sexta-feira, 25 de agosto de 2023

O termómetro, a pastelaria e a Arte


© Manuel Cardoso



Ela parou no passeio e as colegas ficaram a vê-la fazer o seu ritual de sempre que escolhiam aquela rua.

Agora só volto depois do Verão!, confirmou ele ao dono do café, deixando as moedas em cima do balcão, pegando na mala e no chapéu para se dirigir à estação de comboios. A silhueta dela apareceu-lhe de tal maneira inesperada ao sair da porta que, ao abrandar o passo e acertar os óculos para poder prolongar por uns segundos o relance, obrigou a que um outro homem, que seguia atrás, tivesse de o ultrapassar subitamente com umas “boas tardes, senhor doutor!” em tom mais aceso, mas a que respondeu absorto e sem desviar o olhar, concentrado em admirar aquele flash de sandálias e soquetes, saia lisa e fina a descair pelas curvas que adivinhava, a tapar até à meia perna, blusa de manga curta e mãos finas, uma apoiada na cintura, cabelo apanhado em rabo-de-cavalo cujas pontas brilhavam com o sol. Um perfil de capa de almanaque ou revista, com o narizinho espetado como se fizesse pontaria, olhar convergente na parede, queixo que lhe apeteceria trincar, prolongado para um colo tão bom para segredos e para o peito despontado de menina que seria uma fruta, toda ela ali para se colher e ele já a imaginar um rapto em sonho, quimera fugaz de volúpia e puro prazer, a ter de passar o dedo pelo colarinho para descolar a camisa e engolir em seco, a travar-se de não dizer uma palavra imprópria e doce, mais pessoas se cruzavam no passeio, num passo ficou a menos de palmos e reprimindo a mão para não lhe apalpar as nádegas, girando um pouco a cabeça e olhando para trás, a vê-la mais um instante. O preciso instante em que ela se pôs em bicos de pés, continuando virada para a parede, esticando mesmo uns dedos para a frente para se apoiar nos azulejos e conseguir ler bem, na escala da coluna colorida do termómetro SINGER, a temperatura dessa tarde. “Estão trinta e um graus, ainda…”, disse no seu meio sorriso educado com que seguiu adiante, segurando uma pasta de estudante, as colegas do internato aguardando uns metros mais à frente, livros e cadernos nas mãos, ele só então reparando nelas. Todo o instinto lhe ficara a ferver e aquela sua obsessão fulminante faria com que o comboio se perdesse, a partida se adiasse um dia e os pais e a família dela os fizessem casar em Setembro. Ela nem tempo teve de saber a que saberia um namoro, enrolada no drama da inevitabilidade e das discussões em casa em que se viu privada de dar opinião, a quererem-lhe incutir uma culpa que não se justificava e o marido, logo a seguir, a impor-lhe ficar interna nas Doroteias do Porto para que acabasse os estudos, que não queria ao lado uma menina como mulher enquanto parecesse menina, que se diria de si e de todos?      

As frases optimistas dos jornais com o fim da guerra, as sensacionais com a entrada do mundo na era atómica, dos sucessos dos filmes nos cinemas, as mais trágicas dos relatos da miséria nos países vencidos, todo esse frenesi de notícias fazia um turbilhão contrastante com a seca, as carências, as senhas do racionamento que perduravam, a velocidade dos comboios que ainda permaneciam ronceiros, as luzes de incandescência tremeluzindo fracas e a obrigar a velas frequentes. Com a rotina do colégio, as novidades entradas com as latas de fiambre e de queijo americano da Caritas, a míngua de novas de casa. Do marido, umas raras linhas, umas visitas e saídas que preferia não ter, que ainda por cima chovia sempre, naquele Porto. Muitos tempos preenchidos com um olhar sobre si, as memórias das casas na aldeia e na vila, das colegas do colégio de Bragança – que seria delas?!, a recordação escura do acender da lareira a crepitar, tachos e obrigações. Valia a tia, cada vez mais habitual a visitá-la no Porto, a irem as duas à baixa, a pastelarias ou alguma loja, preciosas horas que compensavam bem as que a tia demorava nos comboios do Tua e do Douro, para uma ida e volta dum dia para o outro, para ter a sua visita no colégio. Valia-lhe, também, um irreprimível desejo de desenhar e escrever. Desconcertante opinião da perspectiva das coisas, na rotina do colégio, nas ruas, nas viagens, será que ninguém sente todo o tempo biológico, todo o denso fluxo de vida, todo o atrito dilacerado entre a vontade e o ter-de-ser? A vida tem pouco de científico, não se pode gastar em tentativa e erro, mas vive-se em duplas, triplas, múltiplas dimensões. Aquele rapaz parece um bonitão de cinema!, diziam-lhe as colegas, Um frasco com um pincel espetado!, sorria ela. E desenhava um frasco naïf com o pincel espetado, cerdas de riscas desalinhadas, algo que de se mexer ou tocar suscitaria o horrível. A beleza do caos, a que ela dava sentido, envolvendo numa ideia os objectos e as situações à sua frente – ou fazendo o processo inverso, dispondo a ordem em obediência à ideia do seu pensamento. Porque o próprio caos era uma ideia para si, a forma amiga de lidar com a amargura e a intensidade. Fechado. Imaginado. Contido, mantido no interior da caixa porque na vida de conveniência não podiam chocar isto nem aquilo nem aqueloutro, acumulando-se-lhe no íntimo os ritmos da Lua, das gravidezes, das sombras e melancolias dos puerpérios, do permanente e insidioso reflectir sobre a sua circunstância.

Ela e o marido mudaram-se para a província, na realidade um regresso, pequena vila com casas, estação, igreja, cinema, estabelecimentos, cafés e jardim – e alguma gente, pouca, muito entretida no diz-que-diz. Pequeno universo medido a metros. Com uns picos de mais rotações no Natal, Páscoa, Verão, festa na aldeia, bolos de anos com glace e velinhas, ajustar vestidos para um ou outro baile cheio de aferições e preconceitos. As filhas. A família ali a dois passos, o tempo de atravessar a rua. Viviam numa casa-andar, sentimento de ser uma caixa, sem bálsamos nem cânforas porque tinha vida ainda – e tanta! – mas cheia de paredes.

