quinta-feira, 17 de julho de 2025

A Aguardente, o vinho e as uvas

 



Este artigo foi originalmente publicado no EGGAS e, agora, o é aqui, revisto.

©Manuel Cardoso

 

Vínica, vitícola ou bagaceira, a aguardente dava e dá para tudo: ferida, inchaço, mal de dentes ou mal de amores, a valer na falta de coragem ou na urgência de afogar remorsos e saudades, para fazer licores, para postura macho na conversa de engate, para o papel vegetal do paio de chocolate, para as rosquilhas, para acompanhar figos secos e nozes no mata-bicho ao amanhecer de dias gélidos, para o cheirinho no café, para o clic de inspiração ao teclar. Para modelar propriedades do vinho e o conservar.

 

Esta última qualidade, que é utilizada em muitos sítios do mundo em muitos vinhos célebres, e noutros, mais raros, de perfil único, de determinadas casas, é à que se recorre, há séculos, para o Vinho do Porto. Historicamente, a aguardente para a aguardentação tem sido destilada dentro e fora da Região Demarcada do Douro, obtida de vinhos e de produtos vitícolas de dentro e fora da RDD. A gestão política das aguardentes, logo desde a criação da Companhia, há quase três séculos,  ocupou uma boa parte das mentes incumbidas de a assegurar nas quantidades, qualidade e preços adequados para o processo da aguardentação. Oficialmente, provinha “das três províncias do Norte” (Douro, Trás-os-Montes e Minho, com esta última a prevalecer) onde a Companhia, aliás, tinha destilarias próprias, e as quintas do Douro produziam também a sua quota-parte, se tivessem instalados ou alugassem os equipamentos próprios para tal, sob a supervisão dos provadores e inspectores oficiais. E também vinha do estrangeiro, por falta dela cá dentro, independentemente das causas desta falta, importações essas que nem sempre correram bem. A contribuição das aguardentes do Centro e do Sul do País para o negócio do Douro veio a ser importantíssima na regulação com que todo o mercado funcionou durante uma boa parte do século XX, tendo havido um brevíssimo período, de 1954 a 1966, em que a Casa do Douro apenas terá utilizado aguardente do Douro no rateio para o benefício dos mostos, quase toda destilada nos seus centros de destilação. Nesta aproximada dúzia de anos (cuja estatística terá de ser revisitada por quem os queira compreender) estará enraizado o argumento de que o Douro se deveria bastar a si próprio, em exclusividade, para destilar toda a aguardente necessária para o benefício, a partir das suas próprias uvas e vinhos.

 

As circunstâncias de mercado em que o mundo económico livre actualmente se movimenta, o custo das uvas duma vindima no Douro (vindima mais difícil e mais cara que noutras regiões), e o facto de que, para fazer um litro de aguardente, são necessários sete litros de vinho, ou mais, em média, tudo isso e uma série de argumentos que aqui não cabem, fazem com que uma hipótese academicamente possível e sedutora (a de que o Douro se baste a si próprio em aguardente para o Vinho do Porto) não passe de ser uma hipótese. Se bem que, no Douro, hoje, a destilação de aguardente vínica e vitícola de base 77% ultrapasse já os 2 500 000 litros e seja exequível aumentar este número para muitíssimo mais, anualmente. Por isso essa hipótese poderia ser real para determinadas categorias de Vinho do Porto.  

 

Não são precisas mais normas nem legislação, para além das que constam no site do IVDP, para que no Douro possa haver os Vinhos do Porto aguardentados exclusivamente com aguardente do Douro, destilada a partir de vinhos ou sub-produtos do Douro. Vinhos que serão duma categoria superior, pelo custo de produção e pelo valor, se quisermos ser justos, das uvas, na RDD: a partir destas uvas se fazem os mostos, os vinhos e a aguardente, vínica e/ou vitícola, para todo o processo. Se um tal vinho tem ou terá vantagens comparativas com os seus congéneres, é algo para que não há suficientes dados publicados.

