sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Potencial Hidroagrícola de Trás-os-Montes

 


Manuel Cardoso

 

Comunicação no âmbito do projeto Interrreg Sudoe, I-ReWater, Jornada de Sensibilização, na qualidade de Presidente da Associação de Beneficiários de Macedo de Cavaleiros, em Mirandela, 30 de outubro de 2025.


Agradeço o honroso convite para vir, mais uma vez, meter água, de leigo entre especialistas na matéria e, ainda por cima, na qualidade de transmontano, glosando o tema Potencial Hidroagrícola de Trás-os-Montes, um título de quatro palavras que, por si só, é um programa científico, político e humano capaz de ocupar uma vida.

Potencial Hidroagrícola de Trás-os-Montes: filosoficamente,  potencial é o que é susceptível de existir mas ainda não tem existência real; que pode realizar-se ou ter a capacidade de ser trabalhado mas que ainda não passou da ideia ao acto. Em termos técnicos, hidroagrícola é algo que relaciona a agricultura e a água, pela ordem inversa, a água e a agricultura, já que não só o elemento água é um dos primordiais na existência mas também a agricultura, como actividade, pressupõe o homem a agir. Interessantíssimo, o conceito de agricultura, porque é uma actividade exclusivamente humana e em que intervêm a inteligência e a cultura, em diferentes acepções, e que lança mão da água, da terra, do fogo e do ar para conseguir obter o seu resultado. Seja a que escala for e seja em que geografia se entenda. Até no Espaço! Ora, entendendo bem o sentido da palavra hidroagrícola, nesta sala e no ano 2025, com certeza que todos a compreendemos como referindo-se à água e à sua utilização agrícola. Àquela que já é usada para a produção dos nossos alimentos? Precisamente à outra, àquela que potencialmente poderia ser usada para a produção dos nossos alimentos mas ainda não o é (na maioria dos casos por razões políticas), já que o nosso tema é o do Potencial Hidroagrícola.

Potencial do de qualquer um? Não, do de Trás-os-Montes. E aqui batemos em mais um ponto muito importante. É que não estamos a referir-nos ao Alto Minho, ao Alentejo, ao Ribatejo, ao Oeste, às Beiras, a Espanha, à Galiza ou a Castela, a Marrocos ou ao Deserto do Sahara ou à bacia Mediterrânica. Estamos a referir-nos a Trás-os-Montes, a este pedaço do Norte interior de Portugal a que vulgarmente uma visão apressada chama planalto, e não deixa de o ser, ou um conjunto de serras, que também o é, ou uma sucessão de vales todos eles a confluir para o Douro, no que é uma realidade inegável. Com uma outra realidade interessante, para quem nos visita, agora que a A4, a A24, a A7 o IP2 e o IC5 permitem atravessar toda a paisagem mais depressa que os pássaros:

“Estávamos a ver que nunca mais chegávamos: um nevão no Alto do Pópulo fez-nos estar horas à espera do limpa-neves!”;

“Estivemos aí neste fim de semana: Trás-os-Montes está todo seco e amarelo!”;

“Fomos até ao Montesinho na passagem de ano: apanhámos um frio de rachar mas dias lindos de sol!”;

“Disseram-nos para irmos ver começar as vindimas: sufocámos a quarenta graus no Pinhão – e à sombra!”;

“…E em Mirandela? Nem se respirava!”;

“Estivemos lá em Dezembro: um nevoeiro gelado que não se via um palmo!”;

“Carnaval dos Caretos?! Choveu o tempo todo!”;

“Chegámos a Miranda num dia tórrido!”;

“– Ah! Connosco, ao sairmos do Lareira, em Mogadouro, estava um vento que só de samarra!”;

“Em Bragança íamos caindo ao escorregarmos no gelo do passeio!”.

Todas estas exclamações, que podem ser tomados como elogios, são de quem contacta com o Trás-os-Montes real, somatório de planaltos, vales, serras, rios e uma ou outra montanha mais alta, por onde se reparte um tempo atmosférico, geograficamente simplificado em Terra Fria e Terra Quente, e em que a sucessão de anos climáticos e hidrológicos, variados pela evolução inconstante do clima, vem particularizar as paisagens, geograficamente também simplificadas em mais ou menos atlânticas, mais ou menos continentais, mais ou menos mediterrânicas, com a vegetação e as culturas agrícolas que lhes correspondem.

