sábado, 2 de setembro de 2017

Atlantis, Atlântida

Atlantis, Atlântida
©Manuel Cardoso

(...)

Oh mar! oh mito! oh sol! oh largo lecho!
Y sé por qué te amo. Sé que somos muy viejos.
Que ambos nos conocemos desde siglos.
(...)
Jorge Luís Borges


Obras no centro da cidade de Huelva, parque de estacionamento pago, calor e barulho ao abrir do vidro, sol fortíssimo a fustigar-nos como se não devêssemos estar ali, como se nos quisesse corrigir um equívoco na nossa rota. Fechámos o carro, pusemos chapéu de palha e óculos escuros, demos alguns passos no pavimento quente e entrámos, à procura de sombra e abrigo, no Café Central.
O passarmos essa porta, que empurráramos, foi um súbito e inesperado virar duma página num livro de Borges.
Enquanto a Mariana foi lavar as mãos, um homem ao balcão tirou-nos cafés de máquina que nos serviu nuns copos de vidro grosso e, ao pousá-los, fitou-me com ar de velho conhecido. Calças de fazenda, camisa branca e colete, cabelo grisalho com um leve ondulado dum quadro de El Greco – ou seria dum mural de Creta? – mãos seguras mas dum tom de pele sem idade, veias salientes de sangue muito escuro, ficou a olhar a porta por breves instantes e, logo depois (quem o ouvisse diria que era mais uma frase duma cavaqueira de horas), argumenta-me que sim, Borges esteve comigo nas vezes em que veio a Sevilha, cúmplices nesses momentos de imortalidade, tinham bebido vinho andaluz e desfiado epopeias dos antigos povos do mar. Apesar de tudo, não pude aceitar como loucura uma frase daquelas mas entendi-a como centelha do tempo, algo que tinha de ser dito antes de se apagar. E logo a seguir veio outra: porque eu tive de pegar no que havia, tivemos de pegar no que sobrou e fazer toda a costa da Líbia e ir a Sais, contar derradeiramente todo o pavor que em dia e meio tinha feito desaparecer a minha cidade, o nosso mundo! Os sacerdotes de Sais tiveram pena de mim e dos meus, tão poucos, e fizeram, num por do sol, o sortilégio de Neith, a quem agradaram as nossas oferendas, e tal me faz ainda hoje estar aqui.
Crescia em mim um desejo de fazer imensas perguntas, mas ele desenhou-me um gesto, como um maestro, com que me calou. A Mariana aparecia, entretanto, ele disfarçou a breve conversa que tivera comigo e deu-me o troco da nota que lhe tinha estendido, com desculpas, ainda por cima, por demorar a fazer-mo!
Ficámos a olhar o ambiente e as paredes do café, castiço com as cabeças de touros que as decoram, lidados quem sabe se por ele e pelos seus, aviso de publicidade com fita-cola na parede, manuscrito, a pedir uma empregada para um período de férias. Antes de sairmos ainda o considerei mais uma vez mas ele estava já entregue a si próprio, eu já não existia, tinha-se extinguido a minha ínfima participação na sua longa eternidade, passava um pano num ponto do balcão, arrumava copos baixos dumas cervejas que tinham sido bebidas com tapas. Ainda exclamou um gracias, Caballero! no momento de sairmos e, num relance derradeiro, consegui surpreender qualquer coisa, na atitude, num gesto, não sei bem, que me fez considerar ser verdadeira a loucura de ter estado de facto na presença dum atlante!
Tenho quase a certeza de já ter sido relatada esta história mas não sei nem onde nem por quem – talvez em algo que li duma recitação dum serão ao luar, na Alhambra cordovesa de Ab-El-Rahman, ou, mais verosímil, na corte itinerante de Afonso X, por um dos últimos jograis moçárabes – e, por não me lembrar, a tal me atrevo, em palavras breves, seguindo a afirmação do argentino de que a memória e o esquecimento, ou o mesmo pela ordem inversa, são as duas faces do tempo – o ingrediente essencial dum mito.     
Hatlo saiu da cidade com os seus três filhos rapazes e os seus criados numa caravana de burros e mulas. Levavam odres com vinhos perfumados, sacos de sal e fardos de peixe salgado, ânforas com azeitonas, atados de panos do Egipto e tingidos com murex fenícios, caixinhas de unguentos e pequenos potes de cosméticos. Levavam ainda, para si, água, pão, peixe e aves de escabeche, que a jornada era longa e duraria uns dias, iriam ter de ficar em descampados, nem sempre com gente por perto com quem mercar alimento. Depois de o sol já ter passado um quadrante, viam, ainda ao longe, ao meio dia e para o lado das Colunas de Hércules, a sua grande cidade com os seus palácios, os navios ao largo que a demandavam ou dela saíam carregados de cobre, de ouro, de estanho, dos mais finos e fortes bronzes, o brilho das suas muralhas revestidas de metais e de refulgente oricalco. A primeira noite passaram-na junto a uma fogueira, acesa por outros mercadores que vinham para sul a caminho da cidade ou do templo de Hércules, que lhe ficava próximo. Foi a sua última vez de avistarem, quase indistinto, o contorno da cidade, de lhe adivinharem a vida e o movimento, de saudarem os deuses dos seus templos e estenderem a mão na direcção da casa onde tinham ficado a mulher e as concubinas, as suas filhas, as criadas e criados.
A volta demoraria semanas. Tinham-se afastado para norte, subido montanhas acima, até aos povos serranos onde haviam vendido tudo o que levavam e comprado lingotes pesados de bronze que traziam em seiras de esparto, no dorso dos burros e das mulas. Era um bronze precioso que os artesãos iberos faziam em cadinhos com o segredo da Lua. Como nenhum outro. Um bronze que se destinava ao templo de Poseidon, para o aplacar, já que oráculos insistentes diziam querer desferir a sua ira. Os fundidores, esconjurados para conseguir tal metal, soprando nos tubos de canas sobre as brasas para o derreter, mantendo o bafo com os foles de pele que comprimiam com as mãos untadas de sebo, recitavam as palavras monótonas com que invocavam deuses tutelares, ignorando que, ao fim e ao cabo, estavam, sem saber, a marcar e libertar Cronos da sua imobilidade, a fazer escoar o par e passo do tempo. “Que este bronze vai ser só para Poseidon e este tudo fará para que vá ter consigo” – palavras do chefe do povoado, entalando os lingotes entre palha macia e dentro das seiras de esparto, levadas com ritual reverente para dentro dos alforges de cabedal que as bestas carregavam.   
No dia seguinte, já caminhavam há dois quadrantes desde que o sol despontara, entravam numa brenha de sobreiros que bordejava o rio, quando um ronco vindo do chão se sobrepôs ao murmúrio do rio, os burros especaram, assustados, e eles, num espanto, sentiram tremer a terra, viram desfazer-se penhascos e rolarem penedos para o vale, as aves voar desorientadas. Mal refeitos do susto, logo voltou uma e outra vez o chão a soltar os tremores de Poseidon… seria Poseidon?! e, finalmente, num espaço mais longo, parecia que tudo voltara ao normal. Mas logo mais um tremor com ruído, e outro mais drástico, inspiravam terror, atemorizavam os homens e desorientavam os animais.
Foi, então, que Hatlo, olhando os céus e dirigindo-lhes uma prece, sentiu um instinto sobre o pior e estugou o passo, incitou os demais e rumaram mais rápidos a sul, ao seu destino de casa. Andaram dois dias, faltava passarem a última colina que lhes vedava o horizonte. Sol já alto. Um grupo vinha em sentido contrário, como outros com quem se tinham já cruzado, brados altos, incoercíveis, palavras incompreensíveis. Que Poseidon descarregara toda a sua ira! Que todos os deuses os tinham abandonado! Que o nada (o nada?! Que seria o nada?) e o fim vinham aí! Fujamos! Depois houve mais um que passou por eles, mudo, atónito, olhar no vago e no imperscrutável. E ainda outros, trôpegos, incompreensíveis, a apontar para trás, chorando sem lágrimas, batendo no peito, gestos de arrancar cabelos, apanhando terra do chão, atirando-a ao ar, batendo na cara. Hatlo ficou cada vez mais apreensivo. Que estaria para lá? Que queriam dizer todas estas pessoas?
