Este artigo foi originalmente publicado no EGGAS e, agora, o é aqui, revisto.
©Manuel Cardoso
Vínica, vitícola ou bagaceira, a
aguardente dava e dá para tudo: ferida, inchaço, mal de dentes ou mal de
amores, a valer na falta de coragem ou na urgência de afogar remorsos e
saudades, para fazer licores, para postura macho na conversa de engate,
para o papel vegetal do paio de chocolate, para as rosquilhas, para acompanhar
figos secos e nozes no mata-bicho ao amanhecer de dias gélidos, para o
cheirinho no café, para o clic de inspiração ao teclar. Para modelar
propriedades do vinho e o conservar.
Esta última qualidade, que é
utilizada em muitos sítios do mundo em muitos vinhos célebres, e noutros, mais
raros, de perfil único, de determinadas casas, é à que se recorre, há séculos,
para o Vinho do Porto. Historicamente, a aguardente para a aguardentação tem
sido destilada dentro e fora da Região Demarcada do Douro, obtida de vinhos e de
produtos vitícolas de dentro e fora da RDD. A gestão política das aguardentes, logo
desde a criação da Companhia, há quase três séculos, ocupou uma boa parte das mentes incumbidas de
a assegurar nas quantidades, qualidade e preços adequados para o processo da
aguardentação. Oficialmente, provinha “das três províncias do Norte” (Douro,
Trás-os-Montes e Minho, com esta última a prevalecer) onde a Companhia, aliás,
tinha destilarias próprias, e as quintas do Douro produziam também a sua
quota-parte, se tivessem instalados ou alugassem os equipamentos próprios para
tal, sob a supervisão dos provadores e inspectores oficiais. E também vinha do
estrangeiro, por falta dela cá dentro, independentemente das causas desta
falta, importações essas que nem sempre correram bem. A contribuição das
aguardentes do Centro e do Sul do País para o negócio do Douro veio a ser
importantíssima na regulação com que todo o mercado funcionou durante uma boa
parte do século XX, tendo havido um brevíssimo período, de 1954 a 1966, em que
a Casa do Douro apenas terá utilizado aguardente do Douro no rateio para o
benefício dos mostos, quase toda destilada nos seus centros de destilação.
Nesta aproximada dúzia de anos (cuja estatística terá de ser revisitada por
quem os queira compreender) estará enraizado o argumento de que o Douro se deveria
bastar a si próprio, em exclusividade, para destilar toda a aguardente
necessária para o benefício, a partir das suas próprias uvas e vinhos.
As circunstâncias de mercado em que o
mundo económico livre actualmente se movimenta, o custo das uvas duma vindima
no Douro (vindima mais difícil e mais cara que noutras regiões), e o facto de
que, para fazer um litro de aguardente, são necessários sete litros de vinho,
ou mais, em média, tudo isso e uma série de argumentos que aqui não cabem,
fazem com que uma hipótese academicamente possível e sedutora (a de que o Douro
se baste a si próprio em aguardente para o Vinho do Porto) não passe de ser uma
hipótese. Se bem que, no Douro, hoje, a destilação de aguardente vínica e
vitícola de base 77% ultrapasse já os 2 500 000 litros e seja
exequível aumentar este número para muitíssimo mais, anualmente. Por isso essa
hipótese poderia ser real para determinadas categorias de Vinho do Porto.
Não são precisas mais normas nem
legislação, para além das que constam no site do IVDP, para que no Douro possa
haver os Vinhos do Porto aguardentados exclusivamente com aguardente do Douro,
destilada a partir de vinhos ou sub-produtos do Douro. Vinhos que serão duma
categoria superior, pelo custo de produção e pelo valor, se quisermos ser
justos, das uvas, na RDD: a partir destas uvas se fazem os mostos, os vinhos e
a aguardente, vínica e/ou vitícola, para todo o processo. Se um tal vinho tem
ou terá vantagens comparativas com os seus congéneres, é algo para que não há suficientes
dados publicados.
