sábado, 7 de agosto de 2021

O Vinho de Portugal

 © Manuel Cardoso, Agosto 2021

O Vinho de Portugal está num bom momento. Cada vez melhor em qualidade, aumento das exportações, subida do preço médio pago por litro - subida essa espectacular nalgumas categorias de vinhos - o que, para além doutros indicadores, nos permite dizer que o valor global do negócio estará num dos seus mais altos momentos deste século. Para este bom momento têm contribuído os técnicos de excelente nível que nas empresas produtoras, transformadoras e de marketing, nas CVRs, nos organismos interprofissionais e nos Institutos Públicos têm assegurado trabalho, aplicado as verbas disponibilizadas para investimento pelos programas de apoio e desenvolvimento e garantido incrementos constantes de renovação, inovação, melhoria da qualidade e ganhos de notoriedade nos mercados. Desacelerou e está, até, num ponto de viragem, a diminuição de área de vinha existente. As empresas têm sido o grande motor de toda a torrente de lucro e excelência do negócio, a par de algumas cooperativas exemplares que, tendo aderido cada vez mais ao reconhecimento DO e IG dos seus vinhos, se têm juntado, a pouco e pouco, ao clube da qualidade. Podemos, pois, erguer os copos e fazer um brinde de congratulação! Em cujo brinde não podemos esquecer toda a investigação e formação académica que informou o renascimento e transformação do sector da vinha e do vinho nas últimas décadas e às boas decisões políticas (brindemos apenas às boas e esqueçamos as outras) que puseram em prática medidas pertinentes. Sentando-nos, de seguida, para alguma conversa de reflexão e discussão entre amigos. 


O Vinho de Portugal tem a sorte - que sai de muito e profissional trabalho - de além de ter excelentes produtores, ter muita gente a escrever e a opinar sobre a vinha e sobre o vinho de forma comprovada. A escrever e a opinar bem ou a dar espaço ao contraditório e com um grande entrosamento com a produção e com o público, de tal modo que quem ler, sejam as colunas da Revista de Vinhos, da Paixão pelo Vinho, da Grandes Escolhas, do Expresso, do Público, do JN, da Evasões e outras mais, além das páginas pessoais e empresariais que há nas redes, fica com uma visão multifacetada e abrangente da vinha ao copo. Quem ler os editoriais deste ano e a generalidade dessas publicações não pode deixar de constatar que o optimismo partilhado neste artigo teve o impulso não só nos números sobre o vinho que têm sido divulgados pelo IVV mas também nas entrevistas de responsáveis institucionais da ViniPortugal, da ACIBEV, da AEVP, em que se procurou corroborar e alinhar as opiniões aqui vertidas. E quanta e inestimável informação se pode tirar das páginas dalgumas CVRs, dos IVV, IVDP e IVBAM, disponível a todos e em tempo útil! O mesmo se passa com a investigação científica e tecnológica, quer a académica quer a aplicada, que além das universidades tem ainda protagonistas no INIAV, na PORVID, na ADVID, na ATEVA e que muitas empresas têm apoiado ou incentivado, quando não tomado mesmo a iniciativa, fazendo com que a utilização de drones, de robots na vinha e na adega, de ajustamento às práticas da vitivinicultura de precisão, estejam cada vez mais generalizadas. É claro que será redutor dizê-lo assim mas este século conta já com duas grandes publicações magistrais: Portugal Vitícola - O grande Livro das Castas, de Jorge Böhm, e o Tratado de Viticultura - A Videira, a Vinha e o Terroir, de Nuno Magalhães. Quem estiver atento sabe, por isso, que a sorte que faz com que possamos brindar com vinhos cada vez mais leves, elegantes e frescos - e poderosos! - é fruto do trabalho profícuo da vitivinicultura portuguesa na qual não podemos deixar de incluir os produtores, os cientistas, os críticos e os analistas!              

O Vinho de Portugal tem um desafio de curto prazo para algo que já deveria ter sido feito há anos e para o que agora não pode perder tempo: o de ter um normativo nacional de reconhecimento de sustentabilidade. Não vai ser difícil para muitas das nossas empresas e cooperativas cumpri-lo já que o cumprem de motu proprio na maioria dos requisitos, senão todos, que servirão de referência para esse reconhecimento. Tal sustentabilidade, a que as Resoluções OIV-VITI 641-2020 e OIV-CST 518-2016 dão a letra, tem que, da parte de Portugal, ter um foco especial na vertente cultural já que de tal podemos tirar partido uma vez que a RDD é a mais antiga região demarcada e regulamentada do mundo e, coincidentemente, o ADV é Património Mundial da Humanidade, Paisagem Cultural Viva e Evolutiva, reconhecida pela UNESCO. Além de que a especificidade de cada região e dos seus processos de vinificação tem de reflectir-se no carácter do vinho produzido e o torna especial e único e isso deve ser explicado ao consumidor e estimular a willing to pay por esse produto sustentadamente diferenciado. Assim, a sustentabilidade económica, social e ambiental deve articuladamente compreender a sustentabilidade cultural a que aludem aquelas Resoluções da OIV. Mas vai ser mais difícil, se bem que não é impossível, ao Vinho de Portugal, conseguir pôr-se à velocidade a que internacionalmente o sector tem incorporado a inovação relacionada com a sustentabilidade: novas embalagens e formas de transporte, novos perfis de vinho, novas atitudes comerciais perante as novas gerações. Não se fale só de substituir vidro pesado por vidro leve: falemos de alterar o formato das garrafas para melhor eficiência na ocupação do espaço de transporte; de substituir vidro por outros materiais; de diversificar as formas e tipos de bag-in-box, assim como formatos e capacidades de vinho em lata; de produzir vinho de categorias mais leves em grau alcoólico para competir com bebidas de graus congéneres etc. etc. É claro que irá sempre haver espaço para todos os que, como nós hoje aqui, queremos continuar a poder tirar ou fazer saltar a rolha a uma garrafa e bebê-la com estilo, apreciação e gosto com os nossos amigos mas a concorrência internacional neste campo é cada vez mais forte e será suicídio ignorá-la. De hoje para amanhã deveremos também poder entrar num restaurante ou numa tasca castiça, apontar o nosso iPhone ao QRcode e seleccionar de qual bag, da fila dos coloridos e impressos com imagens cativantes e sedutoras, pendurados em cima do balcão na caixa de acrílico em ambiente de temperaturas controladas, queremos preencher o nosso copo! Também vai ser mais difícil ao Vinho de Portugal - mas tem que ser capaz, chamando ao seu campo investigadores, académicos e opinion-makers que saibam argumentar contra a demagogia - resistir à onda anti-álcool que se aproxima e que o toma, ao vinho, como alvo principal, já que assim congrega na sua ofensiva interesses múltiplos a que se somam alguns do próprio sector do álcool e que beneficiarão se diminuir a quota de mercado do vinho relativamente à de outras bebidas alcoólicas. Saber argumentar defensiva e afirmativamente será cada vez mais importante em diferentes fóruns: no da saúde, no do marketing, nos do aprovisionamento de entidades e mercados.