 

Será absoluto o argumento de que uma aguardente, por ser neutra por definição e exigência normativa, não possa ter um carácter que exprima a genética, o terroir e o climat das uvas do vinho de que foi obtida? O afinar científico das análises, que têm vindo a evoluir sobretudo nos últimos anos, permite provar que uma aguardente vínica ou vitícola “neutra” a 77%, destilada na Califórnia ou em França, ou destilada cá, com vinhos doutras regiões, poderá ser, e sê-lo-á seguramente, diferente duma mesmíssima aguardente a 77% destilada de vinhos do Douro. Claro que um humilde provador como eu não as distinguiria assim sem mais, mas um enólogo, cuja perícia vise obter um determinado vinho a partir dum determinado mosto, pode e deve querer uma determinada aguardente com ácidos orgânicos e  aldeídos isto ou aquilo, analiticamente falando, para combinar com um mosto analiticamente quejando. Daí que a possibilidade de querer abafar-se um mosto ou fazer-se uma calibragem com uma determinada aguardente e não outra, seja legítima, desde que conforme ao estipulado no caderno de especificações desta DO, tal como a liberdade dos produtores de VP poderem abastecer-se pelo seu caracter e não apenas pelo seu preço ou pela sua origem. Quer com aguardentes autóctones quer alóctones, têm sido feitos belíssimos Vinhos do Porto e as suas extraordinárias qualidades e valor estão hoje, mais do que nunca, em máximos!

 

O Douro tem tudo para se poder impor no mercado das melhores aguardentes do mundo. No segredo de muitas adegas e em cubas e pipas esquecidas (bem, de algumas, pelo menos…) estão guardados hectolitros cuja amostra, vertida num cálice que se possa afagar na mão, cheirar, surpreender-nos com a luz-âmbar que irradia, provar, na língua e com a boca, uma essência que nos transporta quase ao céu, é um privilégio e momento de encantamento arrebatador que nos faz querer mantê-lo interminável e relegar para o oblívio quaisquer outras bebidas espirituosas. Para os que sempre beberam dos melhores whiskies, cognacs, armagnacs, brandies, macieiras e soberanos, de tudo do melhor, compreendem o encanto e prodígio duma destas aguardentes secretas do Douro. E não são só a emoção ou o patriotismo a falarem: é tudo o mais que está ali, e em grande nível. Tenho a certeza de que será com um cálice duma destas aguardentes do Douro que, à entrada no Céu, seremos recebidos, sobretudo aqueles a quem nos for mais difícil esse caminho até lá!

 

D. Maria II, de espírito muito juvenil e maduro, digna de muito mais crédito do que qualquer dos Chefes de Estado que temos tido nos séculos XX e XXI, com a república, deve ter cheirado destes espíritos voláteis do Douro num banquete oficial ou numa confidência da Corte, porque assinou uma legislação, específica para tais aguardentes do Douro, em 1852, que, num país estrangeiro, seria usada até ao infinito para a promover (à aguardente, já que a Rainha não precisa). Connosco, portugueses, quase silêncio, como se faz quase sempre que há coisas ou pessoas a ser distintas pelo seu mérito. De lembrar que essa Rainha, grande Rainha, também subscreveu a fundação da Faculdade de Belas Artes de Lisboa e do Banco de Portugal. Todos os três (as aguardentes do Douro, a Faculdade de Belas Artes e o Banco de Portugal) existem hoje ainda, quais suprassumos do nosso país, resistindo à nossa portuguesinha voracidade iconoclástica de instituições e nomenclaturas.

 

Vivemos num mundo livre com regulamentos que têm de ser aceites em espírito interprofissional. Para que todos possam ganhar dinheiro com a produção e o comércio das uvas, dos vinhos e das aguardentes mais excepcionais de Portugal. Do Douro e do Porto. Dizer mais, será supérfluo. Querer mais, será inovador e legítimo. Sempre.                

terça-feira, 15 de julho de 2025

Rally de Portugal e tardes de vinho quente


 

©Manuel Cardoso

 