Será absoluto o argumento de que uma
aguardente, por ser neutra por definição e exigência normativa, não possa ter
um carácter que exprima a genética, o terroir e o climat das uvas
do vinho de que foi obtida? O afinar científico das análises, que têm vindo a
evoluir sobretudo nos últimos anos, permite provar que uma aguardente vínica ou
vitícola “neutra” a 77%, destilada na Califórnia ou em França, ou destilada cá,
com vinhos doutras regiões, poderá ser, e sê-lo-á seguramente, diferente duma
mesmíssima aguardente a 77% destilada de vinhos do Douro. Claro que um humilde
provador como eu não as distinguiria assim sem mais, mas um enólogo, cuja
perícia vise obter um determinado vinho a partir dum determinado mosto, pode e
deve querer uma determinada aguardente com ácidos orgânicos e aldeídos isto ou aquilo, analiticamente
falando, para combinar com um mosto analiticamente quejando. Daí que a
possibilidade de querer abafar-se um mosto ou fazer-se uma calibragem com uma
determinada aguardente e não outra, seja legítima, desde que conforme ao
estipulado no caderno de especificações desta DO, tal como a liberdade dos
produtores de VP poderem abastecer-se pelo seu caracter e não apenas pelo seu
preço ou pela sua origem. Quer com aguardentes autóctones quer alóctones, têm
sido feitos belíssimos Vinhos do Porto e as suas extraordinárias qualidades e
valor estão hoje, mais do que nunca, em máximos!
O Douro tem tudo para se poder impor
no mercado das melhores aguardentes do mundo. No segredo de muitas adegas e em
cubas e pipas esquecidas (bem, de algumas, pelo menos…) estão guardados
hectolitros cuja amostra, vertida num cálice que se possa afagar na mão,
cheirar, surpreender-nos com a luz-âmbar que irradia, provar, na língua e com a
boca, uma essência que nos transporta quase ao céu, é um privilégio e momento
de encantamento arrebatador que nos faz querer mantê-lo interminável e relegar
para o oblívio quaisquer outras bebidas espirituosas. Para os que sempre
beberam dos melhores whiskies, cognacs, armagnacs, brandies,
macieiras e soberanos, de tudo do melhor, compreendem o encanto e prodígio duma
destas aguardentes secretas do Douro. E não são só a emoção ou o patriotismo a
falarem: é tudo o mais que está ali, e em grande nível. Tenho a certeza de que
será com um cálice duma destas aguardentes do Douro que, à entrada no Céu,
seremos recebidos, sobretudo aqueles a quem nos for mais difícil esse caminho
até lá!
D. Maria II, de espírito muito
juvenil e maduro, digna de muito mais crédito do que qualquer dos Chefes de
Estado que temos tido nos séculos XX e XXI, com a república, deve ter cheirado
destes espíritos voláteis do Douro num banquete oficial ou numa confidência da Corte,
porque assinou uma legislação, específica para tais aguardentes do Douro, em
1852, que, num país estrangeiro, seria usada até ao infinito para a promover (à
aguardente, já que a Rainha não precisa). Connosco, portugueses, quase silêncio,
como se faz quase sempre que há coisas ou pessoas a ser distintas pelo seu mérito.
De lembrar que essa Rainha, grande Rainha, também subscreveu a fundação da
Faculdade de Belas Artes de Lisboa e do Banco de Portugal. Todos os três (as
aguardentes do Douro, a Faculdade de Belas Artes e o Banco de Portugal) existem
hoje ainda, quais suprassumos do nosso país, resistindo à nossa portuguesinha voracidade
iconoclástica de instituições e nomenclaturas.
Vivemos num mundo livre com
regulamentos que têm de ser aceites em espírito interprofissional. Para que
todos possam ganhar dinheiro com a produção e o comércio das uvas, dos vinhos e
das aguardentes mais excepcionais de Portugal. Do Douro e do Porto. Dizer mais,
será supérfluo. Querer mais, será inovador e legítimo. Sempre.
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