O Vinho de Portugal tem um problema: o do Vinho do Porto. Que tem que resolver. Desde há anos que tem descido a exportação, desde há anos que tem descido o seu consumo. Esta descida é má para o Vinho do Porto e é muito má para o Vinho de Portugal. Se na sua esteira se fizeram outrora exportações de outros vinhos, nalguns casos o Porto hoje em dia segue à boleia de encomendas de outros. E isto não pode ser. Perdemos todos. No capítulo pósfacio 20 Anos Depois do seu DOURO, RIO, GENTE E VINHO, António Barreto já tocou de forma transparente este assunto, em 2014, chamando a atenção para algo que ele entendia que "O Douro parece estar a conseguir algum êxito num domínio de tradicional dificuldade: renovar, fazer evoluir e mudar, mas preservar o essencial." Todos nos convencemos que sim. O enoturismo, a Ribeira de Gaia, os investimentos no Douro, os novos produtos Portonic, o Pink. Claro que a pandemia fez um hiato. Claro que tudo pode e vai dar a volta. Wishfull thinking. Há que fazer muito mais. Como disse também António Barreto "A experiência e a cautela, bem doseadas, e a ousadia, são as receitas." E são. Por isso, há que resolver o problema, tomar decisões e partir para uma política comercial agressiva, ousada, moderna e mundial. Com um plano decidido interprofissionalmente. Não é compreensível que no país do Vinho do Porto folheemos revistas e jornais em que não haja artigos de informação e publicidade sobre Vinho do Porto. Está presente na nossa História, e de que maneira!, mas está ausente das nossas ementas de restaurantes! É inaceitável que haja bares em Portugal nas praias, nos hotéis, nos restaurantes, sem um cartaz moderno sobre Vinho do Porto! É inaceitável que os jornais e revistas de grande circulação internacional não tenham, de forma regular, propaganda e artigos e não só nas revistas sobre vinhos, também nas revistas de outros públicos porque é em públicos novos que devemos procurar novos consumidores. Se a população mundial aumenta, potencialmente aumenta o número de consumidores. Tudo isso custa caro? Muito mais caro a Portugal está a custar a diminuição das exportacões e de consumo de Vinho do Porto. Fizeram-se estudos sobre os porquês, façam-se mais estudos, como se queira, mas, por favor, passe-se à acção! Andar a rondar as 100 000 pipas anuais de benefício sem daí descolar será aceitar com resignação a decadência dum produto cujo potencial tem ainda muito para dar e por muitos e bons anos! Estabeleçam-se metas para a sua resolução mas não se perca mais tempo! 

O Vinho de Portugal tem um grande futuro! Em primeiro lugar, pelo seu grande passado. Dos três produtos alimentares portugueses emblemáticos, identitários e de distribuição em grande escala, as conservas, a cerveja e o vinho, este último é aquele que ainda antes da nossa nacionalidade já se encontrava no território, de norte a sul e do interior ao litoral, essencial à economia, como vinho, como vinagre e, mais tarde, também como destilado, mantido em utilização ininterrupta até hoje, presente na alimentação, na indústria, na medicina e na religião, nas nossas cidades e aldeias e nas nossas comunidades espalhadas pelo mundo, companheiro nas nossas viagens, factor de civilização e desenvolvimento dos nossos territórios, lastro seguro e essencial da nossa balança de pagamentos. Em segundo lugar, pela maleabilidade e tangibilidade do seu investimento, passível de rápidas transformações e convertibilidade, associação ao turismo e factor de percepção de valores associados à natureza, ao bem-estar, à saúde, com reconhecimento internacional e, como tal, elemento seguro para aplicações de capital. Em terceiro lugar, pela grande biodiversidade das castas que lhe dão origem, garantia de carácter e, ao mesmo tempo, de resiliência perante a evolução climática que se verifica, em que, fatalmente, algumas castas terão de mudar de localização para continuar produtivas e outras irão ocupar esses espaços para que a produção se possa manter nesses terroirs. A nossa grande biodiversidade é o grande trunfo para que não tenhamos que produzir vinhos iguais aos outros, de perfil de três ou quatro castas e que só com heterodoxos cruzamentos híbridos sobreviverão dentro de décadas. A nossa biodiversidade vitícola terá que ser mantida em investigação permanente e evolutiva como o tem feito a PORVID para detecção e multiplicação dos clones intravarietais que permitam fazer face aos desafios climáticos e exigências ambientais: será a grande chave para a manutenção saudável e produtiva dos nossos vinhedos. Finalmente, porque o Vinho de Portugal é feito com a nossa vontade, a de um povo que quis o mar e o teve, como nos sussurra Pessoa, e nos ensina a arte de ver a história de cada um, como dizia tão bem o argentino (também português pela sua costela duriense) Jorge Luís Borges. 





Nota Final: estive em funções como Vice-Presidente do IVV desde 7 de Janeiro de 2019 até 20 de Julho de 2021. Foram dois anos e meio cheios, desafiantes e em que tive o privilégio de me integrar numa competentíssima equipa técnica e, com um acolhimento amável da parte do Presidente e total solidariedade, trabalharmos juntos de forma próxima para que uma série de diplomas pudessem ser finalmente publicados (o DL 61/2020 e a Portaria 142/2021, entre outros); alguns conceitos ser incluídos no Vitis (o das vinhas históricas, por exemplo, para o qual contámos com a colaboração sábia de Bianchi de Aguiar, de Jorge Dias e de técnicos da DRAPNorte); ser actualizada a lista de castas correspondendo a expectativas de CVRs, Institutos e operadores económicos; ser iniciado o desenho de novas DOP no futuro (por exemplo a das Arribas, incluída no leste da de Trás-os-Montes confinante com a das Arribes espanhola e que ainda carece de estudo e de aprovação do CG da CVRTM); terminadas portarias de regulamentos de DO e IG de algumas regiões que o aguardavam há anos; alterada a legislação do SVC que, finalmente, se pôde estender a todo o País; produzidos os projectos de medidas de emergência que no âmbito da Pandemia COVID19 foram assumidos pela Tutela e ainda uma série de outros trabalhos que seria fastidioso aqui trazer mas dos que, a seu tempo, a informação foi prestada aos conselheiros do Conselho Consultivo do IVV. Também acompanhei de forma permanente, mas sem intervenção directa, por desnecessária, toda a Presidência Portuguesa da União Europeia que decorreu entre 1 de Janeiro e 30 de Junho, tando tal sido uma experiência inesquecível da competência dos técnicos superiores portugueses que da parte do GPP e do IVV intervieram nos diferentes assuntos do dossier vinha, vinho e bebidas espirituosas, sem os quais seria impensável alcançar os bons resultados que tivemos. É espantosa a dedicação, trabalho e proficiência das escassas dezenas de funcionários do IVV que vi multiplicar por estes e muitíssimos outros assuntos que são competência deste Instituto e cumprir, perante os stakeholders, a Tutela, o IFAP e o GPP, com quem a articulação é forçosamente próxima tal como com  a ASAE e o IPAC, e ainda a IGAMAOT, o TContas e as DGAGRI e DGSANTÉ que nos auditam, sem esquecer os tribunais onde decorrem processos de contencioso. O conjunto de edifícios em que está a sede do IVV, património da Vitivinicultura Nacional, constituído pelo Palacete Amélia Leite Ferreira, pelo edifício Cassiano Branco e pelo Pavilhão Seabra (sobre o qual está a sede da ViniPortugal) cumprirá um século nestas funções no final da próxima década, dentro de dezena e meia de anos bem contados, dezasseis, precisamente. As vindimas daqui até lá produzirão muitos milhões de toneladas de uvas e estas muitos milhões de hectolitros de vinhos, aguardentes e brandies, álcool, portonics, pinks e outras novidades. Que esse centenário, quando chegar, signifique que o sector esteja mais rico, com mais qualidade e com cada vez mais orgulho no Vinho de Portugal!  

Para terminar, um brinde, com todos a acompanhar-me: viva o bom Vinho de Portugal!

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A BASÍLICA DA ESTRELA

 © Manuel Cardoso

Outubro 2020

 

 



(Nota prévia: as fotos deste post não fazem justiça nem aos locais nem às cenas a que se referem e não dão deles nem os cheiros, nem os sons, nem os sabores, por isso, será imprescindível que os leitores vão aos locais, demorem tempo a neles passear, a visitar e a provar um bom vinho e a trincar um cibo nas tascas e restaurantes da Estrela e da Lapa, a viver cada instante neste sítio notável que é todo o conjunto e, especialmente, a Basílica da Estrela).

Mudámo-nos recentemente para a Lapa, em Lisboa, para um apartamento de recurso que arrendámos na Rua de São Ciro, onde vivemos durante Junho, Julho e Agosto.