O cimo da colina estava mesmo em frente, Hatlo aproximou-se com os seus filhos, a sua caravana desordenada de burros e mulas com lingotes de bronze nos seus alforges de cabedal e esparto. Estacou quando o caminho se detinha também, magote de pessoas clamando alto e batendo de mãos no chão, querendo ver o invisível, declive abrupto e novo a impedir a passagem, a despenhar-se num abismo. Ao fundo, em todo o horizonte, não havia a cidade, nem toda a terra em seu redor, nem os navios demandando o seu porto, nem as casas, de entre as quais se destacaria a sua com a sua mulher, as suas concubinas, as suas filhas, as suas criadas e criados, nem nada. Nada se via. Ao fundo, apenas havia o mar. Um mar baço, indistinto nas ondas, antes ignorado naquela cor e naquele som, marulhando como se fosse um acordar do desconhecido. O sol não conseguia disfarçar um ocre de morte. Poseidon levara a melhor! Apenas havia o oceano imenso que apagara a terra e se estendia até às Colunas de Hércules!...
Retrocederam de ao pé do precipício, de modo a atingir a costa por entre dunas e arvoredo que cortaram a machetes, pelas bordas de pomares agora sem donos, tragados pelo mar. De onde em onde havia grupos, todos desesperados a clamar do trágico e desconhecido. Mortos, feridos, indiferença e incapacidade perante o urgente. Desvanecia-se um mundo inteiro.
Que seria de si? Além, um grupo de onde se salientavam homens de túnicas púrpuras, mulheres de branco. Um deles mais novo, cabelo grisalho com um leve ondulado, mãos dum tom de pele tostada, veias salientes de sangue muito escuro, como o seu. Tartamudearam uma breve descrição dos acontecimentos, o mais novo dos quais explicitava. Tinham nadado, depois da sorte de, entretanto, estarem numa embarcação que a corrente desfizera contra destroços, junto à linha de costa, agora nova. Tinham vindo do templo de Hércules, que uma primeira vaga, longa, de mar de fora, tinha banhado a ponto de lhe tombar as colunas, desfazer as paredes, engolir para Poseidon. Que iriam fazer? Hatlo deu-lhes alguns lingotes de bronze, promessas de um dia, devoção por uma vida. Que os usassem para ofício e protecção, testemunho de respeito. O mais novo, Cad, o de cabelo grisalho e ondulado que puxava para trás com um gesto da mão esquerda, agradeceu o bronze, confortou-lhes o desespero, sugeriu-lhes irem a Sais, de cujo favor e fé ele ouvira, até do próprio Odisseus, a infalibilidade e o extraordinário.
Mais à frente havia um barco encalhado, jorrado bem para longe da costa, companha desolada, vela grega e rasgada que era dos de Odisseus, que o tinham perdido, que todos tinham saído junto da cidade, dias antes do grande pavor, e eles tinham seguido para Ocidente. Depois, as grandes ondas os tinham apartado. Mas não havia mesmo a cidade? Não havia mesmo a cidade, Poseidon a submergira sob todas aquelas águas, ainda revoltas e cinzentas! Estavam perdidos uns dos outros, abandonados. Da última vez que tinham avistado Odisseus, ele seguia para o ocaso, na rota que ele demandava para um rio de onde sabia correr ouro nas suas areias e haver estanho nos seus mercadores.
Hatlo, então, emudeceu, convicto da dimensão imensa da sua desgraça. Toda a noite, de volta da fogueira, filhos após ele, todos os nomes dos deuses dos templos da cidade foram invocados naquele transe aflito. Até que emudecera mesmo, num estupor. E foram os filhos, já noite alta, que pactuaram com o mestre duma embarcação para nela todos subirem e demandarem outras cidades onde procurar resgate dos deuses para a sua situação desesperada.
Os gregos propuseram-lhes mais uma vez Sais, onde oferendariam a Neith, e a Sais rumaram, dirigidos pela estrela Koshab semanas e meses a fio, com o Pai mudo, olhos fixos, dentes cerrados, a não ser para a água e miolos de pão ensopados, que lhe davam pelo canto dos lábios. A sua urgência mudara: do impossível saber do destino da família desaparecida, para querer cuidar do pai cuja morte selaria a sua condenação. Cad e alguns companheiros também se associaram nesse destino.  
Os filhos empenharam o seu bronze restante para essa empresa, nessa rota, ir aportar ao acolhimento e protecção das sacerdotisas e sacerdotes de Sais. Estes acharam favor no relato inaudito da sua viagem e do que a motivara, a recontaram aos discípulos e aos devotos. De tais factos extraordinários tinham tido, anteriormente, apenas um eco mas ainda não algo concreto e contado em primeira mão e de viva voz. Agora palpável na sua presença, na sua aflição, nos seus lingotes, fundidos por artesãos que sabiam o segredo da Lua. Urgia serenar os deuses apeados de seu pedestal, mergulhados nesse mar ignoto que engolira toda a afamada cidade de muralhas em círculo com os palácios, os templos, as casas, os cais e a sua gente.
Nesses dias a benefício do pão, do peixe e dos frutos do mar, da cerveja e das azeitonas de Sais, urgia-lhes recuperar a saúde do pai. Com as abluções, com a inalação de fumos doces de ervas queimadas em brasas de cedro, com a emersão na água do templo, com a companhia duma mulher que uma sacerdotisa lhe trouxera, envolta num véu. Durante a noite final do recobro ele sentira-a deslizando sobre si suavemente e exalando um perfume forte que o fizera voar e regressar ao catre de madeira onde acordara, desperto e são, pela manhã.
Hatlo e os filhos não voltaram a sair do Nilo nem a flanquear as Colunas de Hércules, o resto da sua vida passou-se em Sais, a coberto do bronze que tinham levado, a coberto do contar e recontar da sua história, cada vez mais recôndita, cada vez mais um mito, cada vez mais inesquecível, já que um mito é a melhor forma escolhida por uma verdade para ser perene para toda a eternidade.
Ao fim de duas estações de cheias, um pequeno grupo voltara para Ocidente, dirigido por Cad, o mais novo, o que tinha o cabelo grisalho e ondulado. De tudo faziam no barco, inclusive remar nas calmarias, segurar os remos de governo nas agitações mais fortes das ondas ou nos repentes de Eolos, sob as ordens do mestre. Cruzaram-se receosamente com raros navios e houve um em que lhes pareceu mesmo avistar Odisseus, à popa, também a olhar para eles, mão em pala no sobrolho, capa esvoaçante de roxo. Seguiu cada um o seu destino, não podiam agora confundir a sorte, ouvidos os oráculos de Sais.
Chegados para lá das Colunas de Hércules, aportando numa costa desconhecida depois de saberem ter estado a navegar por cima do desaparecido, empenharam-se em refazer o seu horizonte, palavra de Neith, empregando sabiamente o seu já pouco bronze, guardando o mais duro para testemunho, para um dia. Encalharam o barco na areia, montaram tenda e estabeleceram-se na costa perto do preciso ponto em que Cad deixara, antes de partir, enterrados bem fundo no chão mole dum montado[1], os lingotes da oferenda que Hatlo lhe fizera antes de emudecer.
Gastara alguns deles com uns mercadores que passaram em caravana, para comprar animais, tecidos, azeite e resina. Adquirira também uma partida de escravas. Muito em breve sentiram o favor dos deuses. Os porcos multiplicavam-se e em pouco tempo lhes deram abundância e prosperidade, as ovelhas e cabras supriam-nos de outras carnes e de leite, de queijo e de soro, de lã e de chifres, de peles curtidas com que forraram os abrigos e fizeram odres. Alguns companheiros faziam-se ao mar, traziam peixe que secavam e de que espremiam óleo. À formiga, iam adquirindo contas, pingentes, placas e lingotes de cobre e pesos de estanho e chumbo que, de quando em vez, com a vinda dum barco fenício, trocavam pelas mercadorias exóticas que preenchiam o esplendor da sua nova vida, a atracção e negócio com os povos do interior. Mas Cad sempre guardara, escondidos, alguns dos lingotes, muito poucos, do bronze de Hatlo, do que fora fundido com o segredo da Lua. Um bronze que ganhava mistério e força, reverenciado pela memória de todos, um bronze que deveria ter ido – mas não fora – ter com os artesãos de Atlantis para forjar votos no templo de Poseidon.
Para muitos uma memória incerta e lenda recôndita, passariam muitos séculos até ser desenterrado esse bronze.