Não sei porquê nem me lembro quando, mas era Outono ou Inverno, o que, em Trás-os-Montes, nesses anos, era quase a mesma coisa: fazia frio, vento, chovia há dias e toda a gente dizia que com um ou dois graus a menos, seria neve. A Estalagem desse tempo era ainda a primeira Estalagem do Caçador, construída como se fosse um hotelzinho suíço ou austríaco, um ponto focal para quem deambulasse naquelas terras longínquas, a horas e horas do Porto. Entrava-se e era o conforto: cheiro agradável de escadas de madeira e tijoleira encerada, ar morno de aquecimento central, voz educada do Senhor João que dava as boas-vindas, quadros, tapetes, gravuras e animais de caça empalhados pelas paredes, aroma a café que vinha da sala de estar, um aposento decorado como uma mistura de bar americano com bancos altos ao balcão, e mesas, cadeiras e sofás de fazer inveja numa loja de antiguidades e decoração, candeeiro redondo pendurado do tecto de onde se sustinha um pato real de asas abertas, embalsamado. Um espectacular relógio de cuco dos Alpes dava as horas como se cumprisse uma partitura musical. Mesmo estando-se a ler um dos jornais ou revistas (O Primeiro de Janeiro, o Le Figaro, a Paris-Match e a Jours de France dispunham-se em cima da mesa), era impossível não prestar atenção aos hóspedes que entravam ou às visitas que os acompanhavam. Num desses dias de há cinquenta anos apareceram dois casais nitidamente estrangeiros, vivaços, acompanhados de portugueses algo blasés e que um dos empregados nos sussurrou ser tudo gente “ligada ao rali”, o que nos deixou atentos, surpreendendo-nos que as senhoras (hoje eu diria raparigas) pediram copos de vinho quente! Vinho quente! Era uma première para nós! Apercebi-me que esse pedido motivou uma ida dum dos empregados “lá dentro”, de certeza conferenciar, e, passado um bocado, surge de tabuleiro na mão com dois copos dos que hoje usaríamos para galões, com vinho tinto aquecido, tresandando a chocolate, canela e café. Para nosso espanto, beberam-nos todos em pouco tempo e pediram mais, soltando então os cachecóis que traziam, pousando nos braços do sofá os casacos que, enfim, tiraram, debruçando-se com mais atenção sobre um mapa de Portugal desdobrado na mesa de azulejos, calcado num canto com um cinzeiro para o fixar e, no outro, com um bloco de argolas em que tomavam notas, trocando de mão os cigarros e os lápis.

Há muitos poucos dias recebi da sommelier Teresa Gomes um daqueles emails que se mandam em difusão “aceitas um vinho quente?” e trocámos mensagens sobre variantes de sabores e cheiros para acrescentar à base de vinho tinto. Iremos fazer experiências, cá em casa, numa destas tardes em que, depois dum passeio na mata aqui pela Serra de Ala, a Mariana e eu regressemos com a ponta do nariz gelada e as maçãs do rosto coradas do frio, o que não será difícil acontecer. A última vez que bebemos vinho quente (mulled wine) foi em Sintra, depois do percurso a pé desde a estação de combóio até à Casa do Fauno, onde passámos a tarde a ler e a observar o movimento do bar e do jardim, sacudido a vento, sorvendo em pequenos golos a alquimia de especiarias. No vinho quente, se a base tiver defeitos, tem que haver a mestria de os disfarçar com as especiarias, ou o chocolate, ou o café, ou o que for mais adequado. Não é à sorte que se pode fazer vinho quente. Misturar tudo e… pronto! Não, assim será um desastre intragável com que se desperdiçará o vinho. Primeiro tem que se conhecer o vinho que iremos aquecer (de preferência em vapor ou em banho-maria) e ter a noção de quais as notas que estão no coração, no fundo ou no topo desse tinto (de preferência) porque o calor vai tornar mais exuberantes e efémeras as mais voláteis, mais persistentes as mais pesadas. Por isso, escolher cravinho, canela, chocolate, mel, café, gotas de bagaceira, nozes e avelãs, rodela de laranja, seja o que for, para misturar, não é indiferente e tudo estará correcto, dependerá do gosto de cada um e de como se queira complementar o vinho base! Alecrim e tomilho estará muito bem para quem não vá pelos doces! Menta será arriscado, mas se for apenas uma sugestão, poderá ser um esplendor!

Anteontem chegou à nossa caixa do correio a revista do ACP. Menos magrinha. No Editorial, Carlos Barbosa chama a atenção, entre outras coisas, para o impacto económico positivo do Rally de Portugal e indica-o como um factor de apoio às regiões e de combate à interioridade. Sem dúvida. Naquele dia de há meio século esse rally ou outro fez com que se bebesse vinho quente na antiga Estalagem do Caçador! E tenho a certeza de que, se as pistas fossem escolhidas aqui mais para o interior profundo, poderia ser um enorme factor de progresso, a começar por melhorar a nossa rede de cobertura de telemóvel e internet que ainda é deficiente e impede que se possam dar a conhecer muitos dos recantos bons onde fatias de salpicão e presunto se entremeiam com fatias de queijos e pães caseiros, tostados em brasas, regados de azeite, que também pode ser quente como o vinho, misturado com ervas e especiarias, rijado para migas que afastem o frio numa tarde de emergências de carros atascados ou de pneus a ter de ser mudados sob um temporal de inverno. Tirar os gorros, desapertar o fecho dos blusões, ficar em camisola em frente à lareira a fazer peso numa cadeira que nos deixe ter o copo na mão e ir chegando à boca dessas munições de estalo…, Procol Harum com a Fires do Grand Hotel … letra a ir de encontro à preocupação do momento com o mundo da agricultura: This war we are waging is already lost/ the cause for the fighting has long been a ghost/ malice and habit have now won the day/ the honours we fought for are lost in the fray… Espero que não, será?...    