Promovido a notário, senhor de si e queixo mais levantado, humor dos de que ninguém-se-meta, o marido tinha o escritório à distância de atravessar o jardim. A tia, com uma pastelaria nova, Queres um queque? Um imperador? Um para as “minhas” meninas?, ficava ao tempo e à meia-distância de seguir pelo passeio o trajecto para a repartição do notário. Os biberons, as fraldas, as papas, as meninas a andar e a aprender. As pessoas a cumprimentar, a reparar nas gracinhas, olhos parecidos com a mãe, porte bonito da mãe. O pequeno buliço da vila. Um apito de comboio ou buzina da automotora que se ouvia lânguida e ao longe, as sirenes da serração e da oficina dos automóveis a marcar turnos, o sino muito perto, demasiado perto com as missas e as avé-marias – não lhe tinham já sido demasiadas?! Um bando de miúdos que brincavam com gritos e gargalhadas, a correrem com aros na estreita rua travessa, descalços alguns, senhora de lenço à cabeça tomando conta, escola antes da escola. A música do rádio e a que vinha do chão, da loja dos discos e de apetrechos eléctricos, vizinha de baixo, sob o soalho. Jornais, livros e revistas, por correio ou de mão em mão, felizmente, ou vindos do Porto, duma ida ali ou a Espinho, ou a Bragança, ou aonde quer que fosse. Folhas em branco para anotar, visão para muito mais do que as evidências do trivial. Mas o quê, se não lhe ensinaram? Um dos irmãos, piloto, de vez em quando levava-a a voar, maravilhosamente, no pequeno Cessna – uma beleza a deslizar sonhos, haverá outras formas de liberdade? Sempre a Mãe e irmãos, do outro lado da rua, farmácia a dois passos, conmel para dores de cabeça e de outros dias. As idas e voltas de tarde, passeio ao longo das casas e da pastelaria da tia até ao fundo, a constante pastelaria nova naquele tempo intenso, afinal quem lhe teria dado o dinheiro para montar a pastelaria?, regresso pelo passeio do jardim, filhas ali consigo, canteiros com flores e árvores.

Dentro de portas, rotinas e ralhos de mau génio que ela sofria, fosso gigante entre os quarenta e sete dele e os vinte e seis dela, anos assim, suportara onze. Mas não só os anos. Alguns vislumbres das pessoas que, ao cruzaram-se e falarem às filhas, olhavam atentamente na direcção da pastelaria, algumas coincidências de não ver a tia ao passar, A senhora está lá dentro… quer que a chame?, e a cada mais significativa de o marido não estar nem sentado na sua secretária, O senhor doutor saiu, não deve demorar, quer que vá saber dele?, nem na mesa do Café Central. E as mais frequentes meias frases da vila, os olhares das senhoras a treslerem-lhe bons-dias e boas-tardes, o ar compungido dalguém da família, o balbucio da tia que não explicava a ninguém a origem dos contos que custaram montar o salão com mesas, balcão e cadeiras altas, o desaforo sem palavras do marido, o som do sino, as conversas passadas com esta, aquela e aqueloutra, um enorme remoinho perturbador e condensado de vertigem… despertaram em si uma determinação, forjada nas aulas dos dias frios de Bragança, nas idas à casa de aldeia, nas salas das Doroteias no Porto, na leitura meditada dos textos e imagens de jornais e revistas. Inabalável vontade, decisão de deixar brotar o tudo que acumulara, de que o tempo teria de ser muito mais do que o repetitivo e diário dar à corda no despertador. Uma saída em frente, em desiderato. Tribunal, separação de pessoas e bens, fosse o que fosse, qualquer coisa que o não deixasse ter as filhas, qualquer coisa que a deixasse voar com elas, queria-as a voar consigo!

Quando fechou a porta à chave por dentro, abriu de repente o seu novo mundo. Não o fez apenas com o sentido de impedir que entrasse alguém para si já não-existente, jamais. Fê-lo a fechar um capítulo de modo material, determinada, chave de ferro em fechadura de ferro. Tudo seria novo.

A tia e o marido sumiram-se, empurrados para Zamora com impropérios escancarados por toda a vila, que lhes não perdoava, acabaram corridos até África.

Ela, de malas feitas para Coimbra, um querer ir respirar. Do bater de asas, deixou rasto de vestígios, traços e actos indeléveis, um voo para a Arte. Nessa Arte permanece. Para sempre. 

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

O Senhor David, Jardineiro

 

