FILIGRANA E
O CONSÍLIO DOS GATOS
Miguel
Midões, Chiado Editora, 2012
Texto da apresentação feita na Poética, em Macedo de Cavaleiros, do livro do Miguel Midões
Meus caros
amigos
Tenho que
começar por um grande agradecimento por ter sido convidado para apresentar este
livro: é que quando aceitei não pensei que estivesse a ser convidado para
apresentar não apenas um livro mas uma obra de arte! De facto, as ilustrações
notáveis de Rute Bastardo, remetendo-nos para o universo de Os Aristogatos, da
Disney, mas com um brilhante estilo muito pessoal e peculiar, predispõem-nos
imediatamente para a história que se vai seguir, seduzindo-nos como nos
gostaria de seduzir a Filigrana, uma gata com vocação para ser queque, não uma
queque qualquer mas a queque mais queque da sua cidade, mais queque da sua
região e mais queque do seu mundo!
Daí o meu
agradecimento ter de ser não um simples agradecimento mas o agradecimento mais
agradecido ao autor, mais agradecido à ilustradora, mais agradecido à Poética e
mais agradecido a todos os ouvintes aqui presentes que são os ouvintes mais
ouvintes da nossa cidade, da nossa região e do nosso mundo!
Tenho que
trazer aqui alguns pontos prévios, declaração de interesses: o autor foi e é
meu amigo, foi e é um profissional com quem tenho a sorte de lidar desde há uns
anos a esta parte (não sei se depois de hoje as coisas ficarão exatamente na
mesma…) e, também, um cliente, precisamente por causa de um gato, o Inca,
frequentador do meu consultório e alvo das minhas idas a sua casa na Alameda
Nossa Senhora de Fátima, aqui em Macedo de Cavaleiros. O Inca, um sortudo
felino que seria um pretendente ideal para a Filigrana, nem sei mesmo como é
que o Miguel não tratou desse arranjinho…
Mas estes
pontos prévios sobre o amigo, o profissional e o cliente colocam-me na posição
de me poder dar à liberdade que se pode ter com um amigo, contando com a sua
inteligência e argúcia profissional e ainda com o favor de ser cliente a quem
se dispensa uma atenção, para com isto lhe dizer, abertamente, que não vou
apresentar o seu livro. Não precisa.
Um homem que
tem uma família como a sua, o Santiago, o Ricardo e a Cristiana, cumprindo a
parte mais importante da trilogia de ter um filho, escrever um livro e plantar
uma árvore, tem tudo para que tudo o mais seja dispensável. Por isso, compreende-se
que a minha tarefa de hoje seja perfeitamente dispensável.
Daí que eu
não venha aqui fazer a análise literária de Filigrana e o Consílio dos Gatos ou
fazer o perfil psicológico dos personagens ou da trama em que o escritor os
enredou. Não é preciso.
Trata-se
duma história da Carochinha e do João Ratão, vista ao espelho, vista do outro
lado do espelho como se fosse uma das portas para o mundo de Alice[1].
É uma metamorfose que vem do recôndito do nosso passado infantil, é certo, para
o mundo infantil de hoje, é também certo. Mas que está para lá da literatura e
da sua pretensa infantilidade. Aliás, está para cá. Porque nós conseguimos
rapidamente perceber que a frivolidade de Filigrana não é uma frivolidade tola,
seca e oca… é, antes, uma frivolidade intencional do escritor que com ela
enfeita uma gata lambida de intencional orgulho[2].
Gata essa que pode nem ser feminina na vida real, pode nem ser queque na vida
real (tomara ela, ou ele, a ou o da vida real, ser queque!), pode bem ser uma
mera mas extraordinária garatuja de gata feita com as garras numa parede em que
quer apanhar um inseto, desenhando com isso a caricatura de alguém que por aqui
percorre as ruas connosco, no meio de nós, apertando a mão, com quem o autor
terá travestido toda uma cena de realidade.
Só que
Filigrana tem a sua personalidade e por muito tola, seca e oca que possa ser, é
livre de a ter, tal como todos nós somos livres de ter a nossa.