No tempo em que as caravelas, as naus e os galeões se faziam aos mares do Ocidente e do Índico, das oficinas de metalurgia de Sevilha de Juan Morel e do seu filho Bartolomeu saíam os mais fortes e manejáveis canhões de Espanha e os sinos de mais sonoro timbre de que se orgulhavam os carrilhões dalgumas igrejas. A Casa da Contratação das Índias providenciava-lhes todo o cobre e estanho necessário e nos seus fornos de fundição e moldes se formavam, apurados depois a maço e polimento, artigos de fama cobiçados por todo o mundo. Não havia segredos para pai e filho no que aos metais dissesse respeito. Por isso, Bartolomeu ficou atónito ao olhar para aqueles lingotes de bronze antigo. Nunca tinha visto tais. O tom, o brunido tão belo, imaculado, sem verdete que o tingisse! Quem lhos depositara em cima da bancada de trabalho, um homem estranho, saca de cabedal a tiracolo com algo pesado lá dentro, de cabelo grisalho e ondulado que apartara para o lado com uma mão ossuda e grande e em que se salientavam veias escuras, fizera-o com um cuidado religioso. Trouxera-os um a um, dos alforges duma mula que tinha ficado à porta, ainda envoltos num tecido grosseiro com que os disfarçara dalgum salteador, e desembrulhara-os de forma meticulosa, afagando-os ao procurar uma posição em que não ficassem a oscilar. Batera com os nós dos dedos em cada um, som seco, bronze, é bronze! Perceberam que ele não estava para grandes falas, não explicava de onde vinha aquele metal naquela forma rara. Sei que os senhores são os melhores e vivemos tempos de começar a descobrir o que tem estado escondido. Como faz o Imperador![2] Saúdes de vinho em canecas de estanho, nem por isso conseguiram tornar mais loquaz o visitante que, ainda por cima e para maior surpresa, confidenciava deixar pro bono aquela mercadoria, na condição de ser usada na estátua de Poseidon que estava para ser feita para os jardins do Alcazar e na de Atena para o catavento do Colosso da Fé Vitoriosa que iria encimar a torre de Santa Maria… mas Morel via aí dificuldades: ninguém lhe entregara qualquer encomenda para qualquer Poseidon para o Alcazar e a dama para o colosso da torre tinha um desenho já feito e já se trabalhava no molde! E… não seria Minerva?! Um dos ajudantes dos Morel apressou-se a esclarecer que, para muitos poetas, Minerva era Atena… Então fariam um tridente! Sim, um tridente para quando alguém encomendasse uma estátua de Poseidon, tridente que colocariam apontando para um azimute entre o meridião e o ocaso! E a Atena colocariam uma coroa, uma coroa que ele trazia ali… e desembrulhou um último atado de tecido escuro e untuoso, retirando de lá uma coroa brunida de trifólios e esferas. Que o resto do bronze ficaria para pagamento de todo o mester.
Não sabemos – só a posteriori notei que ficaram muito incompletas as minhas anotações sobre esta reunião na oficina – o que lhe terá respondido Bartolomeu Morel, nem como a coroa trazida por Cad foi parar in solidum à cabeça da giganta de Sevilla, mas o catavento mais célebre de todo o Ocidente gira na sua torre ostentando um bronze de patina ímpar, dum cobre quase puro reconhecido por todos os técnicos que o têm analisado. Nalguns bares do Bairro da Santa Cruz ainda procurei alguém que – tinham-me confidenciado que haveria quem – me confirmasse se seria autêntica a versão de que a coroa teria sido originalmente feita por um alquimista que Cad procurara, com fama de perito fundidor de Toledo, e que viera trabalhar para uma estreita rua de Jerez, forjando navalhas. Não o consegui. Tal como ficou por se saber, verdadeiramente, da história deste se ter revelado um charlatão, que entregara a Cad a coroa mas, indagado sobre o resto do bronze, lhe mandara dar de troco uma sova por dois brutamontes a soldo, que o carregaram no dorso da mula e a açoitaram para que seguisse à desfilada pela estrada de Sevilha.
Uma das grandes qualidades de Homero foi a sua cegueira, que lhe permitiu ver todo um mundo que, se o observasse fisicamente, teria ficado limitado na sua geografia e no seu tempo. Esta qualidade dos escritores poderem captar muito para lá da sua circunstância em espaço e em tempo, tem sido notável sobretudo naqueles, com dificuldades evidentes de visão, que ousam fazer uso dela e nos dar o privilégio de dela participarmos. Dessa maneira Borges nos deu a visão do Aleph, da profunda eternidade e de todo o vasto orbe do esquecimento onde se encontra, ao fim e ao cabo, toda a história. Era com essa visão que Torrente Ballester, sentado no Novelty ou à sua porta, encarava a Plaza Mayor como se fosse a ágora de onde os seus olhos com lentes de fundo de garrafa abarcavam todo esse mesmo mundo. Era com essa visão que Borges reconstruía o tempo e o infinito a partir de cada folha e letra de cada livro, mesmo das intangíveis, corroídas, fugazes como as do Livro de Areia. O sangue dos heróis de Tróia serviu de tinta às palavras que Homero não escreveu. Ballester preferiu a luz. Talvez por ser tão coada e especial na Galiza, tão forte e crua ao reflectir-se no chão molhado da cidade dourada, depois duma bátega de trovoada de Verão. Com aquela luz, ao olhar a Sul, entreveria a Atlântida? Borges usou a água do mar: há sempre um marulho contínuo ao lê-lo, ao ouvi-lo, ao observar a sua expressão fluida do tempo inesgotável. Nesse marulho intuía as línguas com que falavam inenarráveis marinheiros antigos. Quando pensamos em Homero, é possível  idealizarmos que ele, ao ajeitar a capa antes de tomar a palavra, estendendo a mão no assomo de a proferir, se voltasse para Ocidente, para as Colunas de Hércules, para a rota de Odisseus – como saberia, onde era o ocaso? Há um pormenor numa célebre foto de Sevilha em que aparecem Borges e Ballester na esplanada do terraço do Hotel Doña Maria, com a Giralda ao fundo, que é um testemunho da permanência do tempo ou, se quisermos, da inexorabilidade de este ser o verdadeiro e único testemunho de transes da Humanidade: no último plano está o colosso de bronze em cujo metal estará uma ínfima mas significativa parte do que Hatlo levava para Poseidon e que Cad terá entregue a Morel. Se esse bronze tivesse chegado ao seu destino, teria sido submergido e estaria hoje sob a areia, num ponto para o qual, em dias precisos do Verão, se diz que aponta a pluma do Giraldillo, seja de onde for que sopre o vento. Borges e Ballester saberiam?        
A Mariana e eu entrámos na Cervecería Giralda, na Calle Mateos Gago, o arqueólogo e catedrático de teologia que não suportava os argumentos dos evolucionistas, mais para cumprir um acto do que para comer tapas àquela hora, deixada vaga pelos andaluzes para a sua sesta. Apenas umas estrangeiras, a um canto, apreciavam copos de vinho branco sorrindo para si próprias, com graça. Queríamos respirar ali algo duma outra atmosfera. Pedimos água e cafés solo. Sentados nas cadeiras de madeira, chão quadriculado e paredes de azulejos polícromos de estilo mudéjar, cabos de electricidade torcidos com suportes de porcelana como nos anos vinte de há um século atrás, arrefecendo do calor das calles de Sevilla, era como se estivéssemos metidos num singular caleidoscópio que nos remetia para a frescura dos antigos banhos árabes que funcionaram naquele local, sob outras abóbadas apoiadas noutras colunas. A nossa ida ali poderia ter ficado por uma peregrinação poética de tentativa de escutar os ecos das tertúlias que se juntaram nas mesmíssimas mesas de tampo de mármore, ao longo do quase um século de história do estabelecimento. Mas aconteceu que fotografámos, com o telemóvel, o breve diálogo encaixilhado com o nome de José Maria Asprón Gómez, o asturiano que em 1943 converteu o Bar Español em Bar Cervecería Giralda, e nisso fomos observados por um sujeito que estava à porta. Que nos disse, quando estávamos a sair, numa frase proferida cheia de empenho num castelhano fortemente tingido de andaluz, que, de diante daquela porta, ali, no meio da rua, muitos tinham sido os que vendo El Giraldillo apontando para sudoeste, apuravam o ouvido porque lhes parecia ouvir, distante mas muito preciso, o som do mar e um ruído cavernoso e antigo. E que em certos dias de verão, sempre os mesmos se se considerasse o calendário da Lua, fizesse o vento que fizesse e viesse donde viesse, El Giraldillo apontaria para sudoeste, imperturbável, para sudoeste, indiferente…
Vendo a nossa cara de espanto, um empregado interveio para que não temêssemos, que ele era assim, repetidor dessa palabrería, esa lilipollada
Quase o desequilibrou, puxando-o para dentro ao pegar-lhe no copo que tinha na mão, mas educadamente e com respeito, sugerindo-lhe voltar a dar-lhe mais uma caña, com certeza para o desviar da nossa atenção e para que não nos importunasse.  
Já ao por do sol, nesse mesmo dia, ainda voltaríamos a passar por ali, considerando a torre de La Giralda, no cimo da qual estava El Giraldillo. Apontava para sudoeste, apesar de correr uma baforada quente de norte...  