1.       Com as idas para a D. Ester, a nossa pré-primária de há sessenta anos, a Câmara Municipal ficava em caminho e, por isso, várias vezes eu aparecia na repartição onde trabalhava o meu Pai, a dos Serviços Municipalizados, então no rés-do-chão, no corredor da direita de quem entra, porta em frente da que nessa altura era a primeira das três do Registo Civil. Trabalhava lá, também, o Senhor Carloto, com paciência e sempre um sorriso para mim, disposto a responder-me às perguntas sem filtro que faz um miúdo de cinco, seis ou sete anos. O balcão era altíssimo e, ao nível dos meus olhos, tinha um pequeno orifício redondo por onde eu espreitava, mas nada via, e onde cabia o meu dedo indicador. Um dia, disparei a pergunta: “Porque é que há aqui este buraco redondo?”. Os dois entreolharam-se e foi o meu Pai quem mo revelou: “Esse buraco está redondo porque foi feito por um trado nessa tábua para se poder tirar uma bala de pistola que se encravou na tábua de dentro!”. Não vou explicar agora como é que eu já sabia o que era um trado, mas posso e devo dizer que o meu Pai foi sempre assim, sobretudo quando a minha Mãe não estava por perto, de dizer claramente as coisas e continuar as explicações sobre o que fossem as perguntas seguintes! Nessa época as minhas pistolas eram de fulminante ou sem fulminante nenhum, o som era o de dizermos “Tau! Estás morto!” nas brincadeiras de índios e cowboys nos nossos bandos da Praça, do Trinta, do Prado de Cavaleiros e da Bela Vista, e imaginado pelos filmes ou nos bonecos animados. Ali, de repente, eu estava confrontado com um tiro real, uma bala real que fora disparada e se encastoara no balcão da repartição, furando a primeira tábua de forro, um laminado de madeira. Tive, de imediato, as explicações pelo Pai e pelo Senhor Carloto. Que tinha havido um assalto à Câmara muito antes de eu nascer, que o ladrão estava no Registo Civil, que, ao ser descoberto, ele disparara uma pistola e um dos tiros tinha ali acertado. Claro que, a seguir, outras tantas perguntas minhas levaram a outras tantas respostas. Se era de noite, porque é que a porta da repartição estava aberta (teria que estar para não ter sido furada nem ter travado o tiro), que acontecera ao ladrão, quem o descobrira… todas as respostas que tive ficaram-me indelevelmente marcadas, tal como a imagem de ver o sítio onde tinha sido a “casa do guarda da câmara”, onde “ele vivia com a sua mulher”, no que era então o arquivo da repartição do Pai e, durante anos mais recentes, um dos aposentos da informática, no vão das escadas. E quem era o guarda? Era o Senhor David, jardineiro.


O Senhor David! Com que admiração renovada passámos a ficar especados ao vê-lo a regar o jardim, algo sempre agradável, os miúdos que fui levando a ver o buraco da bala e que, autorizados pelo Senhor Carloto, pelo orifício redondo sentiam, com a ponta do dedo, a madeira desfibrada no interior. Confirmação da verdade!

2.       O espaço do jardim, à época chamado Jardim Doutor Oliveira Salazar, era o fórum da vila. Todo o maior movimento diário passava por ali: o da Câmara Municipal, do Tribunal, do Registo Civil, do Notário, dos Correios, das bombas de gasolina da SACOR, dos táxis e autocarros (que paravam ao fundo, ao lado das bombas), das duas pastelarias da moda, a Arco-Íris, da Helena Tirone, e a Flórida, do Café Tirone (um café pioneiro com uma taberna anexa), dos talhos (na rua ao fundo), da barbearia do Senhor Moura e, ainda, nos dias especiais, as verbenas com música de altofalante, o fluxo de pessoas que se dirigiam à Associação para ver filmes, bailes ou conferências. Também se pode dizer que a Casa Paroquial ficava no jardim, tal como a nossa escola primária, a funcionar no rés-do-chão da Casa Moreno. Durante anos, a sirene dos Bombeiros e da Defesa Civil do Território estava por cima da fachada da Associação e era accionada por um interruptor na parede quase ao lado da barbearia. E sempre que havia visitas oficiais, de ministros ou figuras gradas, a comitiva parava na rua em frente à Câmara e depois percorria a pé o trajecto até aos degraus dos Paços do Município sobre tapetes de flores ou de motivos desenhados com serrim colorido. Fotografias de casamento eram tiradas no jardim, bandas de música acertavam passo e tocavam no jardim. Tinha bancos de ferro fundido com ripas de madeira pintadas a encarnado, noutras épocas a verde e, noutras ainda, a branco. Como havia um pavimento de cimento liso no espaço de protocolos em frente à Câmara, nalguns períodos de maior complacência de polícias e zeladores havia quem por lá patinasse, mas os verdadeiros momentos de glória eram as noites de Verão em que as meninas se passeavam a exibir toilettes e a exercitar os saltos altos, a que nós ainda éramos alheios. Toda a vila ia passear ao jardim, voltas e voltas aos canteiros, acima e abaixo, num sentido e noutro sob as tílias, olhares perscrutadores a surpreender cruzares de insinuação e namoro. Jardim que ficava mudo e silencioso sob os nevões que lhe realçavam as formas geométricas de Inverno, transcendente quando as lâmpadas de Natal coloriam as tuias e o abeto grande. Hoje em dia diríamos que o jardim seria um hotspot de biodiversidade e tal estaria certo.


Na silhueta do seu entorno, pontificava o velho cipreste, ao lado do canteiro da estátua da Maria da Fonte e entre esta e a Fonte do Paço. Bordaduras de relva aparada, buxos cortados que poderiam examinar-se com régua, canteiros escavados sem uma erva estranha e onde cresciam maravilhosas rosas, simples, dobradas, repolhudas ou abertas, rescendentes de aromas ou mais discretas, em dezenas de cores e variedades, elogiadas por todos, ao ponto de um jornal da época referir “O jardim em frente aos Paços do Concelho é já um oásis acolhedor onde a vista, cansada da monotonia de todos os dias, repousa, deleitada, sobre a alacridade das relvas e das roseiras floridas“.[1] Coleccção de árvores de troncos rugosos e lisos, castanhos e cinza, coníferas e caducas, faias e um álamo, um abeto. Uma hévea. Ao pé dos Correios e pelo passeio acima, castanheiros da Índia, carvalhos americanos e áceres que nos encantavam pelas sementes a voar em helicóptero! Flores! Lírios brancos, azuis, amarelos, jarros, violetas discretas num cantinho, até de Outono havia flores, mais tímidas, com as geadas a vir. E sempre mais rosas, de todas as variedades e cores!

3.      