Já, de
certeza, todos viram gatos a brincar com um novelo de lã. Se o novelo começar a
desfiar, a sua meada acaba por enredar-se, no espaço e no tempo, com os gatos
numa interminável agitação, focada naquela brincadeira. Até que terminam subitamente
e a abandonam, indo para outro lado, fazer outra coisa. É a sensação – uma das
sensações – com que ficamos da leitura deste conto.
Podemos
lê-lo de muitas maneiras, tentando perceber não só a Filigrana mas também todos
os outros, mesmo os mais fugazes ou apenas figurantes, com todas as cores, o
preto e branco do carvão, os cheiros e ambientes, a cabeleireira que deixa a
sua loja para ir ao encontro da vida real e premente... Toda a encenação, todo
o poder que surge a captar como alternativa a vida de Filigrana, aparente e
misterioso (misterioso?!) daquilo que na vida nos serve para desviar e até
bloquear da verdadeira vida, o Consílio (que o autor escreve significativamente
com um s…). Este consílio é muito mais do que uma criação literária, é uma
transposição de algo medonho que incorpora alguns arranjos sociais que
pretensamente agem para bem da sociedade mas que são fatores de desigualdade e
de antidemocracia. Para se ser do consílio teríamos de abdicar da nossa cor, da
nossa personalidade. Nunca nos pediram que abandonássemos a nossa cor como
condição para se ser dum consílio?
Este conto é
um conto infantil mas que não é um conto infantil. É bem um exercício maduro
sobre uma intuição e uma sabedoria de vida que o autor resolveu escrever e
publicar para sinalizar um percurso e para poder colocar, de uma forma
indelével, um sinal de perigo e de advertência que entende útil para os seus
filhos ou para quem o quiser e souber ler. Ao bom estilo do que se encontra
cifrado nas fábulas antigas.
E,
creiam-me, há muito de Macedo neste conto. Os seus gatos gordos e postados à
porta, os seus consílios, os buracos negros e secretos com que alguns querem
ser mais gatos do que os gatos – com que alguns pensam que são mais gatos do
que os outros gatos…
Mas vir aqui
falar de gatos é impossível sem que nos remetamos para Fialho de Almeida[3]
e sem que desejemos ser gatos:
«Deus fez o homem
à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato. Ao crítico deu
Ele, como ao gato, a graça ondulosa e o assopro, o ronrom e a garra, a língua
espinhosa e a câlinerie. Fê-lo nervoso e ágil, reflectido e preguiçoso; artista
até ao requinte, sarcasta até à tortura, e para os amigos bom rapaz,
desconfiado para os indiferentes e terrível com agressores e adversários. [...]
Desde que o nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o
burro, o cão e o gato – isto é, o animal de trabalho, o animal de ataque e o
animal de humor e fantasia – porque não escolhermos nós o travesti do último? É
o que se quadra mais ao nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da
escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro.»
Também isto, intemporal e universal, se poderia aplicar a Macedo…
Mas não nos desviemos da essência que aqui nos trouxe, a todos, num
sábado, convocados pelo Miguel Midões: a essência do que é importante. A
essência do que é mais importante na nossa cidade, é mais importante no nosso
mundo, é muito mais importante na nossa vida. E o que é importante é, afinal,
darmos razão à Pintas, a amiga, verdadeira amiga de Filigrana: o mais
importante é estarmos rodeados de amigos!
Latães, 13 de Outubro de 2012
Manuel Cardoso
[1] Alice no
País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho, de Lewis Carrol,
pseudónimo de Charles Lutwidge Dodgson (1832-1838).
[2] Sobre a
frivolidade aparente dos contos e fábulas veja-se “Uma Rosa” in Os
Imperdoáveis, de Cristina Campo, Assírio & Alvim, 2005. É imperdoável não
ler Os Imperdoáveis, de Cristina Campo…
[3] Os
Gatos, Fialho de Almeida (1857-1911).
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