Latães, Verão 2017         




[1] Dehesa, no relato que ouvimos.
[2] É misterioso e não conseguimos descortinar como é que terão chegado ao conhecimento dum recôndito povo do Golfo de Cádiz, no século XVI, duma forma tão esclarecida, os motivos expostos no capítulo da Ordem do Tosão de Ouro que se reuniu em Bruxelas em 1516 e em que Carlos V terá assumido o seu moto Plus Ultra, implícito nas palavras de Cad na oficina dos Morel, que o imperador usaria, escrito numa lista enrolada nas Colunas de Hércules do seu brasão (e que hoje sobrevivem nas armas do Reino de Espanha). Tão misteriosa como isso foi a fundação da própria Ordem, no âmbito do casamento duma portuguesa da Casa de Avis, Isabel, filha de João I e de Filipa de Lencastre, com Filipe de Borgonha, em 1429. Notável é a sua sobrevivência à rasoira de 1914-18, que tentou anular toda a velha (diziam eles…) ordem das coisas. Há quem diga que o Plus Ultra, uma metafórica alteração das palavras lendárias inscritas nas lendárias Colunas de Hércules da Antiguidade, NON PLUS ULTRA, se referia não a África nem às Américas mas a algo mais longínquo, entrevisto por Carlos V…

domingo, 20 de dezembro de 2015

OS TRASGOS DO SENHOR ENGENHEIRO


- E ainda há a questão dos trasgos, senhor engenheiro!
- Trasgos, que trasgos?!
- Então, dizem que ainda há trasgos a viver aí pró rio…
- Trasgos, que é isso, trasgos?!
- Ora, senhor engenheiro, são trasgos!
O homem olhava fixamente para o Rui, desarmado perante aquela dificuldade. Então o senhor engenheiro não haveria de saber o que eram trasgos?! Afinal, com um curso de universidade, a andar ali pela aldeia já há tantos anos e não sabia o que eram os trasgos?! Tirou o chapéu, semicerrou os olhos, ajeitou a melena que se lhe ensopava com o suor, sentiu uma breve aragem a soprar sobre a humidade e a arrefecer-lhe a testa. Agradável. Voltou a pô-lo e olhou para o rio, lá muito ao fundo, correndo miúdo entre os pedregulhos, como se não existisse.
Não se ouvia um ruído de água, só o vento restolhando nas giestas e silvas, numa ou noutra amendoeira de verde empoeirado que mal sobrevivia naqueles tons torrados de Agosto. O Rui pousou a mão numa rocha quente, de que se destacaram alguns pedaços secos de líquenes como se fossem as escamas de um peixe já morto. Apoiou-se nos dois cotovelos e ajeitou melhor a posição para voltar a fixar o binóculo sobre o leito, lá em baixo, onde a água aparecia como uma mancha rara, quase invisível, a adivinhar-se mais do que a ver-se, no meio do caos de penedos, areias e calhaus rolados, pontificada aqui e ali por renques de salgueiros e um ou outro amieiro mais alto. Lá estava a grande escarpa, massa desconforme de granito saliente da encosta, lisa como se fosse uma escultura, sem fendas nem sobressaltos. Seria o ponto ideal para ancorar o muro de betão da barragem. De um lado e de outro haveria que mandar fazer as sondagens, estudar tudo, mas era ali, no ponto mais estreito do rio que a água não rompera em milhões de anos, era ali que se devia fazer a represa. Um grande lago se estenderia para cá, água como nunca se vira por estas terras, nem nos anos lendários das cheias de 1909 ou de 62. Água com fartura que traria fartura. Daria electricidade, daria para regar hortas e campos, traria gente nova para tomar banho e andar de barco…
- Olhe, já viu quantos empregos se depois se fizer um hotel neste sítio?!
- Mas, ó senhor engenheiro, ao tempo que se fala nisso, vai ser ainda para nós, essa barragem?
- Vai ser, senhor Rodrigues, vai ser. Isto agora vai ser rápido. Um ano para estudos e projectos, mais um para os políticos se entenderem, para acertar tudo, depois o concurso. Daqui a dois anos e meio ou três estaremos com as obras a começar. Ainda não sabemos… mas que durem ano e meio… há-de ver: até o presidente da república virá aqui!
- E os trasgos, senhor engenheiro?
Dirigiram-se para o carro, que tinha ficado uns cem metros atrás, estacionado no fim do trilho de saibro, ao pé do cruzeiro. Nele estava a Ana a ler um livro e a ouvir a RFM, motor ligado para manter o ar condicionado. Ao vê-los voltar, abriu a porta e saiu, compondo o cabelo que trazia apanhado e dando um puxãozinho à bainha do minivestido justo. Sorriu para o Rui e disse ao velho Rodrigues:
- Nós já voltamos, Titó!
- Eu fico aqui, menina, a conversar comigo! - e entrou para o carro, sentando-se no banco de trás, ofegante como quem afunda no estofo um alívio de uma vida, e baixando o vidro para não se abafar com o ar condicionado.
- É um instante, senhor Rodrigues!
A Ana passou o braço à volta da cintura do Alberto e com um andar cuidadoso para que a areia não lhe entrasse nas sandálias de salto, foram até à borda do desfiladeiro, para junto das grades do mirante de onde ele estivera há pouco a perscrutar o rio, onde ela gostava de estar sem terceiros. Não fora ali um dos seus locus amoenus preferidos dos de todo o seu namoro?
- Que é que são trasgos, Ana?
- Trasgos?
- Sim, o Titó diz que os há pelo rio...
Ela esboçou um sorriso e piscou devagar os olhos como quem vê saudades.
- Trasgos! Coisas dos mais velhos, dizem que havia trasgos, assim uns seres mitológicos que nunca ninguém viu… eu nunca vi!
- Nunca me falaste disso!
- Ora, coisas para encantar meninos, histórias antigas. Diz-se que viviam nos açudes e nos velhos moinhos… que passavam a vida a pregar partidas aos moleiros ou a quem se aventurasse por ali!
- Um bicho?
- Não, não! (risos). Iguais às pessoas mas em ponto pequeno. Uma espécie de miúdos em tamanho mas já crescidos, vestidos quase de bobo, com berloques e guizos, barrete verde ou vermelho, conforme…
- Conforme o quê?
- Sei lá! Era o que diziam! Grandes orelhas, capa de zorro sobre os ombros… ora, patranhas! Quando era pequena bem os procurei, quando íamos ao rio! Ahah!
- Uma coisa como andar aos gambuzinos?
- Hmm… era diferente! Os gambuzinos é coisa para entreter quem não é de cá, pregar partidas a quem cá vem. Não, era diferente. Os trasgos eram levados mais a sério, dizia-se que tinham sido vistos pelos moleiros a atirar a farinha ao ar, que andavam sempre a emperrar a vida de certas pessoas, a espantar gados das curriças para fora, a fazer verter o vinho das pipas, a entornar as remeias de azeite, a por lagartos nas grelhas onde as pessoas assavam sardinhas!
- Eheh! Então ainda te fartaste de os procurar, nas idas ao rio…
- Ora, o tempo dava para tudo!