Desde Janeiro de 2019 e até aos inícios de Março deste ano, a Mariana e eu estivéramos em Benfica, num andar que a minha irmã Pilar deixou aos nossos filhos, então nele vivendo só nós e o Manuel, porque o Vicente já há anos decidiu ficar autónomo e o Vasco zarpou para a Alemanha há quase três, e foi daí que partimos para Trás-os-Montes, empurrados pelas notícias da epidemia de SARS-COV-2 na iminência de ser decretado o Estado de Emergência, nesse mesmo mês.

Na nossa casa de Latães ficáramos até ao fim de Maio, tendo eu cumprido o meu teletrabalho, com uma ou outra vinda entretanto ao IVV na Mouzinho da Silveira, e de lá arrendámos, pela net, este apartamento à Estrela, percebendo que seria um dos de alojamento local para turistas que há por Lisboa e que este ano têm estado com menos procura.

À chegada a São Ciro ainda houve algumas peripécias que nos fizeram estar uns dias num T1 do primeiro andar que não era o que víramos e combináramos pela net, em vez de no do terceiro, que acabámos por escolher e como desejávamos. Foi tudo sendo ultrapassado e acabámos por nos habituar à rua, apesar de suja e mal cuidada pela câmara, aos cinquenta degraus das escadas exíguas do número 51, ao ar, ao vento e sol do sítio, à luz, às pessoas raras que ali passam, aos pombos e à passarada que canta nas árvores dos jardins desertos do fechado e vazio hospital militar. Nossas companheiras habituais as gaivotas, uma colónia de gaivotas de patas amarelas (ditas argênteas, por causa do tom luminoso do seu cinzento alar de prata) estridentes e curiosas, que esvoaçam e habitam nos telhados, balaustradas e portadas de vidros partidos do grande edifício do antigo Convento do Sagrado Coração de Jesus. Passaram a ser elas o nosso despertador e não foram poucas as noites em que do nada, pelas nossas janelas abertas, se ouviu o seu característico gritar que se nos tornou familiar.


A Mariana e eu escolhêramos o sítio por causa de se poder ir e vir para o IVV a pé e sem se ter de apanhar transportes públicos e, com isso, minimizarmos as probabilidades de contágio. E gostámos de estar ali desde o primeiro dia porque houve uma coisa que nos atingiu logo nesse primeiro dia – e que ainda não cessou de nos fascinar! – assim que tivemos o carro estacionado na Rua de São Ciro para descarregarmos as nossas coisas. Também a vimos logo a seguir ao assomo à janela do apartamento do terceiro andar, esteve sempre presente quando passeávamos pelas redondezas e ao irmos pela Bela Vista, espreitando-nos pelas travessas do Pinheiro ou da Oliveira, ou por entre as árvores, ao descermos a Domingos Sequeira, ou ao subirmos a Calçada ao dobrar a esquina com a João de Deus, aparecendo num súbito, ou, sempre que nos aproximávamos, com a sua majestade e elegância femininas, que se revelava ao atravessarmos o jardim e ao chegarmos aos portões: a Basílica da Estrela. Não ficámos só fascinados: ficámos e estamos completamente arrebatados por ela!


Ir e vir para o IVV, no trajecto mais aprazível, atravessa-se o Jardim da Estrela. De manhã e à tarde. Passados os portões, cápsula do tempo ante-covid! Sol baixo a despertar, temperatura ainda a permitir orvalhos e humidades das regas e das mangueiradas de limpeza do espaço, já as pessoas por ali fazem percursos a correr nos seus fatos de treino, outras em turmas organizadas com treinador exercitam-se sobre tapetes individuais em flexões e alongamentos, há quem passeie os cães, ouvem-se os pássaros e os piriquitos-de-colar e da Guiné emprestam as notas exóticas que ali combinam com o arvoredo também exótico. À tarde, em sentido inverso, calor num Éden diário de descontracção e felicidade, autêntico parêntesis nestes tempos de aflição e ansiedade, sensação tão boa de estar num espaço de aparente liberdade e esperança, sol, relva e mantas no chão, com tanta gente de todas as idades a aproveitar o bom tempo e o convívio, uns a fazer ginástica, outros na conversa, bolos e bebidas, até livros e computadores, alguns a dançar – e a fazê-lo primorosa e elegantemente! – não faltando olhares e movimentos de caça, com sedução e erotismo. Passou a ser uma fase importante do nosso dia e, até, à noite, a do tempo gasto no Jardim da Estrela, e com que prazer o fazemos![1]   

Havia quase três meses, desde 8 de Março, que deixáramos de ir à missa presencialmente. As imposições sanitárias fecharam as igrejas, como se sabe. Mas num dia em que regressei não tão tarde do IVV, seriam cerca das seis e meia, reparei, ao começar a atravessar o largo, que as grades dos arcos das portas da fachada da basílica estavam abertos e algumas raparigas e rapazes entravam no grande templo. Aproximei-me. Ia haver missa a que se poderia assistir! Telefonei à Mariana e fomos os dois! Cinco de Junho. Metêmo-nos por uma porta exclusiva para a entrada, lemos os avisos para colocar máscara obrigatoriamente, notámos um frasco com esguichador de álcool-gel numa mesa e outros nas mãos de acólitos e de ajudantes voluntários que o iam aplicando, vimos os dísticos amarelos colados nos bancos para estabelecer intervalos entre as pessoas e que alguns destes estavam com as costas encostadas aos assentos para que não se usassem e se cumprisse a distância de segurança. Foi emocionante. Já tinha um significado especial para nós naquela igreja, em que havia quase um ano que ali não entrávamos e onde então veláramos a minha irmã Lígia, tendo sido o seu caixão conduzido desde o altar-mor até ao carro funerário aos meus ombros e dos meus três sobrinhos seus filhos. Impossível não o recordar.

E estar ali nestas circunstâncias especiais, como tão especial e triste tinha sido essoutra, a participar numa missa tão diferente e intemporal, com pessoas a assistir tão empenhadas, outras a cantar tão bem, e todos envolvidos nessa atmosfera de um mundo que, de certo modo, estará para nunca mais ser o mesmo, ficou-nos indelevelmente marcado. A comunhão foi orientada pelos acólitos de modo a que estivéssemos sempre distantes uns dos outros e em silêncio, retirando-se as máscaras só quando na iminência de colocar a hóstia na boca com a nossa própria mão, e a saída fez-se ordeiramente, primeiro pelos que estavam mais próximos da porta e cumprindo esse critério. Só no final e junto do guarda-vento foram recolhidas as esmolas do ofício, por ajudantes que, silenciosos, seguravam nas mãos uns sacos de veludo vermelho escuro, já abertos, em que se podiam deixar as moedas e notas.

Foi desde então, trocando umas palavras no adro e ao vento, olhando de relance a conhecida fachada, que nos demos conta de que quase nada sabíamos sobre esta tão magnífica igreja, a não ser os lugares comuns, o de resultar dum voto da rainha para ter um filho varão, de ser do barroco tardio, da escola de Machado de Castro, de que nela há um incrível presépio de barro, madeira e cortiça,…, e dispusemo-nos a alterar esse estado de coisas, procurando informação e passando a estar atentos, a ler e a fazer pesquisas. O Guia de Portugal, edição da Gulbenkian, pois claro, a Lisboa Desaparecida da Marina Tavares Dias, e muitos mais artigos e teses com que não vamos maçar de títulos os leitores mas apenas citar com justiça alguns nomes a quem estamos reconhecidos: Sandra Costa Saldanha, Mónica Ribeiro de Queiroz, Simão de Xavier, Francisco Xavier Costa Henriques, César Chaparro Gómez, Giuseppina Raggi, Manuel F.C. Pereira, Carla Carvalho Tavares, Paula Noé, Teresa Vale, Carlos Gomes, Isabel Mendonça, Joana Fonseca, Paula Correia, Paula Figueiredo, Rosário Gordalina, Júlio Grilo, Isabel Stillwel, o Padre Gonçalo Portocarrero[2]. Uns mais e outros menos, todos foram fonte de informações e pistas. Disto trata este post deste nosso blogue.[3]

