sexta-feira, 6 de maio de 2022

CERTIFICAÇÃO DE VINHO - Estimável razão de ser

5 de Maio de 2022

UTAD, Vila Real

Comunicação nas III Jornadas de Enologia e Viticultura: Inovação e Criação de Valor

Associação Nacional de Estudantes de Enologia e Viticultura

Manuel Cardoso 

 


 

A todos muito Boa Tarde!

1. Agradeço o convite da ANEEV - Associação Nacional de Estudantes de Enologia e Viticultura, que me foi endereçado pela Eng.ª Adriana Vicente, pela mão da minha amiga Prof.ª Ana Alexandra Oliveira, e poder estar hoje aqui nestas III Jornadas de Enologia e Viticultura: Inovação e Criação de Valor, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), onde fui aluno na pós-graduação de Ciências Agrárias há mais de vinte anos. Este convite revela uma grande e imerecida consideração por mim, pelo que o agradeço especialmente.

Compete-me falar sobre CERTIFICAÇÃO.

2.      Devo começar por dizer-lhes, especialmente às senhoras que me convidaram, que deveriam ter feito uma certificação prévia do que vou dizer, para que se pudesse cumprir um dos desígnios básicos dum processo de certificação: o de que o produto corresponda às espectativas do seu fruidor porque, como já preveni tantas vezes, sendo eu apenas um amador informado, correrão o risco de me ouvir e no fim sair defraudadas, como acontece a tantos que adquirem vinho nos supermercados, olhando só ao preço, por ser barato, não interpretando os sinais do rótulo sobre certificações ou a sua ausência ou, pior ainda, assumindo uma certificação determinada como correspondente, só por si, a qualidades que, depois, não se revelam nem no copo nem na boca.  Desculpem-me, se não corresponder ao que esperam ouvir sobre este tema mas o que lhes direi será feito de forma honesta e com o objectivo de ficarem contentes com o tempo gasto: essas qualidades de certificação eu posso dar, a de que o processo foi feito com honestidade e com o objectivo de os satisfazer, duas qualidades à estimável razão de ser duma certificação de vinhos feita com ética: que seja honesta e procure a satisfação do consumidor.

3.      A Certificação começou muito antes do que se poderá supor hoje em dia: os selos das ânforas, as marcas nas barricas, as cartas de recomendação que acompanhavam as suas remessas, transportadas nas embarcações que desde há milénios sulcavam o Mediterrâneo, o Golfo Pérsico e as costas europeias e africanas do Atlântico, tudo isso eram processos de certificação dos vinhos que circulavam pelo Cáucaso e pela Ásia Menor, Grécia e Creta, Etrúria, Hispânia, Gália, Africa… O primeiro “Mercado Único Europeu” existiu no extraordinário Império Romano que, bem organizado administrativamente como era, não poderia deixar de ter os seus documentos de acompanhamento de mercadorias, certificações e políticas de protecção de produtos. Conceptualmente, não estamos a inventar nada, hoje em dia, estamos a repetir o que foram leis, métodos e processos outrora já utilizados numa sociedade sofisticada como era a romana e que também já antes, nas sociedades sofisticadas da Babilónia, da Pérsia, da China e da Índia, existiram como exigência das classes abastadas e cultas. O Vasco Avillez gosta de contar que pelos portos de Corinto e do Pireu e por outros em que cada vez mais se fazia essa circulação de vinho, havia umas ânforas e barricas especiais, dum vinho destinado especialmente aos cristãos, assinaladas com as letras XPTO, uma abreviatura da palavra grega "Χριστός" ("Christós" - Cristo), sigla com que Jesus Cristo aparece mencionado em numerosos documentos romanos, medievais e posteriores, vinho esse que, por isso distinto e considerado melhor, desde a sua origem ao seu mercado de destino, o dos cristãos para as suas cerimónias religiosas, hoje em dia, a Missa. Era uma forma de certificação desse vinho, da sua qualidade especial. Por extensão semântica, compreendemos assim porque dizemos que algo de especial seja xpto, nos nossos dias!...