Dantes, ir ao rio era estafa que durava um dia. Saía-se logo de manhãzinha, a pé, as mulas carregadas com os cestos de verga, garrafões e mantas. Levavam um cantil de cabaça a tiracolo, chapéu de palha e pau para espantar cobras e lagartos. A excursão parecia uma colorida caravana de nómadas, fila indiana ao longo dos trilhos incríveis que descreviam ziguezagues pela encosta íngreme, sempre a descer por entre os blocos de granito e as amendoeiras de onde voavam pássaros e rolas. Uma vez lá em baixo, hora e meia depois de se ter deixado a aldeia, estendiam-se as mantas num troço de pasto ou num areal miúdo, à sombra dalgum freixo com folhas rendadas de cantáridas. “Não se mexe nesses bichos verdes!”. A água pasmava num fio subtil, bordas perfumadas de mentrastos. O pai armava uma cana de pesca, o Titó e as criadas iam varejar e apanhar amêndoas molares, ela e os irmãos atravessavam nas alpondras e inspeccionavam as rodas já desengonçadas e os alcatruzes enferrujados da velha azenha. “Não entrem para o moinho que o telhado está podre e pode cair!”. Mas eles entravam, pé-ante-pé, olhando brilhantes para aquele mundo bafiento e misterioso onde cresciam musgos e bolores verdes e onde se estendiam teias de aranha monumentais. “Cuidado que ainda lhes sai daí algum trasgo!”. Uma tábua a ranger assustava um melro que os assustava a eles. Correrias e gritos. Manhã quase passada, deitavam-se nas mantas olhando o céu límpido onde voavam grifos e águias, lá muito acima, em grandes círculos. Depois vinha o banho no açude grande, ao pé dos garrafões que estavam imersos e presos por um fio de nylon, água corrida pelos alfaiates, galhofa que baste até ofegarem, cabelos a pingar e a mãe a pôr-lhes as toalhas nas costas. Estendiam-se ao sol, só o tempo de fazer parar os arrepios. “Vá, toca a vestir!”. No meio de mais galhofa ainda, toalhas enroladas sobre si, tiravam os fatos de banho e aprontavam-se com calções e t-shirts. Entretanto as criadas tinham já estendido as toalhas aos quadrados e, de dentro dos cestos de verga, tinham tirado as panelas do arroz, os panados, as fatias de pão, os frangos assados, os bolos de bacalhau, as batatas fritas, os salpicões de azeite, melões e melancias, uma ementa imensa. O resultado era uma grande sesta, feita na maior das quietudes, só cortada de tempos a tempos pelo ruído da bóia e dos empates a fazer splash na água, do carreto a pô-los em posição, do bater do casco das mulas no chão e do chicotear das crinas da cauda a afastar as moscas, do volitar de uma vespa que os alertava de sentinela. As brincadeiras da tarde eram mais sossegadas, o sol e o calor faziam faltar a vontade, alguns livros que a mãe lhes trouxera eram bons de ler na sombra dos choupos, sentados em fragas. Eças e da Elaine Sanceau. As criadas e o Titó enchiam a terceira saca de amêndoas, atada e pronta a ser carregada nas mulas. A pouco e pouco a sombra do planalto vinha estender-se sobre a encosta de cá. Estava na hora de encetar o regresso. Iriam ser mais de duas horas, sempre a subir, arrastando-se trilhos acima, esforço imenso entrecortado por paragens para beber água, encorajado por um copo de vinho que todos bebiam, crianças incluídas, quando já estivessem a mais de meia ladeira. O jantar em casa, nessa noite, era da praxe ser entrado de canja com ovo. Sentiam-se os músculos das pernas com picadelas e uma enorme vontade de ter a maior noitada de sono de todas as férias. Eram assim as idas ao rio. Mais tarde, já a estudar na faculdade, a Ana voltara lá, de jeep, coisa de quarto de hora por um estradão aberto pelos da hidráulica, tirando fotos e recolhendo amostras para o seu relatório de estágio, nova dimensão que lhe fizera rebaptizar os alfaiates de Gerris remigis e os mentrastos de Ageratum. Mas muitas mais vezes tinham sido aquelas em que apenas observara o rio visto de cima, centenas de metros acima, empoleirada numa das pedras do mirante, primeiro umas simples rochas que sobressaíam sobre a escarpa do vale como uma pala, depois um local a que os do parque tinham vindo acrescentar uma balaustrada de ferro e fios de aço entre os blocos de granito, e em que tinham posto um letreiro que identificava o sítio e explicava a paisagem. Pretendia explicar a paisagem. Como se a beleza daquilo tudo - e aquilo tudo não era só o horizonte, o rio, o céu, era muito mais - não estivesse no facto de que o mais importante era o que naquela mesma paisagem ficava sem explicação. Pois não via ela, daquela sacada sobre o vale imenso, pedaços da sua vida? Tantos recantos da sua alma?
Ali estava agora, agarrada ao Alberto, o seu Alberto, sentindo o vento quente a subir do vale e a roçar-lhe a cara, vendo os grifos ao longe, talvez além um abutre-do-egipto, falando de trasgos que vinham até si trazidos da sua infância, inesperados. Ali estava agora, no seu miradouro. Tão seu. No íntimo sabia que fora ali, numa noite quente de Agosto de há anos, que engravidara do Alberto, logo no primeiro Verão que ele viera à aldeia para ela o apresentar aos pais, no ano do seu casamento.
- O Titó é que me perguntou pelos trasgos. Deve pensar que a barragem virá a alagar os sítios dos trasgos!
- Não inunda este sítio, pois não? - perguntou com alguma ansiedade.
- Claro que não! O nível máximo da água fica ali em baixo, mais ou menos onde está aquela casota além, ao lado daquela amendoeira maior…
O ar estava mesmo quente, uma bruma de calor empastelava pormenores à distância e a luz do sol a descer para o ocaso tornava baço o horizonte. Ervas secas e alguns cardos pareciam ir incendiar-se com a tonalidade a jorrar de poente. Ao Alberto pareceu-lhe ver qualquer coisa a correr e a meter-se entre as giestas, num patamar. Teria sido uma raposa? Um grifo passou vagaroso, surgido de repente sobre as suas cabeças, a planar para as fragas. Deram um beijo e dirigiram-se ao carro, de mão dada.
De longe ainda perceberam que o Titó dormia. Mas havia algo que não batia certo... o carro tinha os pneus em baixo! Ele deu a volta, incrédulo. Os quatro! Estavam todos completamente em baixo! De certeza que tinham passado por fosse o que fosse que os furara e esvaziara lentamente, talvez duma casa que estava em obras à beira do caminho, à saída da aldeia, quaisquer pregos deitados para o trilho… O Titó acordara entretanto, participando do espanto. Só chamando um reboque é que o carro sairia dali! Foi o que se fez, chamar o reboque pelo telemóvel. E foram andando a pé para aldeia, a escasso quilómetro e meio, sol a pôr-se.
No dia seguinte, na oficina na vila, o mecânico assegurava-lhe:

- Não, senhor engenheiro, os pneus não estavam furados. Alguém lhe pregou a partida de os esvaziar aos quatro… e voltou a por as tampas nas válvulas!



Manuel Cardoso, 2011

[Publicado em "Trás-os-Montes e Alto Douro: mosaico de ciência e cultura (colectânea de autores oriundos de Trás-os-Montes)", sob a coordenação de Armando Palavras, volume propriedade da Comissão de Festas Nossa Senhora das Graças 2011, uma antologia focada sobretudo em Lagoaça, Freixo de Espada-à-Cinta] 

sábado, 26 de outubro de 2013

CONCERTO EM ACORDES DE NONA

Foi publicado este poema "Concerto em Acordes de Nona" na Antologia de Autores Trasmontanos, A Terra de Duas Línguas, volume II, 2013. Foi escrito já há três anos. Aqui se republica. Nessa antologia tem uma gralha significativa: o título apareceu com uma palavra a mais, "sinfonia", que estraga muito... uma coisa é um acorde de nona, um acorde muito especial (foi o professor Joel Canhão quem me ensinou o que eram, o que são, acordes de nona, num dos seus repentes de inspiração numa aula de música no colégio, há 43 anos, quando atinava com o tom duma coisa que estávamos a ensaiar e se deixou levar pelo teclado, como lhe acontecia tantas vezes!), outra coisa é a nona sinfonia, seja a de Beethoven seja a de Mahler ou outra, que aqui não vêm para o caso, de modo algum!