Há alguns mitos urbanos que circulam sobre a igreja (e quando referimos a igreja, estamos a referir-nos ao seu conjunto: a basílica, o convento e o palacete) sendo que um é o do seu custo enorme e o de que a sua construção teria exaurido os cofres do Estado e depauperara o País. Outro, é o de que a Rainha D. Maria, visitando as obras[4], teria feito notar ao arquitecto[5] que não ficava bem que a porta do meio da fachada, afinal a de honra e festa, fosse do mesmo tamanho que as outras, e este, triste com o reparo, se suicidara! Quanto ao primeiro mito, há que esclarecer o seguinte: todo este monumento é integralmente português, talvez como nenhum outro: a não ser sete das telas dos retábulos dos altares – e que telas! – que foram adquiridas ao atelier do celebérrimo e então na moda Pompeo Batoni, que residia em Roma, tudo o mais, desde os autores do projecto de conceptualização e execução, materiais, mão-de-obra de artesãos e artistas, escultores, pintores, mestres pedreiros, organeiros, entalhadores, mobiliário, trabalhos em pedra, em madeira, em metais, em vidro, alfaias do culto, tudo, tudo, foi de origem nacional. Por isso todo o dinheiro gasto na sua construção ficou distribuído na economia nacional, foi directo para as mãos de artistas portugueses, serviu para lhes pagar o trabalho e estimular a expertise. Devem ser raríssimos, tanto nessa época como hoje, os casos em que tal acontece. Quanto ao segundo mito, o Arquitecto Mateus Vicente de Oliveira (foi o primeiro arquitecto, autor do desenho original, depois seguiu-se-lhe Reinaldo Manuel dos Santos, tendo havido também outros temporários ou com contributos menores, mas Mateus Vicente de Oliveira foi, sem dúvida, “o arquitecto da Estrela”: da igreja, do convento e do palácio) estaria descontente com algumas críticas que se faziam sentir pelo estilo peculiar, mas a sua morte veio a ocorrer após meses de debilidade na sequência duma queda numa outra obra.[6] Na realidade, a fachada ficou a dever-se, na sua apresentação definitiva, a Reinaldo Manuel dos Santos, sendo que a parede do interior da galilé com as portas para a igreja tem o risco de Mateus Vicente, até com a porta nobre central maior que as demais e encimada por uma das suas características contracurvas (em contracurva seria o desenho original da fachada, que Reinaldo Manuel veio a modificar para o neoclássico frontão triangular).    

Não é por acaso que o conjunto do edifício capta a nossa atenção, mesmo de longe. A cúpula, as torres, os sons emitidos pelos sinos (quase 17 toneladas de sinos com um timbre característico de bronze íntegro e potente) despertam mesmo um passeante desatento. Sobretudo às 11.50h dos Domingos, campanadas graves dos grandes bronzes da torre nascente, um deles um colosso de 4.320 quilos (o mais leve tem 80)![7]

O edifício da basílica, convento e palácio impõem-se na mole urbana e salientam-se na linha de cumeada dos telhados e arvoredos pela sua majestade e beleza, sem arrogância, com um porte adequado à circunstância do dia ou das estações, com uma distribuição das sombras e dos reflexos que vai mudando com o dia, sobressaindo das suas caneluras, curvaturas, entalhes e arestas, animando a pedra, fazendo com que a consideremos como algo vivo e por isso nos não surpreenderia se alguma vez, ao voltarmos para si o nosso olhar, a víssemos mais aconchegada para não apanhar tanta chuva ou mais direita para espairecer ao sol. Elegante como uma Senhora. Mas sempre com um ar donairoso e feliz, recatada se as cerimónias são de luto, atrevidíssima se são de música e festa, provocando a vontade de lhe ser galante com piropos nobres. 

Se as torres e os sinos, que se sobrepõem ao entorno, já por si suscitam interesse, e se a cúpula, identificável a partir de tantos pontos da cidade, lhe dá uma distinção de referência, é sobretudo a fachada, com toda a sua escultura significativa e adornos simbólicos, que produz o maior efeito de íman e convite, de chamamento, como de alguém que mete conversa connosco.

O adro lajeado e circunscrito por 22 frades de lioz faz manter à distância veículos e obriga a flectir as pernas e a fazer o movimento de olhar para baixo para subir os primeiros quatro degraus a partir do passeio e, logo a seguir, de olharmos então para cima, assumindo toda a cantaria de pedra uma perspectiva singular que provoca a sensação feliz de estarmos a caminhar – e quase a alcançar! – uma das dimensões do absoluto, logo acentuada pela segunda vez em que, ao nos aproximarmos, temos de subir mais um nível de cinco degraus e de novo fazermos o gesto de olhar para baixo e a seguir para cima, focando-nos outra vez no edifício de que, agora sim, começamos a ouvir também, a sentir próxima a grandeza e a majestade e a poder ver toda a pedra a mover-se por nossa causa! Porque só agora, junto das portas, das estátuas, quer ficando cá fora algo embasbacados a olhar para tudo, quer entrando na galilé[8], nos damos conta de que pequenos somos diante da escala dum monumento tão bem conseguido para produzir tais efeitos.

Até o vento está quase sempre presente a varrer o lajeado do adro como se chegasse ali o sopro bíblico que agita a vida! Virá do mar, virá do deserto?

Ao flanquearmos a grade metálica e as portas de vidrinhos de acesso ao interior teremos sempre a sensação, mesmo quando ninguém vemos por ali, de que há mesmo alguém a receber-nos e a cumprimentar-nos – e cremos que está! Um pouco como se aquelas estátuas, sendo imagens de pessoas que existiram realmente, Maria e José na galilé, todas as outras lá fora, ali posem, investidas da sua presença, em vez de meros inertes de pedra na sua condição inanimada… e até podemos dar-lhes bons dias e boas tardes que nos ouvem, de certeza! Prodigioso, esse efeito! De se fazerem mesmo presentes a convidar-nos, a dar-nos o braço ou a distinguir-nos com a sua inspiração sábia e intemporal, a sua eternidade enorme ao pé da nossa vida humilde tão curta e carente! Apetece-nos logo pedir coisas. O que está certo. É para isso que serve um templo. Para nos inspirar a pedirmos as coisas certas para a nossa vida. Que é a melhor forma de louvar a Deus: pedir e agradecer as coisas certas. É tão intensa e sensível a impressão que causam que o melhor é sairmos para depois entrarmos de novo.

Já impressionados nos nossos sentidos, despertos para experimentar coisas inesperadas, ficaria a faltar referirmos aqui a sensação de voar que acontece indo ao terraço – e fizemo-lo pelos 113 degraus da escada de caracol de acesso, passeando pelo lajeado da cobertura ao mesmo tempo que observávamos a paisagem à volta, desengraçadamente, sem a impressão de vastidão que nos deveria dar um lugar alto… até chegarmos à porta que dá para o interior da cúpula, no interior da igreja e, aí, sentir a coisa rara de nos encontrarmos num plano etéreo, vendo de cima o nosso minúsculo ponto em que no dia-a-dia nos ajoelhamos, a nossa vida pequena, dando-nos substância para meditarmos na escala tão relativa das nossas confusões e medos, desejo de nos desembrulharmos do pesado para nos dotarmos duma simplicidade leve… 

Mas voltemos ao adro, recuemos e olhemos para cima. Compreendamos a fachada. Recomecemos a partir do passeio, com uma visão do conjunto.

Ao centro, sob a cruz, no frontão, o triângulo de Deus, um só Deus em três pessoas da Santíssima Trindade, dos três lados iguais, o do Pai, o do Filho e o do Espírito Santo, com o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim de todas as coisas, sobrepostos ao esplendor que irradia a Luz de Deus. Sobre a moldura, feita de motivos enrolados e elementos vegetalistas, um enorme girassol, simbolicamente a planta que olha para o astro que é a nossa fonte de energia, luz e equilíbrio, ali inclinada sobre o centro da vida.  

Por baixo deste, o baixo-relevo da Adoração ao Sagrado Coração de Jesus, o culto de base de todo o templo e convento. Neste baixo-relevo estão três Anjos, sendo um deles o Anjo-custódio ou Anjo da Guarda de Portugal e outro o Anjo Tutelar da Rainha. O culto tinha sido aprovado para a Polónia e Roma em 1765, para Portugal e seus territórios e domínios em 1777 (mas só viria a ser aprovado para todo o mundo em 1856)!   