Este post foi artigo no EGGAS já há uns anos mas ainda ontem, Julho 2025, tomei conhecimento da excelente prestação de Luís Alegria, com as cores de Valle Pradinhos!

Recebemos no Press Release de

Hugo Reis

hugoreis@motorbest.pt I 969100202

Uma imagem com logótipo, símbolo, Carmim, encarnado

Descrição gerada automaticamente:

O piloto Valle Pradinhos conseguiu, na última volta da prova, rolar sem dobragens difíceis e, com isso, voltou a fazer história, com o melhor tempo de sempre de um 1300 no Circuito de Vila Real, ao baixar o seu recorde pessoal para uns notáveis 2:21:497.

Luís Alegria compete num Datsun 1200 (B110) de Grupo 2, em Vila Real, em 2025. 

Campeão Nacional de Velocidade na categoria 1300-H75 nas épocas de 2023, 2020, 2017 e 2007. Participou também em provas do Campeonato de Montanha, no qual já foi Vice-Campeão nos clássicos.
Como navegador de ralis, competiu ao lado de Joaquim Santos, Francisco Romãozinho, Jorge Ortigão, José Pedro Borges, Carlos Bica, Ni Amorim e outros.

Que bom seria se....



domingo, 6 de julho de 2025

Papéis estupendos e deliciosos


 

©Manuel Cardoso

 

“Rosquilhas de aguardente – Um arrátel de assucar, 20 ovos tiram-se-lhe dez claras tudo vem batido até que a massa esteja vem grossa depois deita-se na masseira deitando-se-lhe um quarteirão de aguardente para lavar o tacho e ao amassar deita-se-lhe meio arrátel de manteiga de porco mas que seja vem quente”.

Não sei quem foi a autora. Este pequeno parágrafo está com muitos outros numa folha de papel escurecida pelo tempo e pelo uso em cozinhas antigas, manchas a fazerem-lhe decoração de saboroso currículo de trabalho. Manuseamos tais páginas respeitando o tacto que tiveram de cozinheiras ancestrais e curiosas na sua leitura, de certeza copiadas mais vezes, repetidas ao ouvido de aprendizes e de donas de casa. Estas folhas estariam numa gaveta ou numa caixa do escano ou entaladas num maço que apanhava o fumo e os vapores da cozinha. Apesar de sabidas de cor, serviriam de cábula às iniciantes ou para desfazer teimas e, seguramente, para emprestar às visitas que, da cerimónia fazia parte, pediam para ter a receita do que acabavam de provar.

Aromáticas da aguardente e da canela, ao cozinharem-se e ao trincarem-se, as rosquilhas eram essenciais numa viagem e havia-as guardadas numa terrina, num armário, à espera de visitas inesperadas. Faziam-se fritas em azeite ou, então, iam ao forno num tabuleiro polvilhado, estas mais próprias para poderem ser embebidas em vinho do porto ou da madeira. Como muitas das receitas antigas de bolachas e biscoitos, os amarantinos e os económicos, os cabacos, as broas de amêndoa, as rosquilhas de viúva, todos eles eram munições de boca fáceis de transportar em saquinhos de linho ou cestinhos de verga, úteis para quebrar o jejum e para preencher as horas nas diligências, a pé ou a cavalo, nos comboios ou nos barcos. Nas festas e nos bailes, uma rosquilha a servir de mata-borrão a uma taça de champagne era – e é! – uma forma instantânea de recuperar o fôlego para mais uns quantos rodopios aos saltos.

É com um enorme respeito que se devem coleccionar e preservar bem estas folhas manuscritas, autenticamente desenhadas em escrita cursiva com aparo molhado em tinteiro,  com uma letra que envergonharia as letras de hoje, caligrafia de estilo aprendido e tão treinado quanto as receitas sobre que informa, protegendo-as agora eu em micas mas, sempre que se retiram da transparência para se lhes examinar qualquer pormenor à lupa, libertam o seu cheiro antigo em que se adivinham canelas, açúcar queimado, por vezes pimentas e até louro – algumas com cânforas e alfazemas do tempo guardado e resguardo das traças. Palpitam de vida e inspiram azáfama. 