CONCERTO EM ACORDES DE NONA
 
 
VAI COMEÇAR


Libreto na mão.

Vozes, tosses, cadeiras,

Anarquia de sons.

Batuta.

Breve silêncio.

Nota contínua, emoção.

Arrebatamento, sentimento.

Tristeza, alegria, as duas faces de um poliedro feito de acordes.

Embarcar numa tormenta, sonhada, de claves, de linhas, de notas,

Antecipar, já sentado,

Voar de olhos fechados,

Alado nas pautas.

Pautas que batem suavemente,

A planar para o horizonte.

Movimento de ritmos, de compassos, de tempos.

Harmonia de sons.

Um imenso empolgar do coração.

Schiu…

Expectativa.

Braços abertos.

Vai começar.

 

PRIMEIRA PARTE

 
 
PRIMEIRO ANDAMENTO

 

Ouve-se música.

Nitidamente.

É música, de certeza!

Será jazz, atrás daquela porta?

 

(Dúvida:

De que foi feito esse som,

Que fez com que a terra não seja muda,

Vento, ondas, correntes, vulcões de espanto,

Montanhas erguendo-se em convulsão,

- De que seria esse som?

Teria sido jazz?)

 

Rumor verde de folhas,

Rumor quente de folhas,

Rumor húmido de folhas na chuva intensa,

Rumor seco de folhas rubras em torvelinho,

- De que seria esse som?

Teria sido jazz?

 

Zumbido de insecto,

Bater de casco,

Brama de macho a chamar por fêmea,

Berro de parto, vagido de leite,

 - De que seria esse som?

Teria sido jazz?

 

Talvez jazz não fosse, exactamente jazz…

Mas ao ouvir

Clic de ramo (um ramo a estalar),

Asa de ave, num roçar suave,

Voz de mulher, a cantar,

(que arrepio, tão suave, tão bom, tão forte, tão tudo)

- e logo um chiar de melodia,

De porta a ranger… iiieeehhh,

Que ao abri-la se sente

Vento, ondas, correntes, vulcões de espanto,

Montanhas erguendo-se em convulsão,

E uma emoção tão boa, tão suave, tão forte, tão tudo

Que só pode ser jazz!

 

Só pode ter sido jazz!

Atrás desta porta

A fazer – a soar!

Com que a terra não só não seja muda

Mas que seja em si uma mulher,

Bonita de ver, de ouvir, de tudo.

Um arrepio,

Tão suave, tão forte, tão tudo…

Certeza:

Jazz, atrás daquela porta!

 

 

OS SONS DA NOITE

 

 

Acordei de noite

a ouvir os pingos no telhado.

Acordei de noite

A ouvir o vento nas paredes.

Acordei de noite

A ouvir a chuva a cair das telhas dos beirados.

Acordei de noite

A ouvir o vento nas árvores do quintal.

Acordei de noite

A ouvir as frinchas a brincar com o ar.

Acordei de noite

a ouvir o som grave do temporal.

Acordei de noite.

Que é?

Quem é?

Anda aí alguém?

 

Não tenhas medo, meu amor:

São só pingos de água,

Fios de chuva no beiral,

O vento que hoje veio ao quintal.

Não tenhas medo, meu amor.

Eu tenho-o por ti.

Eu acordei para ouvir o telhado,

Acordei para ouvir as paredes,

Acordei para ouvir as telhas, os beirados,

Acordei para ouvir as árvores sibilar,

Para ouvir o ar a passar nas frinchas,

Acordei para o temporal.

 

Para que tu durmas, meu amor, ao pé de mim.

Para que tu durmas.

Dorme.

Não acordes de noite.

Eu acordo por ti,

Ouço por ti os primeiros pingos no telhado,

O vento nas paredes,

A chuva nas telhas, nos beirados,

O vento nas árvores do quintal,

As frinchas a brincar com o ar,

O som grave do temporal.

Eu ouço por ti.

Dorme.

 

Como gosto de te ver dormir ao pé de mim!

Enquanto tu ouves,

Num sono tão embalado,

A música de um anjo – de certeza o meu!

Que o teu está comigo,

A escutar comigo,

A velar por ti,

Desde que ambos ouvimos

No meio da noite,

Os primeiros pingos no telhado.

 

LAUDES – DOMINE, Imensa

 

Laudes. Bronze.

Corredor imenso. Eco.

Ruído de chave na fechadura,

Passos de alguém,

Mais passos de alguém.

Ranger de porta de gonzos,

Trinco de madeira,

Deslizar de pedrês,

Roçar de tecidos,

Tilintar de chaveiro,

Respirar ofegante,

Ladrilho que bate sob um passo,

Afastar de vulto,

Suspiro,

Sineta que tine,

Apressar de sandálias.

Corredor imenso. Eco.

Ruídos de chaves em fechaduras,

Ranger de portas de gonzos,

Trincos de madeira,

Ladrilhos que batem sob os passos,

Corredor imenso. Eco.

Porta que bate.

Silêncio.

Corredor imenso. Eco.

Canto imenso.

Breve solitário.

Uníssono som, imenso,

Perfurando o tempo,

Imensidão:

Domine, labia mea aperies!

Eco.

 

ANDANTE

 

 

Andante presto.

Pressa de fuga,

Oboés em contraponto:

Notas cruzadas por toda a avenida,

Penduradas nas árvores, nos candeeiros, nos néons.

- Quem se atreve a inverter o sentido,

Servir como herói numa terra tão árida,

Fazer música sobre os gemidos?

Andante presto.

Gemidos breves,

Breves da pressa,

Calcados sobre passeios

Por saltos altos,

Notas soltas,

Crescendo do chão,

Som de convite sob o tacão?

Presto, prestíssimo.

Pressa de fuga,

Oboés em contraponto,

Notas cantadas por toda a avenida,

Carros passando em baixo contínuo,

Estridências ferindo o ouvido

Onde ecoam gemidos

Breves,

Obsessivos,

Cruzados por toda a avenida

Em contraponto com passos

Que soltam,

Calcados sob tacões de pressa,

Saias de captar atenções,

Notas puras de oboé

Decantadas por clarinete.

Como herói em mar,

Contra o sentido,

Contra a corrente.

A lutar pela vida.

Invertendo o sentido,

Cheio de pressa,

De pressa de fuga.

Vamos?

 

DESTINO, Ludwig

 

I

De súbito, as madeiras:

Num sopro, o Destino!

(como se as madeiras pudessem ter dado um sopro,

 de vendaval,

dos de nos levar ao Destino…)

Mas nós ouvimos um sopro de vendaval!

Bater três vezes,

Acentuar ainda uma quarta,

Cadência em eco,

Cadência de terra em terra,

Pelos quatro cantos do mundo,

Pelos quatro cantos da desilusão.

Ó Heiligenstadt! Ó Viena! Ó Bona! Ó Paris, maldita!

Tricolor esfarrapado, caixa de Pandora!

Porque não ouço aquele doce som?

Schiu!

Onde pára a Esperança?

Pandora, dá-me a Esperança, se também me deste o resto!

De súbito, as madeiras, outra vez.

Bate três vezes, o Destino. Será o quarto, o bater da Esperança?

Mais uma vez, outra e outra,

Contraponto feito de mim, de cordas, das madeiras, dos metais…

Despejai-vos! Despejai-vos todos! Timbales!

Oboé de encanto,

Que te mantiveste por mim

No silêncio dos outros…

Ah! Aí estão de novo…

Bate três vezes, o Destino.

 

II

Schiu! Deixem-me ouvir!

Olha como vem ao meu encontro,

Suavemente, tão manso,

Outra vez a bater à porta…

Destino, és tu?

Não pareces o de há pouco:

Trazes-me a Esperança?

Fagote, oboé, marcha de quem vai cansado,

Agarrado à vida tão só porque a vida se lhe agarrou,

- e porque eu quis! –

Assobio trauteado, iludir de Destino,

Baixos e contrabaixos

A esconderem as vezes que o Destino bate.