Nos nichos da fachada, o Profeta Elias, em cima, à esquerda, e S. João da Cruz à direita. Em baixo, Santa Teresa de Ávila[9] e Santa Maria Madalena de Pazzi, respectivamente. A relação destas pessoas entre si tem a ver com o denominador comum dos Carmelitas Descalços, a Ordem do Convento em que a basílica se integra.

As quatro Virtudes que encimam as quatro colunas da fachada são, da esquerda para a direita: a Fé, a Devoção (Adoração), a Gratidão e a Liberalidade (Generosidade).[10]

Cada uma das esculturas da fachada merece atenção, tal como todas as do interior, a da Virgem e a de S. José, na galilé, as da Cruz e dos Anjos, Serafins e Querubins dos altares, as da Fé e Esperança, sobre o altar do Santíssimo, da Caridade e da Fortaleza, na direita do transepto[11] sobre o acesso ao coro baixo/capela do Senhor dos Passos, tal como a composição dos dois anjos ajoelhados em oração de um lado e doutro do resplendor divino sobre o alto da capela-mor. A elegância das formas, o rigor dos atributos, a perfeição dos diferentes conjuntos remete-nos para um reconhecimento da superior qualidade de todas as peças. Os seus escultores foram Alexandre Gomes, José Patrício, José Joaquim Leitão, João José Elveni e Faustino José Rodrigues, sempre sob a visão e a mão de Machado de Castro. Ao mestre se deve a imagem de S. João Evangelista, de um dos altares. Quanto ao túmulo de D. Maria I, a Fama e o Putto que o decoram dum lado e doutro do medalhão com a real efígie saíram da maestria de Faustino José Rodrigues (1760-1829), o aluno predilecto de Machado de Castro, tendo sido desenhado por Giovanni Chiari.[12]

O ambiente interior da basílica, se nos deslumbra pelo cromatismo da pedra nos seus coloridos,[13] combinações e formas entalhadas no chão, nas paredes e nos tectos de abóbadas, é tonalizado pela luz que de fora chega sem perturbar e nos faz querer perceber, uma a uma, as cores das telas cheias de significados. Para quem entra, do lado esquerdo temos, sucessivamente, de Batoni, a tela de S. João Evangelista a escrever o Apocalipse no altar de Santa Teresa; a de Santa Teresa a receber as ofertas da Rainha de Portugal na presença das Freiras Carmelitas no altar de Nossa Senhora do Monte do Carmo; o episódio da Incredulidade de S. Tomé no altar da Mater Dolorosa, hoje de Nossa Senhora de Fátima. Do lado direito, também de Batoni, uma tela com Santo António e S. Francisco no altar de Santo António e uma tela do Sonho de S. José no altar de Nossa Senhora da Conceição. Ainda deste lado e antes do transepto, no altar do Sagrado Coração de Maria, a tela da Devoção ao Coração de Maria, também chamada Alegoria ao Anjo-custódio do Reino, em que figuram os três Arcanjos ou Anjos Custódios, Miguel, Gabriel e Rafael, que foi pintada pelas Princesas Dona Maria Francisca Benedita e Dona Maria Ana Francisca Josefa, irmãs mais novas da Rainha D. Maria I, alunas do pintor Joaquim Carneiro da Silva. No altar do Santíssimo, lado esquerdo do transepto, está a tela da Última Ceia, de Batoni.

Há outras telas doutros pintores, nomeadamente de Pedro Alexandrino de Carvalho: a Ceia de Emaús, S. Paulo Eremita recebendo o pão do seu sustento, Educação da Virgem por Santa Ana, Calvário (na sacristia) e de Cirilo Wolkmar Machado.

No altar-mor, à esquerda (diz-se do lado do Evangelho), Santo Agostinho e São Gregório e, à direita (diz-se do lado da Epístola) Santo Ambrósio e São Jerónimo. Só que neste altar, aliás, na basílica toda de onde se avista, é impossível não sermos inexoravelmente atraídos para a grande tela que Pompeo Batoni pintou em Roma para o retábulo da capela-mor: a Alegoria da Devoção Universal ao Sagrado Coração de Jesus!

Foi pintada em 1781, transportada para Lisboa por mar. Nela figuram: o Coração de Jesus como tema central, de acordo com a descrição da vidente Santa Maria Margarida Alacoque nas aparições no Mosteiro de Paray le Monial em 1673-1675; o Papa Pio VI, protagonista e interlocutor para este culto em Portugal e no mundo; o altar, a hóstia e o cálice, como alusão directa à eucaristia e ao calvário; a mulher e os filhos por si amamentados, símbolo da caridade (amor) e da nutrição da vida sobrenatural da alma; anjos com o sacrário e um anjo apoiado no altar com um livro aberto, alusão directa ao Evangelho de S. João, capítulo VI, à instituição da eucaristia e à habitação de Deus entre nós nesta forma; por fim, as quatro grandes figuras femininas que se encontram na base da tela, personificando os quatro continentes reconhecidos no mundo cultural do século XVIII: da esquerda para a direita, a Ásia, a América, a África e a Europa. A Ásia, de turbante, pérolas, vaso de queimar incenso e outras essências, um camelo; a América, emplumada, de arco e aljava, um jaguar e uma arara; a África, com um elefante e um crocodilo, marfim; finalmente, a Europa, com a coroa de quem domina o mundo, o ceptro do exercício do poder (mas inclinado para o chão já que o seu poder se inclina perante o de Deus), a cornucópia de quem por ele espalha a sua abundância e cultura. Mas há aqui um pormenor curioso… é que na mitologia, a Europa era filha do rei da Fenícia, Agenor, filho de Poseidon, e foi raptada por Zeus, disfarçado de touro para que a sua mulher, Hera, não ficasse ciumenta se o soubesse. Zeus levou Europa para a ilha de Creta onde teve três filhos: Minos, Radamanto e Sarpedão. Daí que a Europa seja sempre representada montada num touro… excepto nesta tela, onde cavalga um soberbo cavalo branco peninsular![14] A razão para tal será porque a intenção de Batoni, interpretando a vontade do encomendante, foi a de personificar Portugal como a Europa, daí o cavalo português em vez do touro, e cada um dos continentes como os territórios que detínhamos nos quatro continentes. Batoni terá, assim, querido transmitir o significado que lhe terá sido expresso de que o culto do Sagrado Coração de Jesus se estenderia ao mundo todo por acção de Portugal e com o beneplácito do Papa!

Não há uma parte da tela que seja mais importante do que outra para o programa de catequese que encerra. O coração e o sangue, o esplendor divino, o fogo, a cruz, a coroa de espinhos, a mesa eucarística, o pelicano eucarístico[15] no frontal de altar, a mãe que alimenta os filhos, o pontífice, a luz jorrando das feridas do coração que ilumina os continentes do mundo.

O reconhecimento do culto ao Sagrado Coração de Jesus no século XVIII tem de ser entendido dentro duma luta ideológica anti-Jansenista[16] na qual os Jesuítas estiveram particularmente envolvidos e activos e Batoni foi o mais importante dos pintores a quem estes tinham já encomendado, em Roma, telas para ser instaladas em duas das suas igrejas neste contexto: na de Santo André do Quirinal e na de Jesus. Esta nossa da Estrela trata-se duma tela composta num programa neoclássico que era natural em Batoni pelo seu estudo atento e admiração da obra de Rafael, de que importou alguma da distribuição das figuras e administração do espaço à semelhança da Transfiguração do Senhor e da Disputa do Sacramento daquele pintor.

Há duas grandes zonas no quadro, ligadas entre si pelo plano das nuvens que, simultaneamente, são o céu material da terra, da sua realidade personificada nos quatro continentes, e o apoio etéreo da parte superior, gloriosa e espiritual. Tal como no primeiro daqueles quadros de Rafael em que até os tons e a paleta de cores são distribuídos de modo análogo.

