© Manuel Cardoso
Foi-me sempre difícil ficar só por um copo ao beber o vinho do Lombo. Várias vezes me aconteceu, há muitos anos, ter de ir tratar dalguma vaca ao meu amigo João Brás e obrigatoriamente passar na sua adega, na casa no Castelo, onde havia várias pipas: a do corrente, rescendente, e que ele destinava ou a um pipo de reserva ou a um para vinagre, consoante a sua sabedoria e a da opinião dos conhecidos, e uma outra, mais bojuda, de onde saíam garrafões por rateio para o João Saldanha, de Peredo, um para mim (uma grande honra!) e para compadres certos de Macedo e doutros lugares. Era um vinho enganador, leve na língua, de côr âmbar, vindo das uvas duma vinha antiquíssima que ainda existe, abandonada, no Alto do Lavôr, a caminho do Azibo, e de cujo açúcar e películas se formava um néctar incomparável e irrepetível todos os anos, cuja alquimia fazia prodígios destilando graus acima de graus e que meteriam num chinelo qualquer, todos os que hoje se afirmam “orgânicos, biológicos e/ou biodinâmicos”: nunca tive uma dor de cabeça depois das saúdes que fizemos na sua adega, onde se produzia esse tal milagre – o de que o vinho espontaneamente surgia no nosso copo mal acabávamos de o esvaziar! Com presunto, ou lascas de bacalhau, ou pão entremeado dum salpicão – ou mesmo só o vinho no copo, num dia escaldante, puro, límpido e com o aroma incrível duma vinha muito velha do Lombo, não sei quantas vezes (mas com que saudade) eu terei saído de lá com a mesmíssima sensação com que hoje recordo, há pouco mais de uma dezena de anos, ter feito o mesmo a altas horas, terminando uma festa comemorativa no Lar da Santa Casa da Misericórdia, na mesma aldeia do Lombo, em que me vi sozinho, não sabendo o que acontecera aos demais. Segundo o Senhor Provedor, meu querido amigo Alfredo Castanheira Pinto, terei nessa noite sido “o que fechou a despensa”. Creio que sim. Mas fui ter a casa sozinho. Porque é o tal sortilégio dos vinhos do Lombo (a aldeia em que “as pessoas do Lombe são com’ó velude!” – adágio certo para gente extraordinária!), o de não nos deixarem ficar só por um copo!
Esclareça-se que, continuando
pelo caminho fora depois de passarmos pelo Alto do Lavôr e atravessando o rio Azibo
pelas Poldras (as pedras alpondras que devem estar já fincadas no rio pelo
menos desde os tempos de El-Rei D.Dinis, ou seja, há setecentos anos!)
poderemos passar para os termos de Lagoa, onde, com saudades também, recordo os copos de vinho
fantásticos que se bebiam em casa do senhor Pato Vila, às vezes rápidos nas
traseiras do balcão da sua loja comercial, e de Morais, aldeia sobre a qual o Visconde de
Vila Maior referiu ser uma das que já em 1866 exportava 334 pipas de 636
litros, numa produção de 360, consumindo-se 26 localmente (média de cinco
anos). Lombo, Peredo, Morais, Lagoa, Talhas, todas elas aldeias com encostas
para os rios Azibo e/ou Sabor, defronte do planalto para Mogadouro, de
Brunhoso, onde, no sítio da Foz do Ribeiro do Poio, escavações arqueológicas recentes
demonstraram existir uma unidade romana de produção de vinho, de há dois mil
anos, hoje submersa nas águas da magnífica albufeira!