III

Scherzo:

Caldeirão mágico!

Harpejo em Dó menor.

Mistura alquímica.

Que me pergunta, o Destino?

Eu não quero perguntas, quero respostas!

Quero misturar toda a poção,

Fazer magia,

Esconjurar sombras,

Fazer surgir uma nau que voe,

Desfraldar velas.

Onde está a Esperança?

Fecha-te, caixa!

Faz desaparecer Destinos não convidados!

Timbales, dai-me um som de mistério

Que convoque ondas

Que convoque o vento,

Dai-mo!

 

IV

Apoteose escondida em mim

Forçarei o Destino

A dar luz

A sufocar Pandora

A exultar de júbilo

- de júbilo de drama vencido!

Vem, Destino, vem passo a passo

Vem de mansinho ou de rompante

Despejar-te em mim, intenso, exultante,

Para que eu, armado de sonhos, de visões, de compassos,

De claves e ritmos insuspeitos

Possa esperar-te,

Possa, ouse talvez!,

Sem serenidade

Com um gesto desgrenhado e de louca visão,

Romântico devir!,

Subjugar-te de génio,

Subjugar-te de encanto.

E surpreender-te

Como se para o Destino eu surpreender

Baste um sopro.

Um sopro de madeiras,

Feitas de vendaval.

Dado de súbito.

De súbito final.

 

INTERMEZZO

 

A VIOLA DE EL-REI

(para ler duas vezes, moderato)

 

Com música espessa e voz pegajosa,

Se foi el-rei ao campo colher flores.

(Ao campo, ali, na Rua Augusta)

Deu com uma fada muito andrajosa

Por quem se derreteu cheio de amores.

– Bom dia, Senhor! – ela entoou.

(surgindo da esquina, a ver se assusta)

A um gesto dele, se calaram os instrumentos,

Emudeceram as suas vozes os cantores,

E ficou-se a olhar para ela, esses momentos,

Preso de voz tão mágica que o encantou.

“Como fazer pra não deixar tão doce instante?”

(“Que olhos tão fortes, cintura tão fina!”)

Num repente a el-rei lhe veio a inspiração:

– Toda a vida me tereis ao lado, linda senhora,

Se me derdes mercê de tal ventura,

Mas para tal haverá uma condição

Que será para os corações uma penhora,

Ser toda a noite, em serenata, minha constante.

(“Que rei é este, que fala assim?

Dalgum teatro, isto só a mim!”)

– Convosco irei, senhor! – voz de ternura…

Dizei-me, então, que devo fazer…

– Basta, apenas, prometerdes-me um condão

De estar sempre pronta e disfarçada

Para ao meu lado como musa permanecer,

Para ao meu lado estardes sempre de Inverno e Verão.

– Convosco irei, senhor! – voz de certeza…

Dizei-me, então, vosso desejo.

– Sereis dama, princesa, o que quiserdes,

Mas sereis também, nas outras horas,

(as dos meus fados, dos meus descantes),

Indo comigo sob o meu braço, serva fiel e dedicada.

(Juntou-se gente, atiraram euros)

- Será assim, senhor meu rei, como em vosso pensamento…

E nesse instante ela sumiu com grande espanto.

Tomando ele, na mão, com que a afagava, uma viola.

Nova, de som etéreo, de cordas de firmamento.  

 

A ARCA DE MÚSICA

 

Numa velha arca, no meio de papéis ratados,

Apareceu uma folha de música.

Muito antiga, manchada dos anos, de sangues, de tintas,

Com pautas de quatro linhas, vermelhas, riscas à mão.

Só de se olhar nela se ouvia o cantochão,

Forte, profundo, de lentos hinos cantados,

Ecos nas pedras da abóbada, nas colunas gémeas dos claustros.

Sons que iluminavam vitrais doutros tempos de conversão.

Tapando a folha, parava o canto.

Seria feitiço ou coisa de santo,

Sortilégio assim?

Dizia-se que essa velha arca fora um dia,

Tirada do coro, (antes servia de baú de pergaminhos de músicos),

Relegada para um canto, desprezada!,

Para um canto esquecido da abadia.

Dizia-se que nela um noviço se sentara,

Num ensaio de canto de horas esquecidas,

E se distraíra na surpresa de um perfil

De uma dama que a ouvi-lo se detera.

- De onde vem tão bela voz? Dissera ela.

- Da arca! Respondeu ele, emudecendo.

Ficando roxo de tal presença, preso de tamanho encanto.

E aflito. Que dizer ou que fugir?!

Mas ficara. E ela, aproximando-se, acreditando na palavra tonsurada,

Deu alguns passos, olhou para ele e a abriu.

Um canto celeste então se ouviu,

Em latim, a voz dos anjos que há cá na terra.

Fugindo, o noviço não mais parou até ao pátio,

Deixando atrás de si caída a folha.

Ela a tomou, a enrolou e a guardou.

 

Que ali há bruxa, que ali há demo, que ali há…

Sufocando, não mais atinou nem com o canto nem com ela.

Para sempre gago.

Ninguém viu a senhora do perfil,

Nem então, nem nunca mais.

Diziam ao noviço que atarantava:

- Foi visão, foi das horas do jejum, nada demais!

Mas ele teimava em que não, que em carne e roupa a vira ali.

E apontava, olhando o coro, de cá de baixo, com mui temor,

E mui tremor, no braço magro a sair da estopa.

Levaram-no de braços até lá acima: lá estava a arca.

Fechada e muda.

Levantaram a tampa pela dobradiça. Silêncio e pó.

Cheiro de tinta, de ceras de pergaminho.

E então ele, pegando a folha, pautas escarlates, ali pousada,

Depressa pensou, coisa tão louca!

Que alguém tivera que a trazer, que a arrecadar.

Fez o gesto de a desenrolar - seria um cabelo?!

Um hino celeste então se ouviu,

Em latim, a voz dos anjos que há cá na terra, um canto belo.

Fugiram todos sem mais parar.

 

(É então que jogral ou bufo pega em barrete,

Com ele na mão o estende à gente,

Muitos mirones ali à frente,

Sorriso franco e voz de falsete:

Uma moedinha, senhores, uma moedinha…)

 

E recomeça:

Numa velha arca, no meio de papéis ratados…

 

SEGUNDA PARTE

 

ENTRADA

Ruídos sem forma.

Notas  súbitas no mesmo tom.

Tudo em láááááá.

Batuta na estante.

Breve silêncio.

Clap de palmas.

Vai-vém de maestro.

Suspense. Pausa.

Silêncio.

Uma última tosse.

Som contínuo, acompanhamento de cordas, madeiras, metais.

Som mais cheio…

Recomeço.

SE EU FOSSE UMA NOTA DE MÚSICA

 

Se eu fosse uma nota de música

(e porque não hei-de ter sido?

Por que não hei-se ser?)

Gostaria de estar na abertura de Tannhauser,

No sopro de um clarinete,

No gemido de um violino de Verdi,

Envolto em mistério nos primeiros acordes da Traviatta,

Gota de água em Carlos Seixas

- de uma lágrima de dama, dançando na corte!,

Intermmezzo da Rusticana,

Choro de Villa-Lobos,

Pausa antes de um dilúvio de Ludwig

- Ludwig todo ele é dilúvio!

 

Se eu fosse uma nota de música

(e porque não hei-de ser?)

De certeza estaria na guitarra de um fado,

Na voz de um coro antigo,

Na de uma carpideira sentida.

 

Se eu fosse uma nota de música

Não sei porque não seria tudo.

Poderia ser mesmo tudo e ao mesmo tempo.

 

E porque não hei-de ser, uma nota de música?

 

 

GOSTAVA DE IR A MANHATTAN

 

 

Gostava de ir a Manhattan

Ouvir música e dançar.

Entrar e sair nas portas,

Das lojas, das galerias, dos museus,

Por onde sai todo o mundo,

Por onde entra toda a gente.

Ir aos prédios que são países,

Subir aos céus que há cá na terra

- Mais altos que a nossa serra.

Gostava de ir contigo,

Pra conversar de Deus, da vida e de tudo.

Gostava de ir contigo,

Falar de coisas de todos os dias,

Fazê-las arte, sublimes, literatura:

Coisas inesgotáveis,

Apetecidas,

Como Manhattan.