A figura de Pio VI está presente como se fosse a assinatura do pintor, o mais célebre e requisitado retratista de Papas, Imperadores, Reis e notáveis da sua época. O Papa visitara o estúdio em que o quadro estava a ser pintado em Roma e admirara-o durante a sua execução e tal fora interpretado como um gesto do seu empenho em apoiar um culto que era eminentemente anti jansenista. O facto de Batoni respeitar as proporções e pontos de simetria faz da obra uma obra neoclássica, e o de incluir e misturar símbolos e variedades de figuras alegóricas tornam-no susceptível de ser lido de forma barroca. O que lhe confere mais interesse.[17]

O ponto central do tema do quadro é o sagrado coração com a sua ferida produzida pela lança do soldado romano e que, ao mesmo tempo, é a fonte da água e sangue dos Sacramentos. A cruz surge como um foco de esperança e o coração produz raios luminosos de fogo, luz e calor que atingem toda a composição do quadro. Há um coro de jovens alados, olímpicos, que simultaneamente adoram e velam pelo sagrado coração, imbuídos do mesmo espírito mas com aspectos diferentes quer em tamanho quer nas posições assumidas quer na claridade/obscuridade que os torna semiocultos, escondidos ou evidentes, concordantes e discordantes ao mesmo tempo. Mais abaixo o cálice de ouro e a hóstia de trigo: Deus tornado comida e bebida para as gerações futuras poderem partilhar do seu coração e do seu sangue. À esquerda do altar pintado (à direita para quem vê), está uma mulher bonita e bem proporcionada dando de mamar a um menino e tendo à sua volta outros a pedir também do seu leite, símbolo do coração vivo, alegoria da caridade e do mistério da eucaristia e também referência directa ao amor maternal. Curioso que a postura do Papa é a de estar a olhar para nós, o povo de Deus, com a solene tiara, capa de púrpura, toga branca, sinalizando com o seu braço levantado e a mão estendida o coração radiante de luz, enquanto dois anjos, quase escondidos, sustêm a maqueta dum templo, símbolo da perenidade da Igreja. Do coração se propagam os raios que vêm até ao plano de baixo, onde estão as quatro partes do mundo. O anjo portador do livro seria o do decreto da escolha deste lugar como o do culto ao Sagrado Coração. E dos quatro continentes viriam e neles haveria gentes a venerá-lo, trazendo ouro, madeiras preciosas, marfim, pérolas e pedras preciosas. A Europa, mulher vestida de azul, cabelos apanhados, coroa, ceptro, montada num cavalo branco. África, mulher de cara negra, olhos brancos, turbante agitado pelo vento, colar de coral, marfim na mão. A América, estendendo a mão esquerda para apanhar os raios e com a direita acaricia um jaguar, tem na cabeça uma coroa de plumas de muitas cores, vestido às riscas e com pregas. A Ásia, de perfil sedutor, com pérolas na cabeça e no pescoço, fumos de incenso e um camelo. 

Quando entramos na basílica e vemos a tela a partir do fundo, em parte oculta pelo metal trabalhado do suporte que desde a abóbada sustém dois lampadários, a nossa atenção é captada pelas quatro mulheres da tela, aliás, pelas cinco mulheres da tela: as que simbolizam os quatro continentes e a que simboliza o amor da maternidade. Ora, são também cinco as principais mulheres que aparecem nos Evangelhos: Maria de Nazaré, Mãe de Jesus; Maria Madalena, apóstola entre os apóstolos, a primeira a anunciar a Ressurreição; Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro, discípula; a Samaritana, a quem Jesus pede água e a quem, como judeu, nunca deveria dirigir palavra; a pecadora da Betânia, por quem Jesus se deixa acariciar e perfumar. Se algo mais é possível de ser lido nesta tela, que não sabemos se Batoni de tal teve intenção, é que ela representa o carácter não misógino da Igreja Católica e a imagem primordial que a mulher tem na visão religiosa do mundo. À medida que os nossos passos vão na direcção do quadro começam a surgir e a ganhar vida os pormenores, cruzamo-nos com o olhar expressivo e amigo do Papa, entramos a pouco e pouco nessa atmosfera especial e tão longe dos nossos sistemas de referência modernos mas, ao mesmo tempo, tão presente no que são as cores, a discussão e contradições dos nossos desígnios actuais e das nossas vidas.     

Já deixámos a Rua de S. Ciro, desde o fim de Agosto que nos mudámos para a Rua Braancamp. O apartamento fica mais perto ainda do IVV e isso será bom para os dias de chuva e é um pouco mais confortável que o anterior. Mas, depois de várias tentativas em igrejas circunvizinhas, temos voltado à Basílica da Estrela. Parece que não custa nada subir até ao Rato e a Álvares Cabral, tem-se logo um prémio pelo bom que é atravessar o Jardim da Estrela com toda a sua vida colorida e lenitiva para os tempos sombrios e doentios desta pandemia, e tem-se a seguir a sensação de replecção e completude quando começamos a entrever o branco e cinza do lioz da fachada, se incendeia todo o edifício com os contornos dos fogaréus e o efeito feminino da cúpula, às vezes se lhe ouve o som do bronze percorrendo o espaço com magnetismo, galgamos o alcatrão e as linhas dos eléctricos, chegamos aos frades, subimos os primeiros quatro degraus a partir do passeio e olhamos para cima com a sensação feliz de estarmos a caminhar para outra dimensão, subimos mais um nível de cinco degraus olhando para baixo para não tropeçarmos e a flectir mais o pescoço para cima, para o alto, num relance a todos os que nos cumprimentam familiarmente: Santo Elias com a sua espada flamejante e a roda do carro de fogo, também com as tábuas da Lei de Moisés; São João da Cruz com uma enorme cruz e uma caveira; Santa Madalena de Pazzi com os símbolos da Paixão (que lhe foram entregues por Jesus numa das suas visões) e com um vaso de perfume, aproximação à Maria Madalena (e também às senhoras do jardim e do bairro por si observadas, já aqui as aguardando antes de haver jardim, então aqui vindo nos rituais da corte!); Santa Teresa de Ávila, apoiada numa coluna e representada com dois dos livros seus atributos de doutora e reformadora da Igreja[18]; a Fé, a Devoção, a Gratidão e a Liberalidade, alusivas às virtudes mais cultivadas pela Rainha no decurso da sua vida e exercício do seu governo; os Anjos tutelares, defensores do Bem, executores da Vontade, implícitos e logo ocultos aos nossos passos. Transpomos a grade metálica e as portas de vidrinhos de acesso, Maria e José estão solenes mas também benevolentes para connosco a entrarmos na casa de seu Filho.

Depois cá dentro estão todos, todos, nos transmitindo a importância de, sendo tão pequeninos, aqui sermos considerados inter pares,[19] com grande emoção, nós a dar-lhes a alegria de aqui virmos, com eles partilharmos os nossos problemas, a nossa vida, a nossa esperança. Um pouco do nosso tempo, da nossa pequena fracção já vivida da eternidade em que eles nos esperam e que com eles partilharemos.

Há imensos recantos, pormenores, peças de que haveria tanto a dizer, a explicar, sabedoria a extrair, não nos atrevendo a dizer que o tema é inesgotável mas tendo a certeza de que dificilmente será esgotável. Não conseguimos referir-nos nem a uma pequena parte. Mas seria indesculpável não nos referirmos a outro dos dois túmulos notáveis da basílica. O da Rainha, que já referimos, antes encontrava-se na capela-mor, do lado do Evangelho (à esquerda do altar, será a direita para quem nele estiver a olhar para a assembleia), separado por uma parede, que podemos dizer simbólica do que seria a grade dum confessionário porque do outro lado dela, na sacristia, se encontra, ainda hoje, o túmulo do Arcebispo de Tessalónica, o confessor de sua Majestade D. Maria I. A arca tumular é da autoria de Machado de Castro.