Os vinhos da Quinta e do Casal do
Lombo, que pertencem à Santa Casa da Misericórdia de Macedo de Cavaleiros,
produzem-se perto dessa vinha do meu saudoso amigo João António Brás no Alto do
Lavôr, e na Portela, no Prado, no Vale da Pedra, nas Chãs e no Vale das Vinhas,
em que vicejam a Malvasia Fina, a Códega do Larinho, a Alvarinho, a Chardonnay, a Cabernet-Sauvignon, a Syrah, a Tinta Amarela, a Touriga Nacional, a Tinta
Roriz, a Touriga Franca e a Moscatel. A par do hectare das vinhas velhas das
Chãs, em que ocorre o field blend trasmontano quiçá desde o tempo do
Conselheiro Sá Vargas (originalmente o dono do Casal do Lombo) e do seu
contemporâneo Visconde de Villa Maior, no século XIX (field blends quantas
vezes saboreados por todos nós, felizardos, com a posta à mirandesa, o cabrito
ou o bacalhau, no Restaurante Saldanha, em Peredo). Essas vinhas todas,
totalizando uma escassa meia dúzia preciosa de hectares, são banhadas por sol a
jorros, por pingos de chuva fria, por neblinas e ventos que não obrigam a mais
tratamentos químicos que os essenciais, e que produzem uma quantidade rara de
garrafas. Em boa hora, Alfredo Castanheira Pinto, já neste
século XXI, mandou providenciar uma nova adega, a funcionar desde 2003, responsável
por dela saírem prémios, digo, vinhos, que têm merecido o bronze, a prata e o
ouro nos Wine Master, na Comissão Vitivinícola Regional de Trás-os-Montes, no
CA/Escanções de Portugal e no Wines of Portugal. Um árduo e meritório trabalho
de gestão de Susana Viana e de Francisco Castanheira Pinto, sabiamente fazendo equipa com
o enólogo Fernando Guerra e, ultimamente, com os da Winelords. Sabiamente,
repito. Porque há aqui uma varinha de condão para se conseguir, em tão pequenas
(por isso preciosas) quantidades produzidas de vinhos tranquilos, brancos e
tintos (soberbos!) e espumante, a procura que os esgota: é que não há só a vontade e instinto em produzir. Há sabedoria. Daí o ter-se ido plantar aos
Cortiços, aldeia que se situa paredes meias com o Romeu e Vale Pradinhos, nos
terrenos da Estação e de Vale Pereiro, o bouquet de Tintas, Tourigas, Gouveio e
Gewurztraminer que, nesta fronteira de xisto com granito e quartzitos, numa
Terra Quente que nada deve ao Douro em microclima, permitem a pimenta e o
colorido nas conversas sobre vinhos e conseguem a contradição de argumentos que
só os grandes atingem.
Ainda por cima, porque nos Cortiços,
que outrora deram vinhos que chegaram à Corte de D. Luís e de D. Carlos e que
foram provados na República, in loco, na Casa Charula, numa recepção a Bernardino Machado,
o chão teve a mesma dona, Margarida Pessanha, da família do Visconde das Arcas,
a mesmíssima família dona do chão onde então se produziam os vinhos que Villa
Maior começa por descrever “No concelho de Macedo existe uma pequena região vinhateira
geralmente ignorada, onde se produzem vinhos de superior qualidade, que na
opinião de homens muito competentes n’esta matéria, rivalisam com os melhores
do Douro”. Seria quase inesgotável, se agora continuássemos para essa zona, a das Arcas e Nozelos e Vilarinho de Agrochão.
Um dia o faremos, outra vez.
Hoje, o branco do Lombo já esteve
no frigorífico e está aberto, o tinto já o desenrolhámos para respirar e vamos imediatamente
fazer saltar a rolha da garrafa de espumante do Casal do Lombo, que a nossa querida visita já chegou – por isso tenho que ir! Como aperitivos, há presunto, queijos
de cabra e mistura de ovelha, outros queijos da Queijaria Quinta Vila dos Reis,
pão torrado, batatas fritas e azeitonas com alho, azeite e coentros: apareçam!
Só aqui faz falta uma pessoa, habitual aos Sábados, com que, infelizmente, hoje já
não contamos: o meu irmão Carlos!
2 comentários:
Um gosto, ver plasmado em tão rica prosa, o que já sabiamos e o que ainda não sabiamos sobre os nossos vinhos. Obrigado, Manuel.
Fernando Mascarenhas.
Caro Manuel Cardoso, isto é uma maldade!!! Brindar-nos, embrulhado numa prosa magnífica, uma ementa digna do Olimpo, no nosso querido nordeste…
Parabéns pelo texto. Um abraço bem arrochado. Zé Mário Leite.
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