O núcleo mais antigo de papéis veio-nos parar às mãos no lote dos “que já ninguém quer”, nas palavras da nossa divertida prima Batija, que fez comigo o rebusco final em casa das Tias Sousas, no tempo da outra senhora, antes de ser posta à venda, e me perguntou se eu não quereria escolher algum papel que ainda se aproveitasse, daquele pequeno monte no chão do fundo do corredor, a casa estava já sem móveis – fiquei com todos! Umas dezenas de jornais velhos, partituras para piano com capas de Belle Époque, algumas cosidas com fios de seda porque o uso lhes gastara e rasgara o vinco (imagina-se a cena da pianista e duma ou dum ajudante a dobrar e a mudar-lhe a partitura da valsa para se manter o ritmo da dança, a provocar-lhe o frisson pelo gesto de galanteio…), e umas folhas desirmanadas de velhos livros de receitas. Esta era uma delas. 

Toucinhos do Céu, pudins de pão, de batata, de laranja, pudim gelado em banho-maria, velos de raiba, pudinzinhos dos Remédios, trouxas, castanhas de doces de limas, ameixas e damascos, broas, morcelas pretas e morcelas de lombo, pastéis de Lamego, calda de perdiz, celestes, tigelinhas de Londres, esquecidas de Coimbra, doces das Pedrosas, bolos do Paraíso, francelinos, caracóis, esses, Manuéis, Napolitanos, suspiros de freira, doces de ovos, … muitos mais! Numa das sequências há, à margem, em letras mais pequenas, “Adosinda de Sousa”, o que bate certo com a nossa velhinha tia-avó (então envelhecia-se muito depressa) que ainda conheci e que morreu em 1970 antes de fazer 93 anos: muito culta e inteligente, era a humildade em pessoa, letra a sumir-se, mas muito perfeita, muito correcta.

Lidas hoje, as unidades de medida dessas receitas são notáveis: arráteis, quarteirões, vintenas, meios-tostões, quartilhos, quartas e onças, assim como as designações de peneira de cabelo, água de flor, manteiga do norte…

Podemos pensar estarmos muito longe do tempo destas folhas, com antiguidade mais do que centenária, mas, lendo-as bem e olhando os escaparates de muitas pastelarias, está bem vivo e junto de nós. Com menos coisas pisadas em almofariz ou tendidas com o rolo da massa, porque os electrodomésticos vieram mudar imenso os procedimentos; com muito menos coisas em unidades misteriosas, porque o sistema métrico veio pôr tudo em grama e kilo; com menos alguns dos ingredientes, porque o conhecimento dietético relacionado com a saúde veio impor novas regras. Mas, linha a linha e página a página, ao lerem-se os enunciados de quantidades, dos processos, das recomendações para a massa não ficar grossa ou para o tempo de espera até cozer, arrefecer, ou passar, simplesmente, até poderem consumir-se, ao ler-se todo o empenho que esteve nas descrições e ao sentir-se que havia experiência e amor em toda a actividade da cozinha, é impossível não nos comovermos com a vinda até nós, a 2023, de toda esta informação em suporte papel, desafiando anos e anos, trazendo conhecimento, dando vontade de desatar a experimentar e a provar todas e cada uma das receitas.

Já agora, um arrátel são 459 grama, hoje. Um arrátel valia catorze a dezasseis onças, conforme as zonas do nosso país. O “nosso”, daqui de casa, valia 14 e, por isso, uma onça destas receitas vale 33 grama, tudo aproximadamente, se quiserem experimentar, não se precisa de balança de precisão – precisa-se de sensibilidade culinária, o que não é pouco!

Impossível não terminar com a receita de cup, está-se mesmo a ver os convidados da festa a remexê-lo com uma concha de prata e a vertê-lo para as taças, senhoras a espreitar o colorido da terrina, música de gramofone de manivela, toilettes em esplendor, trincadelas num biscoito com a mão esquerda enquanto a direita, segurando com elegância no cristal, o levava aos lábios na pose estudada e treinada para depois surgir a frase, olhos o fitar o alvo, tom sedutor, “uma delícia estupenda! O que levou?”: 3 garrafas de vinho branco, 3 litros de água mineral bem gasosa, 1 garrafa de champagne, 1 cálice de cognac, 300 gramas de açúcar, variedade de frutas aromáticas (laranja, morangos, ananaz, etc.) cortada em bocadinhos e gelo cortado de igual modo. Junta-se tudo durante duas horas, excepto o champagne, que é na ocasião.     



Este artigo foi previamente por mim publicado no EGGAS.