E para os que conhecemos Trás-os-Montes de andarmos por cá, por ser a nossa casa, conseguimos a sensação do estarmos por fora cá dentro, porque temos o Alto Minho, no Barroso; o Alentejo, no Planalto de Mogadouro; o Ribatejo, na parte baixa da Vilariça; o Oeste, no vale de Macedo; as Beiras, na nossa orla Sul; Espanha, um pouquinho por todo o lado e até para cá de Miranda; Galiza, no norte de Vinhais, de Valpaços, de Chaves; Castela, a chegar a Bragança; Marrocos, entre Moncorvo e Freixo; o Mediterrâneo, espalhado nos olivais e nas vinhas, nas amendoeiras e nas figueiras, até temos sobreiros e azinheiras que só não são montados e dehesas porque aqui crescem em interstícios de grandes fraguedos e em despenhadeiros inacessíveis do Quadraçal; e o Deserto do Sahara, a mostrar-se em manchas pela bacia da Terra Quente, a ameaçar Mirandela, e pelo Monte de Morais, e por mais sítios se não lhe atalharmos com urgência, isto é, se não gerarmos novas fontes de água.

Trás-os-Montes é assim, entre rincões úberes e espaços agrestes. Com dois denominadores comuns: o da existência de água e o da sua falta. Se a há e a terra dá, temos tudo. O problema é se a não há: mesmo que a terra dê, dará cada vez menos. Porque cada vez mais, por Trás-os-Montes, ou haverá hidroagricultura ou não haverá agricultura.

Daí a importância de reflectirmos um pouco sobre o potencial. O potencial de Trás-os-Montes. Que só o será na medida em que for hidro-agrícola. Só o será se houver água.

Este potencial existe como tal, carece é de ser trabalhado. Não precisamos dum Alqueva, apenas precisamos de mais uma dúzia e meia de relativamente pequenas albufeiras e das suas condutas de ligação e dos seus perímetros de rega definidos. Estão estudados os sítios desde há anos, há apenas que num caso ou noutro actualizar esses estudos. Há que construir as que já têm projecto. E há que estabelecer um funcionamento em rede entre todos, ou quase, esses aproveitamentos hidroagrícolas, articulando-os com os investimentos privados que, um pouco por todo o lado, se têm substituído ao Estado em barragens, em charcas, em condutas e redes.

Se dizemos que não precisamos dum Alqueva, é, porque, na realidade, já o temos: se somarmos as massas de água das albufeiras do Alto Rabagão, do Vale de Chaves, do Tâmega, do Tua, do Azibo, da Vilariça, do Sabor, do Douro, do Távora e Varosa, temos um total de água que chega para as nossas necessidades de diferentes usos. Há é que mudar a legislação, o que se faz em gabinete, para permissão da fruição também agrícola dessas massas de água. Há que planear a sua integração e complementaridade, há que pensar com o pensamento no futuro e a acção na realidade.

Precisamos, isso sim, duma “EDIA” para Trás-os-Montes. Uma entidade que unifique um pensamento e uma acção sobre o regadio, que tutele a gestão do investimento e capacite a região duma visão integrada e esteja dotada da equipa técnica habilitada ao objectivo de que possa haver agricultura com água em quantidade e qualidade e nos espaços geográficos necessários.   

Em Trás-os-Montes chove todos os anos, mesmo em anos de seca, mais do que o necessário para as redes de rega. Reter e gerir essa água à luz do que a ciência hoje nos permite, é uma obrigação.

Prometi a mim mesmo, ao escrever estas notas, não vir para aqui com milímetros de precipitação, nem com índices de aridez, nem com hectómetros cúbicos de albufeiras, nem, sequer, com quilómetros de canais ou condutas e muito menos com hectares de regadio. Assim como não falar em alterações climáticas. Porque não há necessidade: está tudo implícito. Implícito nestas linhas e explícito nos projectos de Câmaras Municipais, das CIM, da CCDRN, da DGADR, do Água que Une. Está tudo implícito nos trabalhos que os agricultores fazem ao investir em plantações de olivais e vinha em cotas cada vez mais altas – e com sistemas de rega modernos e eficientes, gastando cada vez menos água para o mesmo bom resultado.