Arcebispo de Tessalónica, que o foi e, dito assim, parece-nos uma figura distante, personagem da constelação intangível dos varões assinalados de que nos fala a História… só que não é o caso. Trata-se dum trasmontano, de mais um dos trasmontanos ilustres que por Lisboa têm conseguido singrar: Inácio Álvares Rodrigues. Seus pais eram lavradores modestos mas com capacidade para pagar os estudos dos filhos. Teve cinco irmãos, todos clérigos. Nasceu em 31 de Julho de 1718 em Chaves. Os pais destinaram-no ao serviço militar, chegando a assentar praça em 1732 em Chaves mas desiste e foi para Salamanca no ano seguinte, estudando Humanidades, regressando a Chaves onde estudou Latim e, em 1735, entrou na clausura do convento carmelita de Nossa Senhora dos Remédios, em Lisboa. Em 1736 terminou o noviciado com o nome de Frei Inácio de S. Caetano: Inácio por ter nascido no dia de Santo Inácio de Loyola, 31 de Julho; S.Caetano por ter sido baptizado no dia deste santo, 7 de Agosto, em Chaves. Estudou Filosofia em Évora, Teologia em Coimbra, foi ordenado presbítero com 25 anos. Inteligente, metódico, aplicado, arguto e eficaz na realização de obras e concretização de decisões, estas qualidades ultrapassaram alguns defeitos naturais como a rudeza de modos e sua falta de verniz duma educação cortesã que não tinha tido e cujos protocolos só foi aprendendo ao longo da vida. Foi para Braga como docente de Teologia e director espiritual do Arcebispo Primaz, D. José de Bragança. Fez entretanto uma viagem a Espanha, a Pastrana. Em Lisboa ingressou no Convento de S. João da Cruz, em Carnide, em 1757. Nesta fase, em pleno Governo de Pombal, terá tido a confiança do déspota a ponto de ser nomeado Deputado da Real Mesa Censória o que fez suscitar invejas e alguns o associarem ao cancelamento do nome e do culto a Santo Inácio de Loyola. Mais deu nas vistas e concitou ciúmes ao ser indicado para confessor da Princesa do Brasil, futura Rainha D. Maria I, e ser indigitado para Bispo de Penafiel, bispado efémero que foi um mero joguete político do Marquês. No entanto, a Rainha manteve-o como confessor após a demissão deste último e as suas posições conservam-se com a Viradeira de 1777, o que suscita e aumenta novas invejas e intrigas contra si da parte dos que esperavam ver postergados todos os que tinham estado comprometidos com o Pombal. Foi eleito Arcebispo Titular de Tessalónica em 1778 e, volvida uma década, em 1787, Inquisidor Geral do Reino. Cresceu uma fronda fomentada sobretudo pelo Visconde de Vila Nova de Cerveira que aspirava ao cargo de Ministro Assistente do Despacho, cargo cuja nomeação viria a ser feita ao Arcebispo de Tessalónica, Frei Inácio de São Caetano. Adoeceu inesperada e gravemente no Palácio de Queluz onde morreu a 29 de Novembro de 1788, pelas seis horas da tarde, oficialmente com uma hidropisia da cabeça. Correram várias versões sobre esta sua morte, aos sessenta anos: a mais corrente foi a de que fora assassinado à pancada com sacos de areia com que lhe terão batido nos jardins de Queluz. O autor ou mentor do atentado terá sido alguém inspirado pela inimizade que o príncipe D. João nutriria em relação a si ou por alguém a mando do Visconde de Vila Nova de Cerveira… para outros teria sido resultado de uma congestão já que os seus propalados hábitos de glutão a tal terão levado mas esta versão poderá ter sido colocada a circular para mascarar a relacionada com a primeira e encobrir a conspiração criada nalguns meios da corte contra si. Foi primeiro sepultado na igreja de S. João da Cruz em Carnide, em 1 de Dezembro, depois exumado e conservado em caixão na Capela do Sacramento que ele próprio mandara construir no mesmo convento em Novembro de 1789.

Finalmente, trasladado para o mausoléu magnífico em que se encontra, na sacristia da Basílica da Estrela, em 5 de Fevereiro de 1790. O texto para o primeiro epitáfio que teve incluía as palavras “hujus Monasterii Promotor” que era absolutamente verdadeiro: a ele se terá ficado a dever a inspiração, a influência nos pensamentos nos momentos certos e as acções discretas mas decisivas naqueles de quem dependeu o avanço para a execução da obra, ou seja a Rainha D. Maria I e D. Pedro III que, consigo, constituíram o trio fundador do Convento e Basílica do Sagrado Coração de Jesus, a Basílica da Estrela.[20]

Como já dissemos, desde o fim de Agosto que nos mudámos para um apartamento na Rua Braancamp e o estarmos mais próximo do IVV foi determinante para a escolha. Só que desde logo ficámos com uma sensação de ausência, de carência de qualquer coisa. E assim, estando a apenas um quarteirão de distância do meu local de trabalho, como nos tínhamos habituado a passear a pé por Lisboa como forma de nos mantermos fisicamente bem, o certo é também que, para continuarmos o nosso salutar exercício físico e para preenchermos esse sentimento de faltar qualquer coisa, sempre que temos tempo subimos até ao Rato, dali pela Álvares Cabral até à estátua deste e é com emoção e alegria que continuamos a entrar no Jardim da Estrela como quem passa para lá do espelho de Alice, observamos, como se fosse uma novidade de todos os dias, todas as pessoas e todos os seus hábitos, avançamos esperando ver dançar, fazer ioga, seduzir e namorar, exercitar ginástica, passear carrinhos de bebés, ver as expressões ocupadas dos que falam nos seus telemóveis, que ensaiam no coreto ou nos espaços, que comem e bebem em piqueniques de festa ou de fruição do tempo, que passeiam os cães ou que, por ser ou estar ali simplesmente, cumprem o importante papel de elementos vivos da condição humana.

Tal como nós, avançando nas sombras misteriosas das héveas e de todo o verde em direcção ao recorte das torres e da cúpula, do som dos sinos, ouvidos e surgidos entre as ramagens dos pinheiros chamando, deixando-nos conduzir fascinados e correndo para o nosso já indispensável arrebatamento – atravessamos a rua, pisamos o lajeado do adro, subimos os degraus cumprindo mais uns centímetros na direcção certa para o infinito que, ali, tem uma das suas portas de pedra sinalizada por uma escolta viva de arte!                   



[1] O Jardim da Estrela foi inaugurado em 1852 e teve estufas e um pavilhão chinês que já não existem, tal como uma jaula com um leão, tendo este último servido de mote ao título do filme de Artur Duarte “O Leão da Estrela”, de 1947, em que um fã do Sporting vai ao Porto assistir ao clássico desafio de futebol fazendo-se passar por rico… É uma conhecida e divertida comédia com António Silva, Milú, Curado Ribeiro, Laura Alves, Artur Agostinho, Pedro Moutinho, além de outros excelentes actores! Formalmente o Jardim tem o nome de Guerra Junqueiro (1850-1923), escritor português, trasmontano, autor de A Pátria, entre outros, que nos dá a deixa para lembrar que ao seu lado, no Cemitério Inglês, está o túmulo de Henry Fielding, escritor inglês que morreu em Lisboa com 47 anos em 1754, autor de Tom Jones, entre outros. No jardim também há um busto de Antero de Quental e é curioso que uma das entradas tem os portões voltados para o Museu-Jardim-Escola João de Deus e outra os tem do lado perto da rua deste nome onde está a casa onde viveu e morreu este poeta e pedagogo. O jardim tem cerca de quatro hectares e meio com estátuas significativas, lago, fauna e flora interessantes, recantos, mesas e bancos, um miradouro, esplanadas (uma delas muito interessante, ainda com as cadeiras modernistas da época do Estado Novo) e um bonito coreto que para aqui foi transferido na década de trinta do século XX e que inicialmente estava no Jardim Público (ao fundo da Avenida da Liberdade).  

[2] Que, sobre símbolos e representações, foi essencial na sua informação.