4.      Várias vezes ao longo da história a certificação tem surgido como um método de luta contra a falta de qualidade provocada pela fraude e pela ganância: os casos do Chianti, delimitado pelos Médici em 1716, do Tokaj, classificado em 1730, e o caso, que muito nos deve orgulhar, em Portugal, da delimitação e regulamentação da área de produção do vinho do porto no Alto Douro, em 1756, a primeira a ter em simultâneo uma delimitação, classificação, regulamentação e organismo de regulação e controlo, a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, a Real Companhia Velha.

5.      O que é certificar? Uma leitura no nosso Dicionário da Academia das Ciências não deixa quaisquer dúvidas: certificar é provar que é verdadeiro; provar que está certo. Aquele que prova deve ser simultaneamente credível para quem quer certificar e para quem quer certificar-se. Ser credível significa ter idoneidade para o efeito o que, de forma simples, engloba, no “ser idóneo”, as qualidades de ser apropriado (ou seja, adequado ao vinho), capaz (de distinguir um vinho, por exemplo), apto (conveniente para o que se pretende) e competente (conhece e consegue ajuizar e fazer determinada tarefa). Pode parecer ociosa esta questão de vocabulário, mas se for entendida cientificamente, é fácil descobrir nestas palavras a honestidade, a satisfação do consumidor e a eficiência que deve fazer com que uma determinada menção num determinado rótulo, garanta aquilo que se espera estar dentro duma garrafa.

6.      Desde os inícios, por isso, que a certificação está ligada às demarcações e definições de origem dum produto como subjacentes à sua genuinidade e qualidade. Daí que a nível de cada país fossem surgindo, sobretudo por proteccionismo económico, as designações e delimitações regionais com o seu órgão regulador e de controlo (que simplificadamente aqui designaremos por CVRs), que todos conhecem, que tanto valor têm acrescentado aos vinhos – e tanto poderão acrescentar ainda! Com a política europeia começou a prevalecer uma visão de conjunto sobre estas matérias (não só para o vinho) e nas últimas décadas do século XX o pensamento foi-se compondo também com o vector do desenvolvimento regional. Convergindo todos esses desígnios, surgiram as DO, DOC ou DOP e as IGP e IG, regulamentadas, produtos com distintivos de qualidade, certificações que vieram dar segurança ao consumidor sobre a origem e conformação a determinados critérios de qualidade na produção, ao mesmo tempo que permitem ao produtor a diferenciação do seu produto e, com isto, ser expectável a sua valorização. Os OC, Organismos de controlo das DO e IG são as CVRs, o IVBAM e o IVDP, cada um na sua região (Aviso 175/2022 do IVV).

7.      Mas... A evolução dum processo relacionado com um produto como o vinho não poderia ser linear nem simples, porque tem numerosas variáveis a interferir na sua produção e consumo, na sua oferta e procura e… na opinião pública – mesmo que os actores desta opinião pública não produzam nem consumam, nas sociedades democráticas com liberdade de expressão têm uma palavra a dizer sobre o assunto e temos que viver com isso. E que nos condiciona. Ampliando, por desconhecimento, muitas das variáveis negativas que já os produtores e demais operadores no sector há muito vêm constatando e sobre elas tomando medidas. Aqui chegados, entramos num outro patamar de importância da certificação, que passaremos a abordar resumidamente, para não maçarmos, cingindo-nos ao essencial.

8.      Desde há século e meio que se começaram a generalizar novas práticas culturais, intensivas, com um apoio técnico e científico que melhoraram a produtividade e permitiram o acesso de muito mais pessoas a muito mais alimentos. Um deles, o vinho. Com consequências na biodiversidade, na qualidade dos ecossistemas, na paisagem: as áreas de vinha tornaram-se estremes na sua maioria e aumentaram de extensão em muitas regiões, não respeitando o mosaico existente na paisagem. De alguma forma, tal como são essenciais para o desenvolvimento regional, as vinhas e a produção de vinho têm particularidades que fazem com que, quer os viticultores, quer os vitivinicultores, quer as empresas do sector, quer os consumidores informados, dêem cada vez mais importância aos factores relacionados com a qualidade e com o impacto social e ambiental que possam ter.