O ponto magnético de Macedo era o jardim. Foi-o, durante décadas. Quem passava todo o tempo a cuidar deste orgulho colectivo? O Senhor David, jardineiro. Sempre me lembro de o ver de sacho mais longo ou mais curto a cuidar da terra ou a misturar estrumes preparados, ancinho a arrastar folhas mortas ou a alisar um canteiro de que nasceriam surpresas, pequena lâmina curva de cabo com que afagava o encosto duma roseira a crescer mais torta e que ele forçava a ficar mais direita. Tesoura grande de aparar o buxo e a relva, tesoura de poda mais curta com que cortava caules com espinhos ou ramos indesejados com golpes certeiros e decididos. “Temos que as cortar agora para que rebentem outra vez!”, explicava-me um dia em que eu, ignorante, senti certa pena ao vê-lo fazer desaparecer pela base, à tesourada, uma série de roseiras que ainda há pouco enchiam de amarelos, vermelhos e brancos todo o espaço a seguir ao relvado do passeio em frente à Helena Tirone, onde eu tinha ido comprar um imperador. E todo o movimento relacionado com a mangueira, que arrastava para perto duma das torneiras de amarelo polido que sobressaíam da terra, era um cerimonial: ligar a mangueira, abrir a torneira, ir premir o botão que ligava o motor eléctrico para bombar a água do poço (que tinha uma tampa verde, de ferro, fechada a cadeado), depois senti-la a encher a borracha do tubo, a brotar com espasmos de ar, ele a segurar na ponta e colocar o dedo para espalmar o esguicho para que não magoasse as plantas nem sulcasse a terra, apontava metodicamente para este e aquele canteiro, lavava a poeira dos buxos que reverdeciam e agradeciam a frescura enchendo o ar de perfume, a humidade a pouco e pouco despertando todas as folhas e flores, transmitindo-lhes viço e alegria que nos contagiava a nós. Fazia tudo sozinho, mas não era um trabalho solitário porque imensos transeuntes metiam conversa, perguntavam segredos e nomes, pediam pés de roseiras para plantar. Tratava do jardim, mais dos canteiros da Avenida da Estação, do triângulo em frente à Estalagem, do grande e comprido da nossa rua (a que os detractores políticos do Padre Faria chamavam “a manjedoura”!) e dos da Casa dos Magistrados. Era o executante duma praxe, boa praxe, de Macedo: quando era colocado cá um novo Juiz, ou Delegado, ou Notário, ou Conservador, ou Delegado da Junta Nacional dos Serviços Pecuários ou outro cargo daqueles que, na verdade, contribuíam para o povoamento do interior, a Câmara mandava-lhe a casa, aquando da chegada, sendo o David o portador, incumbido pelo Presidente, uma grande canastra nova com um garrafão de azeite, outro de vinho, um pão centeio, outro de trigo, e… um grande e magnífico ramo de rosas e flores, por si composto!

4.      


No dia 27 de Setembro de 1953, às quatro horas da manhã, um audacioso gatuno arrombou uma das portas do salão nobre que dão para a varanda do edifício da Câmara Municipal, para onde terá trepado pelo tubo condutor da água. Dali terá ido para a repartição do Registo Civil e o guarda do edifício, David Ferreira Ramos, e a sua mulher, Maria dos Anjos Gaspar, ouviram os ruídos e tentaram intimidar o ladrão com um pau de vassoura. O que conseguiram, se bem que o criminoso tenha desatado aos tiros, atingindo-a com uma bala que lhe acertou no tórax e ficou alojada na região sub-clavicular. O gatuno fugiu, entretanto, dando ainda mais tiros já fora do edifício, o David foi buscar socorro e a sua mulher foi hospitalizada de seguida. Para trás ficara um molho com quase cinquenta chaves e uma chave de fendas e o assalto correra mal: apenas tinha roubado selos de pouco valor. Chegou a pensar-se que teria agido com cúmplices, mas não sabemos se terá sido assim. Cerca de quinze dias depois, nas Arcas, deram por sinais de haver um moinho que teria sido assaltado. Dois sobrinhos do dono montaram guarda e detectaram que haveria alguém escondido num outro moinho. Apareceram com surpresa e determinação e detiveram o intruso, que estava armado de pistola. Ainda tentou fugir, já desarmado pelos valentes rapazes, mas um deles acertou-lhe com uma pedrada que o tombou. Foi conduzido a Macedo, preso. Confessou o crime do assalto à Câmara assim como outros de que também fora autor. Ficou preso. Era de Chaves, casado, 24 anos, pai de um filho ainda pequeno…

5.       Hoje em dia uma grande e excelente equipa de jardineiros e ajudantes zela pelos canteiros que fazem o orgulho da terra. Há um trabalhão para os manter viçosos e bonitos a que devemos dar o devido valor. Quando se vê algum menos cuidado, não falta quem diga “Se cá estivesse o David não estaria assim!” – e não estaria! Lembrar o trabalho e o excelente desempenho que teve uma das figuras mais conhecidas em Macedo vem a propósito em particular este ano, que se constrói e planta um significativo parque ajardinado que ficará magnífico (e que não demore a ser ligado ao velho Jardim e ao largo da velha Igreja!) e esplendoroso. Que por ele se venha a sentir o orgulho e brio, profissionalismo e competência de que o David Jardineiro foi exemplo!



[1] Há dias, ao folhear antigos Mensageiro de Bragança, deparei-me com a notícia do assalto e os dados reportados à época e baseio-me nesses apontamentos e nas notas que amavelmente me deu o meu amigo e Presidente da Junta Sérgio Borges, que também me enviou as fotos com que se ilustra este post, para os dados mais factuais. Maria dos Anjos Gaspar (18.11.1915-14.11.1972) era natural de Vale de Prados. David Ferreira Ramos era natural de Águas Santas, Maia, onde nasceu a 19.02.1914. Era filho de Augusto Ferreira Ramos e de Rita Moutinho. Veio para Macedo nos anos trinta. Morreu a 15.11.1997, em Macedo. A foto do casal é de 1952; com o David a regar, 1974; com o seu neto Sérgio Borges, junto a um dos seus esplendorosos canteiros com as omnipresentes roseiras, 1984.   Esta versão deste post, de 5.08.2022, está na sua forma provisória e será revista oportunamente.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Vinho em Portugal - Os anos do tudo ou nada

©Manuel Cardoso

27.06.2022



Apesar de estarmos formatados, na leitura das estatísticas, para considerarmos os anos civis como referência, até por facilidade de leitura e comparação (“2021 foi um bom ano para as exportações, melhor do que 2020 e apesar da pandemia”), o certo é que, por Regulamento Europeu, o ano vitivinícola decorre de 1 de Agosto até 31 de Julho do ano seguinte. É uma espécie de sincronia com o início das vindimas, convencionada, semana atrás ou semana à frente, daquela data, na Europa. Neste momento anda o pintor pelas vinhas e em breve começarão a surgir as previsões probabilísticas da vindima.