[3] Há, devemos dizê-lo, no entanto, alguns autores e obras que queremos salientar entre os demais porque este apontamento a eles fica a dever-se em boa parte:

Sandra Costa Saldanha, A Basílica da Estrela, Real Fábrica do Santíssimo Coração de Jesus, Livros Horizonte 2007; Sandra Costa Saldanha, A Escultura da Basílica da Estrela, in O Virtuoso Criador, Joaquim Machado de Castro, MNAA Maio-Setembro 2012; Sandra Costa Saldanha e Quadros, Alessandro Giusti (1715-1799) e a Aula de Escultura de Mafra, Tese de Doutoramento, 2012, Universidade de Coimbra; Manuel F.C. Pereira, História da Pedra ou Pedra com História, artigo disponível on-line, indispensável para se compreenderem os materiais pétreos de construção da basílica; Mónica Ribas Marques Ribeiro de Queiroz, O Arquitecto Mateus Vicente de Oliveira (1706-1785) Uma Práxis Original na Arquitectura Portuguesa Setecentista, Tese de Doutoramento, 2013, Universidade de Lisboa; César Chaparro Gómez, imagen y palabra en la devoción al sagrado corazón de jesús: un cuadro de P. Battoni y un poema de F. Arévalo, in IMAGO, Revista de Emblemática e Cultura Visual, Núm.7, 2015, pgs. 59-68. Houve outras obras que lemos com gosto mas estas acima foram as que de algum modo contribuíram mais para o conteúdo deste pequeno texto.    

[4] As obras decorreram a partir de 1778. A sagração da basílica foi em 15 de Novembro de 1789. Para uma cronologia geral veja-se Sandra Costa Saldanha, op. cit.

[5] Mateus Vicente de Oliveira, 1706-1785. Um dos mais competentes arquitectos portugueses que já existiram, uma figura ímpar e injustamente pouco lembrado mas autor dum vastíssimo trabalho e obras.  Sobre ele veja-se a tese já referida: Mónica Ribas Marques Ribeiro de Queiroz, O Arquitecto Mateus Vicente de Oliveira (1706-1785) Uma Práxis Original na Arquitectura Portuguesa Setecentista, Tese de Doutoramento, 2013, Universidade de Lisboa, disponível on-line.

[6] Tipicamente português ser-se alvo de críticas dos demais quando se demonstra competência, trabalho e excelência, qualidades de que Mateus Vicente deu abundantes provas ao longo da vida. O arquitecto encontrava-se debilitado na sua saúde pela fadiga do seu trabalho, viagens incessantes pelo país, idade e desilusão por ver modificados alguns dos seus planos para a Estrela. A queda deu-se no estaleiro das obras da igreja de Santa Quitéria, em Meca, Alenquer. Convalesceu em casa duma filha, em Arruda dos Vinhos, continuando a trabalhar. Viria a morrer no Paço da Rainha, Lisboa, onde residia, em 16 de Março de 1785. Vide Mónica Ribas Marques Ribeiro de Queiroz, op. cit. Págs. 35 e 36. A obra foi orientada financeiramente pelo Presidente do Real Erário e Inspector-Geral de Obras Públicas, D. Pedro José de Noronha e Camões de Albuquerque Moniz e Souza, 3.º Marquês de Angeja, substituído com a sua morte, em 1788, pelo Visconde de Vila Nova de Cerveira. Fica a dever-se ao zelo de Anselmo José da Cruz Sobral “a brevidade com que se fez esta obra e a sua perfeição” (palavras de Manuel Pereira Cidade, citado por Sandra da Costa Saldanha, op. Cit. que seguimos nesta nota) o que, em português actual quer dizer que os prazos foram cumpridos e não houve fugas aos cadernos de encargos. Cruz Sobral, Inspector e Fiscal de Obras Públicas desde 1778, recompensava generosamente os trabalhadores, comparecia na obra antes do amanhecer e colocou grande zelo e eficiência no cargo de que estava incumbido, o que lhe granjeou uma excelente reputação na corte e fez com que a Rainha, como reconhecimento, lhe tenha feito mercê do lugar de ministro honorário do Conselho da Real Fazenda, de uma comenda da Ordem de Cristo e dos moinhos de Soure. Curioso que a Rainha ainda lhe fez mercê de poder ficar com as madeiras que serviram de andaimes, com as quais construiu os seus prédios do quarteirão do Chiado entre as Ruas de S. Francisco e Nova do Almada. O Príncipe Regente veio a renovar esta comenda no seu sobrinho Anselmo José da Cruz Sobral de Almeida Castelo Branco Bramcamp, o que não deixa de ser um facto curioso já que é na Rua Braancamp que agora temos o nosso galho!

[7] Os onze sinos da basílica foram examinados e restaurados em 2003-2004 e quando repostos foi acrescentado um décimo segundo com uma nota nova no conjunto para permitir a execução de melodias mais complexas.

[8] Alguns livros e publicações se lhe referem como nártex. Simplificando, trata-se do átrio ou espaço de entrada, entre a fachada exterior e a interior da igreja.

[9] Santa Teresa de Ávila, também chamada de Santa Teresa de Jesus, é uma figura de primeiro plano para a Ordem dos Carmelitas. Esta escultura da fachada é de Alexandre Gomes e João José Elveni, dois dos ajudantes de Joaquim Machado de Castro (1731-1822). Sobre o assunto, é indispensável ler-se o artigo de Sandra Costa Saldanha, Fontes para a Iconografia Teresiana no convento do Santíssimo Coração de Jesus à Estrela, in CULTURA, vol.21, 2005.

[10] Se se reparar com atenção, notar-se-á que estas quatro colunas com as quatro virtudes foram acrescentadas no que seria a fachada inicialmente pensada e, por isso, vieram criar mais um plano de transição intencional por parte do arquitecto Reinaldo dos Santos àquele que seria o plano mais austero do arquitecto Mateus Vicente de Oliveira.

[11] Transepto: parte do edifício que, em relação ao seu eixo principal, lhe é perpendicular: neste caso a parte da capela do Santíssimo e a parte da direita onde se encontra o órgão e o túmulo da Rainha, o Candeeiro das Trevas e a porta para o coro baixo – Capela de Nossa Senhora do Carmo e do Senhor dos Passos, com um envidraçado. 

[12] O túmulo da Rainha apenas foi construído décadas após a basílica já que a Rainha morreu no Brasil em 1816 e foi aqui depositada em 1822.

[13] A pedra é o calcário e o principal é o liós, branco e cinzento claro. Também há o encarnadão, o amarelo e o rosa de Negrais (também denominado de Salema por aqui haver uma pedreira do mesmo tipo e tom de pedra), o negro de Mem Martins e o azul de Sintra. O mármore branco das estátuas poderá ser português e italiano. As grandes colunas das capelas Mor e do Santíssimo são de mármore de Negrais.   

[14] A Maria do Mar Oom disse-me tratar-se dum Peninsular.

[15] Símbolo católico em relação com a eucaristia já que Cristo deu o seu sangue por nós. A lenda do pelicano é a de que bica no seu próprio peito para que jorra sangue para alimentar os seus filhos.

[16] Jansenismo: nome por que ficou conhecida a doutrina propalada por um bispo de Ypres, Cornellius Otto Jansenius, que sobrepõe a importância da predestinação ao livre-arbítrio, condenada pela Igreja Católica.  

[17] A descrição e significado da tela seguem o artigo “O Painel do Altar-mor da Basílica da Estrela” in O Monumento, 28 de Maio de 1939, e, de forma indispensável, o poema de Arévalo no artigo de César Chaparro Gómez atrás citado. Damos por bem empregues as muitas dezenas de horas que já temos de observação e admiração por este quadro notável! E inesgotável!

[18] Segundo Sandra da Costa Saldanha, op. cit., no modelo original Santa teresa surgia com três livros, símbolos da sua condição de escritora, reformadora e doutora da Igreja.

[19] Inter pares = entre iguais.

[20] Aqui, como em quase tudo o que escrevemos, seguimos o pensamento de Sandra Costa Saldanha e de  Mónica Ribas Marques Ribeiro de Queiroz, expresso nas obras citadas em nota anterior, com que concordamos.