9.      Os relacionados com a qualidade têm sido resolvidos – e muito bem – com os novos conhecimentos e profissionalismo instalado em todas as etapas deste processo que transforma as uvas em produto alimentar ou de deleite. Os sistemas de garantia de qualidade, escritos e descritos nas normas ISO 8402-1994 e 9001-2008, em que os produtores assumem a responsabilidade por procedimentos e métodos correctos e usam recursos para que o produto final tenha os atributos e a ausência de defeitos expectável pelo consumidor, têm vindo a reforçar a confiança deste consumidor no líquido que se encontra dentro das garrafas, dos bag-in-box, das latas ou das embalagens PET ou mesmo daquele que lhe é servido a copo nos bares e restaurantes. Segurança em higiene e toxicologia, em saúde, em serviço (facilidade de utilização, apresentação e conservação) e em satisfação (atributos sensoriais). Um sistema de garantia de qualidade assegura que o conjunto de características do produto lhe confere aptidão para satisfazer as suas necessidades implícitas e explícitas. Não é por acaso que muitos momentos significativos, de felicidade ou de tristeza, de partilha de emoções, de comemoração social ou do desencadear duma agradável e pessoal tempestade romântica, decorram de se beber um copo – ou dois! – dum vinho de qualidade!

10.  Estamos a uma distância espacial e temporal enorme da de há vinte ou trinta anos atrás em matéria de confiança e qualidade nos nossos vinhos! Por causa dos licenciados com competência em enologia? Sem dúvida. Mas também por causa dos compromissos assumidos pelo produtor nos programas de qualidade certificada – cá está! – e na sua transparência de declarar assumi-los e aceitar ser controlado sobre o seu cumprimento.

11.  Há os aspectos relacionados com o respeito pelo ambiente, pela biodiversidade e pela saúde: estarão salvaguardados pelos programas MPB, Modo de Produção Biológico, com mais ou menos variantes, apoiados por incentivos financeiros da União Europeia, no nosso caso, e com numerosos programas similares ou correlacionados em quase todos os países produtores de uvas para vinho. Há o programa da Produção e Protecção Integrada em que o objectivo é a obtenção de frutos sãos com boas características organolépticas e de conservação e, simultaneamente, com a preocupação de qualidade pelo produto associada à sua segurança alimentar e rastreabilidade baseado em boas práticas agrícolas, com gestão racional dos recursos naturais e privilegiando a utilização dos mecanismos de regulação natural em substituição de fatores de produção, contribuindo, deste modo, para uma agricultura sustentávelEm Portugal é a DGADR quem superintende nos sistemas de Produção e Certificação de Qualidade nomeadamente sobre Agricultura e Produção Biológica e Produção Integrada, estando disponível e facilmente acessível no seu site toda a informação pertinente sobre DOP/IGP/ETG e MBP, os laboratórios designados para controlo oficial, os organismos de controlo delegado, etc. etc. Todos eles são credíveis programas de execução, controlo e certificação que dão ao consumidor uma imagem – substantiva – de confiança nos vinhos e demais produtos que ostentam nos seus rótulos os símbolos destas certificações. Seria fastidioso estar aqui a elencar os diferentes programas de todos os países, informação, aliás, que está à distância de cliques e com possibilidade de interactividade pessoal: quase todos os dias as redes sociais têm apresentações e debates com grande nível e em que podemos colocar perguntas aos seus protagonistas nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália, em todo o mundo! O sector do vinho está a ser exemplar em transparência e em fluxo de informação em termos de CERTIFICAÇÃO e de cumprimento de programas de sustentabilidade.

12.  Decorrendo do que já referimos, tem-se evoluído muito na consciência ambiental das repercussões da agricultura/viticultura/vitivinicultura e tem ganho um relevo assinalável a concepção de sustentabilidade, para muitos parcialmente entendida como ambiental mas que tem de ser assumida na sua complexidade holística e base económica. Recomendo vivamente, porque acessível, a leitura do artigo Inventory of environmental certifications throughout the world, de V. Lempereur, M. Balazard et C. Herbin, do Institut Français de la Vigne et du Vin, apresentado ao 42nd World Congress of Vine and Wine em 2019, com abundante e muito interessante informação a este respeito, em que vem expressamente mencionado o Plano de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo e a importância da aceitação transversal das Normas ISO 14001 respeitante à salvaguarda ambiental e 26000, à responsabilidade social. Portugal, neste campo, tem dado passos importantes e não estamos desfasados em relação ao resto do mundo vitivinícola. Muitas das nossas empresas estão na vanguarda da execução de programas de certificação, com cumprimentos exemplares e, na maioria dos casos, irrepreensíveis. Há outras CVRs empenhadíssimas, como a CVR Vinho Verde, a CVR Dão, a CVR Península de Setúbal e outras, que estão a recorrer a serviços de empresas de referência para aconselhamento e formatação de iniciativas. A Consagra, a Agroges, a Consulai, a PortoProtocol (e haverá ainda outras que peço desculpa por não mencionar), têm feito trabalhos notáveis, uns mais públicos do que outros, de assessoria e aconselhamento actualizado. E entidades privadas e públicas, como a ViniPortugal, a ACIBEV, a CAP, a FENADEGAS/CONFAGRI, a AEVP, a ADVID, a ATEVA, o INIAV, a DGADR, as DRAPs, outras ainda, têm promovido sessões, nos últimos anos, de informação e debate, em que estes temas da certificação e da sustentabilidade têm ganho a importância que merecem.    