O próximo ano vitivinícola terá pouco a ver com os anos que antecederam. Os sinais estão aí, já referidos por muitos, e, além da preocupação, devem merecer muita atenção e tomadas de decisão: o encarecimento de factores de produção e transportes, a irregularidade no cumprimento de prazos de fornecimento e na circulação, a inflação e o aumento das taxas de juro… pandemia, guerra, novos competidores e necessidade de cumprimento de critérios de sustentabilidade por responsabilidade social e para ombrearmos com a concorrência, são elementos dum conjunto que é necessário compreender em toda a extensão.

Os vinhos portugueses têm-se distinguido pela diversidade. E têm estado a aumentar o valor, ano a ano, de forma sustentada. Mas este valor ainda é baixo demais, sobretudo para as gamas de entrada, e carece dum esforço para incremento e manutenção, porque a diversidade dos nossos vinhos só continuará a existir se for mantida!

Uma grande percentagem da população portuguesa, nas últimas décadas, deslocou-se para as cidades e este afastamento das raízes agrárias do país provocou um desligar da mentalidade da vida no campo e dar-se aso à criação de mitos urbanos desinformados sobre os que vivemos nos vales e serras de Portugal. O vinho pode – e deve – desempenhar nas cidades um papel cultural importante, indo ao encontro dessa grande multidão de novos potenciais consumidores, hoje voltados quase exclusivamente para a cerveja e gin tónico, mas abertos a novidades, ao entendimento do que é consumo responsável e hedonista, que procuram prazer imediato, mas também qualidade e transparência no produto que lhes é oferecido. A ideia de que o vinho é um produto de confiança tem de multiplicar-se connosco, como já é feito nos outros países. Não é por acaso que os filmes franceses (o vinho é o terceiro produto mais importante na economia francesa, a seguir à indústria aeroespacial e aos perfumes) e italianos são frequentes as cenas em que aparece a fruição do vinho, actores e actrizes fazendo a sua pedagogia com gestos e até palavras: visam aumento do consumo interno sem publicidade explícita, almofada importante para os imprevistos do turismo e da exportação. Há que descomplicar o consumo do vinho, inovar nas embalagens, fazê-lo estar presente nos festivais e na praia. É estranho que muitas lojas, adegas e cooperativas vendam vinho, mas não o sirvam a copo nesses locais… perdem uma boa oportunidade de facturação e acima do preço médio! Aumentarmos o consumo interno e valorizarmos o preço por litro devem ser dois dos objectivos a atingir nos próximos anos – os anos do tudo ou nada!

Porquê “os anos do tudo ou nada”? Porque a convulsão da economia é certa e imprevisível: é da História e é dos livros.

As mudanças a que estamos a assistir, desde a tecnologia na vinha; a emergência de novas regiões vitícolas em Inglaterra, Países Baixos e Países Nórdicos; a tendência de novos gostos por vinhos fáceis, acessíveis, que saibam bem; o acesso a informação na garrafa/embalagem e a partir desta, com os QRcodes, os códigos de barras, os selos inteligentes; as novas embalagens… tudo isto irá acelerar nos próximos anos e determinará a sobrevivência de muitas das empresas que conhecemos ou a sua absorção por outras. Por isso a importância do incremento do valor, da sustentabilidade, da visão holística de toda a actividade de produção, comercialização, consumo e informação sobre o vinho.

É importantíssimo que o sector se vire para as novas gerações de consumidores e as entenda. Como é bom ver a surpresa, o prazer e uma certa cintilação do olhar de visitantes de quintas ao perceberem o processo que faz com que se possa beber dum copo o líquido onde estão o chão, a luz, o calor, a frescura e o perfume daquele local. Descobrir nesse copo um certo sentido de vida. Porque irá depender também destas novas gerações manterem-se as paisagens de vinha na Região dos Vinhos Verdes, em Trás-os-Montes, em Portugal.

Não sabemos como será a vindima deste ano, mas podemos ter a certeza de que este próximo ano vitivinícola será muito diferente dos anteriores. Os próximos anos vitivinícolas. Que, para Portugal, para muitos dos nossos operadores do sector, serão os anos do tudo ou nada. Há que trabalhar para que sejam os anos do tudo – e dum tudo extraordinário! – que o podem ser! Será difícil - mas será possível!

sábado, 25 de junho de 2022

Gastronomia na fronteira do Rio Douro - Gastronomía en la frontera del Río Duero

Versão bilingue, em português y en castellano, da comunicação apresentada em Zamora no dia 25.06.2022 no âmbito do XVI Encuentro Duero/Douro.



© Manuel Cardoso

Junho 2022


 

1.       Com a mundialização e os efeitos da uniformização cultural promovida pela televisão, pela informação e pela maior facilidade de transportes, e, sobretudo, com o desaparecimento dos controlos das fronteiras no espaço europeu e as mais de três décadas que já temos de livre circulação de pessoas e mercadorias nas estradas que as cruzam, seria de esperar que o carácter da vida das pessoas que habitam no seu entorno se teria já fundido de tal modo que estariam apagadas, no dia a dia, todas as características distintivas dos seus dois mundos, incluindo as alimentares. Puro engano, pelo menos no que nos toca, na nossa velha fronteira do Douro.   

