara o João pelo que era o seu perdigueiro infalível e que costumava bambolear-se sem desfitar os olhos dele, à espera da sua efusiva festa de recepção.
- Oh!- respondera-lhe o Pai – nem to dissemos na última carta para te não deixar triste! Ninguém sabe o que se passou mas imagina que o Padre João apareceu morto com um ataque de coração à porta da Capelinha do Espírito Santo e, o que é mais estranho ainda, o Riacho estava morto ao pé dele, com um tiro, um tiro de revólver ou pistola.
O João ficou perplexo mas, ao subir as escadas de casa, teve um vago vislumbre de tudo aquilo não ser novidade. Ao jantar, enquanto devoravam um prato de cabrito assado, ele e o Pai fizeram planos para irem à caça no dia seguinte.

© Manuel Cardoso

The meaning of Azibo. Everything has a begining...

No one knows for certain what's the meaning of the word Azibo.
It's an ancient word for "earth"? And if it is, why?
It's the forgotten name of a plant? Which one?
Perhaps it's time to go for a quest for it!...

Today, Azibo is the name of a small river and a beautiful artificial lake.
In Portugal. You may see it at http://www.azibo.org/

This blog is an experimental one. Too see what it comes. Like fishing at Azibo lake. A misterious one.