Pode haver quem pense que as quantidades de água reciclada que fica patente no I-ReWater e seus congéneres sejam desprezíveis ou menosprezáveis e que o próprio processo “não valha a pena”. Convido quem assim pense a ir deambular pelas ETAR e cercanias e a fazer um exercício de imaginar o potencial que representa a vários níveis, o do reaproveitamento da água, o do respeito pelo ambiente, o da conservação da Natureza, um tal trabalho de uso deste nosso tão precioso recurso. E o exemplo moral de, sabendo dar valor ao que aparentemente possa parecer um pormenor em quantidade, poder assim pretender e aspirar a mais volumosas quantidades de água, porque merecidas, obtidas pelos meios mais convencionais. Se valorizamos o pouco, merecemos o muito. E, por tudo isto, ao valorizarmos a água para o olival, para outas plantações permanentes, para as hortas, para os linhares (ainda há quem saiba o que era um linhar?), para os lameiros, obtida pelo I-ReWater, pelos regadios tradicionais, pelas redes modernas de aproveitamentos hidroagrícolas, estamos a dar uma lição de que compreendemos, na sua globalidade, o que é o verdadeiro Potencial Hidroagrícola de Trás-os-Montes. É o da água, evidentemente, e é o das cabeças que a saibam pensar e a saibam fruir. I-ReWater é uma bandeira de presença científica, da atenção das Universidades e Institutos Superiores, de ligação a Espanha e à outra Europa.

Finalmente, o desenvolvimento, o Potencial Hidroagrícola de Trás-os-Montes e as pessoas, porque é de pessoas de que se trata. Está a haver privados a investir, e em montantes sem precedentes, um pouco por todo o lado daqui. Nesta terceira década do século XXI os privados estão a investir como nunca se viu nas décadas anteriores, com o seu próprio dinheiro, associado ou não a fundos da União Europeia, conforme. Em Valpaços, em Moncorvo, em Mirandela, em Vila Flor, em Macedo, em Bragança, em Alfândega da Fé, em Mogadouro, um pouco por todo o lado mas sobretudo nesses, basta um pouco de atenção quando andamos pelas estradas para reconhecermos milhões, muitos milhões, em plantações, em adegas e lagares, em armazéns e equipamentos, em novas pessoas a trabalhar. Só agora começam a ser perceptíveis nas estatísticas (o Estado atrasa-se sempre um bocado a fazer o tratamento e disponibilização de dados…) mas já o são no movimento nos campos e nas nossas pequenas vilas e cidades. Ora, o Estado (o Estado Central, o desconcentrado das CCDRs e o das Autarquias) tem a obrigação de acompanhar os privados nestes investimentos, fazendo a parte que lhe compete em água e rega e em caminhos rurais (para só citar estas coisas). Se os privados investem milhões, o estado tem a obrigação de o fazer também, funcionando assim a economia real.

Sendo uma região ainda em depressão nos índices populacionais e em que, por alguns anos, a paisagem exprimiu abandono e desistência, todo este movimento a que agora assistimos faz-nos ter esperança de que hoje há quem acredita e queira acontecer. Olhando para a História, faz-nos pensar, à nossa pequena escala mas que é grande na nossa vida, no que se passou na América após a Grande Depressão, no Japão após a II Grande Guerra, na Europa quando Sicco Mansholt e os pensadores de Roma e de Bruxelas desenharam a Política Agrícola Comum e a reconstrução do tecido produtivo dos campos.

Faz-nos ter uma grande emoção interior assistir a tudo isto e vermos que ainda há quem saiba que o Potencial Hidroagrícola de Trás-os-Montes é o nosso desenvolvimento, a nossa possibilidade de estarmos aqui, de vivermos aqui e aqui voltarmos a ver surgir um Trás-os-Montes curado da sua depressão e mais jovem, mais moderno e com Futuro.