13.  A OIV, pela sua Resolução 518-2016 (indispensável o estudo desta Resolução), definiu os princípios gerais para uma Vitivinicultura Sustentável nas suas vertentes ambientais, sociais, económicas e culturais. É uma resolução fulcral em termos de dar uma perspectiva global ao mundo do vinho para o estabelecimento dum referencial comum em sustentabilidade, para que cada país possa ter o seu programa compatibilizado com os demais. Complementada pela Orientação OIV 641-2020, toda ela um guia de aplicação da OIV dos princípios da Vitivinicultura Sustentável. É à luz destes instrumentos normativos que o IVV em articulação com a Vini Portugal – Wines of Portugal, desde 2021 está a desenvolver um Programa Nacional de Certificação de Sustentabilidade para o Sector Vitivinícola de Portugal, que estará disponível em breve, segundo sabemos, e que será acessível a grandes e a pequenas empresas, voluntário, faseado e inclusivo, que evita a duplicação de certificações para todos os que já tenham em execução os seus próprios programas e nas cláusulas em que se sobreponham, que respeita as diferenças regionais mas que uniformiza procedimentos para as empresas multiregionais de forma a evitar burocracia e despesas desnecessárias e que, finalmente e muito importante, permitirá ter, às empresas portuguesas, um cunho distintivo e favorável para os seus negócios.

14.  O Porquê certificar um vinho não deve ter só a ver com o cumprimento de legislação ou regulamentação, com o melhorar práticas culturais ultrapassadas ou não conformes, com o reduzir impactos negativos no ambiente ou na saúde ou com a sua diferenciação e ganhos económicos (se bem que os ganhos económicos sejam importantes e baste como razão suficiente querer com ela satisfazer um determinado público dum determinado mercado): deve ser uma demonstração de responsabilidade, de correspondência às exigências de clientes e uma atitude cultural de quem compreende o seu tempo – o nosso tempo – e  a nossa forma civilizada de estarmos no mundo. Sem perdermos de vista nem por um minuto que a garantia da sustentabilidade económica deve estar sempre subjacente em todo o edifício produtivo: sem ela não será possível a segurança e a qualidade dos vinhos, a sustentabilidade ambiental do sistema produtivo e sobrevivência dos produtores com um condigno nível de vida.

15.  Normalmente, em Portugal, temos um pouco a mania de ser mais papistas do que o Papa e de acabarmos por exigir de nós próprios mais do que seria necessário para conseguir o que os outros países fazem.

Mas também temos uma atitude diferente, por vezes, mesmo em relação a coisas que parecem fáceis: a do “já está bem assim!”, “para que é que é preciso mais?!”... Creio que nos reconhecemos em ambas: na demasiada exigência ou no desleixo de quem se contenta com menos. Ora, são um grande exemplo de que todos nós, em Portugal, PRECISAMOS MUITO DE CERTIFICAÇÃO. Temos capacidade para nos estimarmos como razão de sermos. A capacidade de ser honestos e de satisfazer os nossos clientes, os nossos turistas e a nós próprios também!

 

Muito obrigado!  

 

 

1 comentário:

Unknown disse...

Excelente apresentação e excelente artigo, porque excelente trabalho de pesquisa e construção. Parabéns Manuel, pelo teu nível científico, cultural e argumentativo. Um abraço. Pimentel