Gostava de ir contigo.

Um dia,

Uma hora,

Qualquer hora

E descobrir-te: ó Destino!

Aí,

Aqui,

Dentro de mim,

Na Broadway – numa cena na Broadway!

Com música,

Com orquestra,

Com saxofones,

Com cantoras, actrizes e bailarinas…

Gostava de ir. A Manhattan.

 

CORO

 

Retorno ao transe.

Som cheio, de uma vez.

Arrebatamento.

Vem do chão?

Do ar?

Destas paredes?

Do tecto?

Entrará pelos vitrais?

Por aquelas portas?

Virá daquelas arcadas?

Dos bancos?

Lá de cima, do coro?

Lá do fundo, do portal de entrada?

Serão as velas?

As imagens?

Os altares?

Os retábulos, as colunas, os caixotões do tecto de masseira?

Derramar-se-á daquele zimbório, no alto da abóbada?

São estas pessoas que cantam?

São estes acólitos?

São aqueles cantores?

São aqueles padres?

Será de hoje?

Será de dantes?

Será de sempre?

Vem do chão?

Do ar?

Destas paredes?

De lá de cima, do tecto?

Vem do passado?

Vem de dentro, das vozes?

De dentro, da alma?

 

Vem de Bach.

Virá sempre de Bach.

 

CONCERTO EM ROCK

 

Som baixo e pianíssimo.

Flat rock.

Frase de expectativa,

Transe de expectativa.

Adagio descendente.

Modo menor.

Emoção a crescer…

Tristeza a esconder.

Súbito: luzes fortes!

Cascata de acordes de todos os lados.

Electrónica em fluido,

Fogo,

Sons máscara,

Sons inundação.

Rasgam, queimam, partem-se no ar.

Evaporam-se na multidão.

Evapora-se a multidão,

Feita uma, émula de si própria.

De ritmo, de vibração,

Braços no ar, como a deixar escapar os dedos.

Forças exorcisadas pela música.

Medos exorcisados pela música.

Uníssonos, explosões.

Gritos de euforia e espanto, saltos:

Mais! Mais!

 

 

FONTE

 

Gota a gota, numa velha fonte,

Vertia-se música por uma boca de Anacreonte.

Raparigas que passavam,

Esvoaçavam!

Mais ágeis que os pássaros que dela bebiam.

Dançavam de roda em passos pequenos de pés descalços

- Tiravam os sapatos para se sentirem de pés no chão –

Feitiço de música que caía, gota a gota, daquela fonte,

Vertida da boca de bronze,

Inebriando mais que um vinho forte.

Um golo de água – um golo de música! – que tinha virtudes:

Fazia voar!

Fazia sonhar!

Fazia-as viver, às raparigas que passavam,

A música vertida gota a gota,

Daquela boca,

Da velha fonte.

 

A UM SOM DESCONHECIDO

 

Eu pensei que sabia que som fosse este.

Mas não o identifico.

Sei que é de sempre,

Que já existia antes de o comporem,

De o escreverem,

De o orquestrarem.

Já existia, decerto. Muito ouvido, decerto.

Estaria dentro do útero?

No mar antigo?

Nas tempestades?

Com violinos, sintetizadores e bateria?

Stevie, Stevie, tiraste-o da Bíblia, corda a corda?

Já o tocariam nos jardins da Babilónia,

Nos palácios do Egipto?

Soprá-lo-iam com trombetas no Coliseu de Roma?

Nos psaltérios de damas medievas,

Nos cravos barrocos,

Nos pianos românticos,

Nos cabarets de Paris,

No sapateado de Dublin,

Nas guitarras do Bairro Alto e da Alfama de Lisboa?

Que som é este?

Não é o do mar, nem do vento, nem de coisas vulgares.

(nem o mar nem o vento são vulgares, entenda-se!)

Que som é este?

 

FINALE

 

Tudo ficou para trás, nada mais resta.

Plateia vazia, conversa breve de despedida num camarote.

Ficamos as obras que conseguimos ser

Com destroços de tudo o que não fomos.

Há que arrumar, meter nos estojos, guardar as pautas.

Oh, se houvesse outro sítio para te amar sem ser no mundo,

Se houvesse uma outra vez!

Tudo ficou para trás, agora.

Já nada mais.

Nada mais.

 

A não ser esse outro som que nos acompanha,

Fiel na sua nota muda e presente,

A teimar lembrar-nos – coisa estranha!

Que ele está também aqui…

Que não ficou perdido, razão da existência,

Que teima uma e ainda outra vez

Como se houvesse outro lugar para o nosso amor

Sem ser tão imperfeito o deste mundo,

Como se houvesse outra maneira de amar,

Com a mesma orquestra, a mesma pauta, o mesmo empenho.

Talvez nem tudo, assim, tenha ficado para trás…

 

Dá-me a tua mão!

Vamos os dois, certos de termos chegado aqui,

Nessa outra existência de dimensão estranha,

Arrebatados por acordes, compassos, notas stacatto.

Pedir a Deus que foi nosso e será depois,

Que nos dê uma hora breve, breve que seja

Junto da sua Eternidade!

Podermos uma outra vez.

Poderemos, nesse tempo sem idade?

 

Glória de acordes, de sons inauditos!

Porventura não ver, não palpar, não respirar doces aromas

Mas ouviremos o tempo, o escoar eterno do tempo.

O que foi nosso, mais urgente.

O que é dos astros, sempre presente.

O que está aqui e não se repete,

O que está nas estrelas, nas galáxias, nos intermináveis confins.

Suave e forte murmúrio existente no instante,

Estampido de princípio,

Música que não se faz de espaço,

Que é passado de onde vimos, presente em que somos, futuro que nos espera.

Música que é só tempo.

Tempo e som.

 

Escuta! Dá cá a tua mão! Não ouves?!

Esse som, esse som…

 

ENCORE

HORA

 

 

Hora de ir para casa.

Ou para um pub ou um bar.

Trautear a memória, talvez cear.

Por em palavras as emoções,

Discutir frases, discutir sentimentos:

O pós-concerto é sempre de uma euforia íntima,

Depois da música fica sempre uma doce náusea,

O mundo vestido de caleidoscópio.

 

Ah! Um encore!

Sentamo-nos outra vez.

A orquestra toca solta, palmas mais fáceis.

Acordes familiares de Vivaldi e Strauss.

Público em pé.

Aplausos.

 

Aplausos ao maestro,

Aplausos aos músicos,

Aplausos à música,

Aplausos ao público?

Aplausos, viagem no tempo,

Dia longínquo em que um compositor escreveu,

Nota a nota, frase a frase,

O motivo destes aplausos.

A música é tempo, 

Metrónomo constante,

Pedaço de eternidade,

Forma de se estar em qualquer sítio e em qualquer idade.

 

Vamos, vamos! Flores no palco,

Todos em pé com sorrisos e vénias.

Vamos.  Sair para o trânsito.

Para a noite, as luzes, os semáforos.

Conquilhas numa esplanada de turistas.

Hora de cear.

Por em palavras as emoções,

Que o pós-concerto é sempre uma euforia íntima,

Uma doce náusea com cerveja ou champagne,

O mundo vestido de caleidoscópio.

Vamos!

 

Mais tarde


PREMIR DE UM BOTÃO

 

Primo o botão – e desaba-me uma torrente de música!

Ar comprimido em frequências,

Desperta paixões de alma, dormentes,

Exaltação íntima pelo som.

Tudo desaba em mim.

Que vibrações misteriosas

De um clic ao cérebro,

De um tempo a outro,

De vidas alheias até à minha,

De vidas passadas até às de agora!

 

Som de sempre,

Percorre o mundo como se fosse um fractal,

Senhor do tempo,

Senhor de uma imortalidade,

Senhor do caos.

Som.

 

Onde dorme quando o não escutamos?

Em que confins se esconde para que não se perturbe?

Porque surge, intempestivo, indomesticado, do nada?

Onde está, antes de ser trovão,

Sibilo de vento ou sopro de tubo de órgão?

Torrente de música,

Paixão da alma,

Pesadelo de Brahms,

Tormento e doçura de Schuman

Mecânico,

Eléctrico,

Natural,

Artificial,

Cerebral…