2.       Uma fronteira é um espaço e uma criação mental. Simplificando: espaço de contacto, de separação, de definição, de comunicação e de salvaguarda. Numa fronteira, nós avistamos o outro que está do lado de lá ou veio ao lado de cá, temos uma compreensão do que nos separa e sabemos as regras de passar essa linha, vontade de o fazer se tal nos der mais liberdade ou nos fizer cumprir a nossa esperança. O movimento entre os dois lados duma fronteira sempre se teceu e viveu do fascínio da transgressão, do conhecer o prazer da diferença, do experimentar o exótico e a excitação do sentimento de fuga ao nosso dia a dia. Ou da necessidade. Por isso uma fronteira é, também e ainda, um lugar de encontro.

3.       A fronteira entre Espanha e Portugal no Nordeste do nosso país, e que confina com a Galiza, Leão e Castela, que dum lado tem Trás-os-Montes e a Beira e do outro a Sanabria, Aliste, Los Arribes e Ciudad Rodrigo, metade dela ou quase, formada pelos formidáveis Vales do Douro e do Águeda, também o do Maçãs, é das mais antigas e estáveis do mundo, passada a escrito no Tratado de Alcañices em 1297 (EC 1335).

4.       Tendência antiga, por ser um vale, nele circularam as populações pré-históricas; os Romanos cruzavam-na pela sua XVII via e restante rede, transversal à memorável Via da Prata; os Judeus, porque era uma forma de equidistância entre as Cortes de Valladolid e de Lisboa, entre as quais asseguravam a circulação de informações, de cabedais metálicos e de sobrevivência; estudantes de Portugal iam cursar a Salamanca,  clérigos de Braga e Lamego em direcção a Roma, a Avinhão e a Trento; exércitos pequenos das nossas lutas, hoje quase incompreensíveis; por Reis e nobres com as suas mesnadas; por uma rica e sedutora princesa da Arménia com o seu séquito; pela Princesa Isabel com a sua corte, para vir desde Aragão ser Rainha e Santa em Portugal; por exércitos colossais e multinacionais que nos séculos XVIII e XIX, para um lado e para o outro, um deles comandado por Wellington, no cumprimento das suas missões, deixaram alguma má memória mas também genes e novidades. Nos séculos XIX e XX, foi atravessada sobretudo por turistas, emigrantes, políticos, refugiados, escritores e um grande volume de mercadorias e de contrabando.

5.       A fronteira foi e é, também, local de destino e não só de passagem: a instalação duma sede de bispado, a Diocese de Miranda, no século XVI, mesmo sobre as escarpas do Douro, moldou significativamente mentalidades e hábitos, por mais de dois séculos, assim como teve efeito ainda hoje detectável uma guarnição militar permanente que aí se aquartelou. E a construção das barragens hidroeléctricas foi disruptiva do marasmo e do secular isolamento de populações, impactante tanto do lado espanhol como do português, no tempo de Franco e de Salazar, tendo havido em 1964, em Bemposta e Aldeadavila, um encontro entre o Chefe de Estado de Portugal, Américo Thomaz, e do Generalíssimo Franco para a sua inauguração: esses anos, das décadas de cinquenta e sessenta, indelevelmente marcaram costumes e hábitos que hoje ainda se percebem bem na cultura e na geografia destes lugares quase despovoados.

6.       Uma coisa houve em comum a todos, todos, esses viajantes e autóctones, emigrantes e imigrantes, fossem quem fossem: todos comeram e beberam na fronteira ou nas suas imediações. Em traços largos, podemos dizer que, neste lugar recôndito, longe de tudo, em que é difícil avistar vivalma, desaparecidas que estão, hoje, até as silhuetas inconfundíveis da Guarda Fiscal ou da Guardia Civil, neste sítio agreste, desolado, aparentemente isolado e tão só, contactam dois mundos substancialmente diferentes. Portugal e Espanha? Sem dúvida. Mas muito mais: a civilização, a história e a vida, diferentes, resultado de dois destinos imensos: do lado de Portugal o Atlântico, a África e a Ásia, com as sardinhas e o bacalhau, o arroz, a malagueta, a pimenta, o piri-piri e o louro, a canela, uns ovos mexidos ou uma omoleta de espargos  … do lado de Espanha o Mediterrâneo e a América, com o polvo, o azeite, o pimentão doce e o pimento picante, a salsa, o tomate, a tortilha de batatas.

7.       É evidente que tudo isto pode haver hoje de ambos os lados como coisas em comum vindas da nossa comum ancestralidade e geografia: o porco e todos os seus derivados, os gados, a caça, os peixes do rio… mas não é por acaso que, se estivermos sentados numa feira no planalto do lado português, será fácil aparecer uma belíssima posta de carne mirandesa na brasa, para se cortar e comer à navalha sobre o pão, enquanto do lado espanhol será uma riquíssima tábua de presunto e enchidos que, num ápice, fará o chamamento dos copos. Bem sabemos que também há alheiras e salpicões do lado português, tal como há chuletas e carrilleras de cerdo, de cordero lechal e de ternera de Aliste do lado espanhol, mas isso é já entrar noutro nível de descrição que implica estar de garfo e faca para, por exemplo, experimentar umas inesquecíveis molejas ou um ímpar butelo com cascas.

8.       O dia a dia da vida de fronteira não é diferente do dia a dia da vida das aldeias agrárias dum lado e doutro. Pratos e ementas humildes e autênticos que podem começar por umas sopas de azeite e alho com bacalhau desfiado e um ovo escalfado, se forem à portuguesa, ou com presunto, pimentão e ovos, se forem à espanhola. Mas com as diferenças que o progresso foi introduzindo e com o destino divergente dos sistemas agrários em evolução, dum lado e doutro, tirado o efeito da mundialização das grandes superfícies que tudo poem à disposição e em todo o ano, é detectável o fundo rico da gastronomia desta finisterra. Um dia a dia de frugalidade e parcimónia entrecortado pelo pantagruélico dos dias de festa comemorativos, em que de tudo se assa em fornos de lenha seculares ou em grelhas vastas: leitão, cabrito, vitela, um porco, um boi!

9.       Já não estamos no tempo da vida agrícola feita ao compasso do homem a pé e das juntas de bois, a alimentação foi deixando de se fazer no campo, merenda “de seco” com pão, chouriço e uma bota de vinho, caldeirada se no tempo das segadas. Hoje, a mecanização transformou horários, apagou rotinas e permite que as refeições sejam feitas quase sempre em casa ou, para o pessoal de empreitada, nas tascas e pequenos restaurantes. Por isso, o visitante turista encontra-se, tantas vezes, lado a lado com os trabalhadores no mesmo balcão a petiscar – nas tapas! – ou a comer os pratos do dia. Os mesmíssimos que em Lisboa ou em Madrid? Talvez… mas nem por isso a surpresa, a raridade e os sabores distintos das cañas e do vinho, dos escabeches e da originalidade de cada bar, deixam de estar à espera de quem quiser ir à aventura descobrir sabores. Se nos aperitivos em Portugal habitualmente há um resumo de pão e azeitonas, torradas com azeite, queijos e presunto, já do lado espanhol há um sortido de cogumelos, tortilha, churros, morros, callos, cristas e pinchos variadíssimos a acrescentar que, para quem não for avisado, almoça ou janta bastante e só com tantos petiscos.

10.   Há uma coisa que é inevitável notar: se numa cidade somos atendidos com o profissionalismo de quem presta o serviço a um cliente, nas aldeias e pueblos da fronteira, quer dum lado quer doutro, somos servidos por quem está à espera de decifrar logo, na nossa cara, se apreciamos o que acabámos de trincar ou de beber. Esse momento é decisivo. Para nós e para quem nos serve. Porque, a partir daí, uma vez ganha a confiança, pode abrir-se uma possibilidade imensa de provar coisas que não estão na carta, de experimentar vinhos sem rótulo (que me desculpem as autoridades económicas e, por favor!, não usem isto para reprimir essa riqueza cultural e património histórico!) e receitas proibidas pelo politicamente correcto: os escabeches de peixinhos do rio ou de perdizes, com vinagres e ervas de alquimia caseira, os pichones com pimientos, os chichos de vinho de alhos de porco de matança, as sopas de sangue, os próprios vinhos da casa e os perfumes das bagaceiras, tudo isso só existindo com autenticidade numa sobrevivência temperada de clandestinidade e transgressão. Que lhe ampliam os sabores, acrescentados de emoção, de história, de raízes imemoriais.

11. Mas a nossa visita pode fazer-se sem medos, apoiados nas gloriosas receitas dos livros sobre cozinha de fronteira de que damos os links, notavelmente escritos e ilustrados, publicados com a chancela da Junta de Castilla y León e da Comissão de Coordenação da Região Norte de Portugal. Que são muitas e excelentes, para provar devagar. Hoje vai-se à fronteira facilmente e sem pressas, como quem busca em si um destino. Um outro ritmo, intemporal, já que não há filas para a alfândega. Não é por acaso que já neste século, do lado português, se estão a instalar freiras trapistas, contemplativas, num novo convento em Palaçoulo e, do lado espanhol, um dos maiores investimentos turísticos privados aparece incluído na rede slow food. Duas formas diferentes de o Homem sentir que não vive só de pão mas de outros entendimentos do Tempo. É o sentimento que nos fica, dum fim de semana de deambulação nas aldeias e pueblos da raia. O de que saborear a gastronomia caleidoscópica que a gente, a história e o espaço ali conservam para nosso desfrute pode bem ser, com um copo de vinho certo, uma extraordinária forma de meditação sobre o nosso próprio destino. Tantas vezes desencontrado por Espanha e Portugal, tantas vezes fundido no amor à terra que nos tem reconciliado, a terra da raia.  

 

 Versão em castelhano:


Gastronomía en la frontera del Río Duero

Manuel Cardoso

Junio 2022

 

1. Con los efectos de la globalización y de la normalización cultural promovida por la televisión, por la información y por la mayor facilidad de transportes, y, sobre todo, con la desaparición de los controles en las fronteras en el espacio europeo y las más de tres décadas que ya tenemos  de libre circulación de personas y mercancías en las estradas que las cruzan, sería de esperar que el carácter de vida de las personas que viven en su entorno ya se habría fusionado de tal manera que, en el día a día, todos los rasgos distintivos de sus dos mundos estarían apagados, incluidos los de la alimentación. Puro error, al menos en lo que a nosotros respecta en la vieja frontera del Duero.

2. Una frontera es un límite que es un espacio y una creación mental. En pocas palabras: espacio de contacto, separación, definición, comunicación y salvaguardia. En una frontera, vemos al otro que está del otro lado o vino desde allí, tenemos una comprensión de lo que nos separa y sabemos las reglas para cruzar esa línea, dispuestos a hacerlo si nos da más libertad o nos hace que cumplamos nuestra esperanza. El movimiento entre los dos lados de una frontera siempre se ha tejido y vivido desde la fascinación de la transgresión, de conocer el placer de la diferencia, de experimentar lo exótico y la emoción del sentimiento de evasión de nuestra cotidianidad. O por necesidad. Por eso una frontera es también y sigue siendo un lugar de encuentro.

3. La frontera entre España y Portugal en el noreste de nuestro país, que limita con Galicia, León y Castilla, que tiene de un lado Trás-os-Montes y Beira y del otro Sanabria, Aliste, Los Arribes y Ciudad Rodrigo, la mitad o casi la mitad, formada por los formidables valles del Duero y del Águeda, también el Manzanas, es una de las más antiguas y estables del mundo, consignada en el Tratado de Alcañices de 1297 (EC 1335).

4. Tendencia antigua, por tratarse de un valle, en él circulaban poblaciones prehistóricas; los romanos la atravesaban por su vía XVII y el resto de la red, atravesando la memorable Vía de la Plata; los judíos, porque era una forma de equidistancia entre las Cortes de Valladolid y Lisboa, entre las que aseguraban la circulación de la información, los capitales metálicos y la supervivencia; estudiantes de Portugal fueron a Salamanca, clérigos de Braga y Lamego a Roma, Avignon y Trento; pequeños ejércitos de nuestras luchas, hoy casi incomprensibles; por reyes y nobles con sus asignaciones; por una rica y seductora princesa armenia con su séquito; por la princesa Isabel con su corte, para venir de Aragón para ser reina y santa en Portugal; por colosales y multinacionales ejércitos que en los siglos XVIII y XIX, a un lado y al otro, uno de ellos comandado por Wellington, en el cumplimiento de sus misiones, dejó malos recuerdos pero también genes y innovaciones. En los siglos XIX y XX fue atravesada principalmente por turistas, emigrantes, políticos, refugiados, escritores y un gran volumen de mercancías y contrabando.

5. La frontera fue y es también un lugar de destino y no sólo un lugar de paso: la instalación de un obispado, la Diócesis de Miranda, en el siglo XVI, justo en las laderas del Duero, moldeó significativamente mentalidades y hábitos, por más de dos siglos, al igual que una guarnición militar permanente que estaba estacionada allí tuvo un efecto detectable todavía hoy. Y la construcción de las hidroeléctricas interrumpió el estancamiento y el secular aislamiento de las poblaciones, que repercutió tanto en el bando español como en el portugués, en tiempos de Franco y Salazar, y en 1964, en Bemposta y Aldeadavila, se produjo un encuentro entre los Jefe del Estado de Portugal, Américo Thomaz, y el Generalísimo Franco para su inauguración: aquellos años, de los años cincuenta y sesenta del siglo XX, marcaron de manera indeleble costumbres y hábitos que aún hoy se entienden bien en la cultura y la geografía de estos lugares casi despoblados.

6. Una cosa tenían en común todos, todos, estos viajeros y nativos, emigrantes e inmigrantes, quienesquiera que fueran: todos comían y bebían en la frontera o en sus inmediaciones. A grandes rasgos, podemos decir que, en este lugar recóndito, alejado de todo, donde es difícil ver un alma, faltan incluso las inconfundibles siluetas de la Guardia Fiscal o de la Guardia Civil, en este agreste, desolado, aparentemente aislado y solos, entran en contacto con dos mundos sustancialmente diferentes. ¿Portugal y España? Sin duda. Pero mucho más: civilización, historia y vida, diferente, fruto de dos destinos inmensos: del lado portugués, el Atlántico, la África y la Asia, con sardinas y bacalao, arroz, guindilla, pimienta, piri-piri y laurel, canela, revuelto de huevos o tortilla de espárragos… del lado de España, el Mediterráneo y la América, con pulpo , aceite de oliva, pimientos dulces y pimientos picantes, perejil, tomates, tortillas de patata.

7. Es evidente que todo esto puede existir hoy en ambos lados como cosas en común provenientes de nuestra común ancestralidad y geografía: cerdos y todos sus derivados, ganado vacuno, caza, pesca de río… pero no es casualidad que, si están sentados en una feria en la meseta del lado portugués, será fácil ver un hermoso trozo de carne a la parrilla de Miranda, posta à mirandesa, para cortar y comer con una navaja en el pan, mientras que en el lado español será una muy rica tabla de jamón y embutidos que, en un santiamén, hará la llamada de las copas. Bien sabemos que del lado portugués también hay alheiras y salpicões, así como del lado español hay chuletas y carrilleras de cerdo, el lechal y la ternera de Aliste, pero eso ya es entrar en otro nivel de descripción que implica tener un cuchillo y un tenedor para, por ejemplo, probar unas mollejas inolvidables o un butelo con vainas secas de judías, único.

8. La vida cotidiana de la frontera no es diferente de la vida cotidiana de los pueblos agrarios de ambos lados. Platos y menús humildes y auténticos que pueden empezar con sopas de aceite y ajo con bacalao desmenuzado y huevo escalfado, si son portuguesas, o con jamón, pimientos y huevos, si son españolas. Pero con las diferencias que ha introducido el progreso y con el destino divergente de los sistemas agrarios en evolución, por ambos lados, si retiramos el efecto de la globalización de las grandes superficies que hacen que todo esté disponible durante todo el año, es detectable el rico bagaje de la gastronomía de esta tierra. Un día a día de frugalidad y economía intercalado con el pantagruélico de las fiestas conmemorativas, en las que todo se asa en hornos seculares de leña o en amplias parrillas: cochinillo, cabrito, ternera, un cerdo, ¡un buey!

9. Ya no estamos en la época de la vida agrícola hecha al ritmo del hombre a pie y la yunta de los bueyes, ya no se hacía la comida en el campo, almuerzo “seco” con pan, chorizo ​​y bota de vino, guiso si en tiempo de siega. Hoy, la mecanización ha transformado los horarios, borrado las rutinas y permite que las comidas se hagan casi siempre en casa o, para los contratistas, en tabernas y pequeños restaurantes. Por lo tanto, el visitante turista está, tan a menudo, al lado de los trabajadores en la misma barra tomando un refrigerio: ¡de tapas! – o comiendo los platos del día. ¿Lo mismo que en Lisboa o Madrid? Tal vez… pero eso no quita que la sorpresa, la rareza y los distintos sabores de las cañas y el vino, los adobos y la originalidad de cada barra, ya no esperen a quienes quieran aventurarse a descubrir sabores. Si en los entrantes portugueses suele haber un resumen de pan con aceitunas, tostadas con aceite de oliva, quesos y jamón, en el lado español hay un surtido de setas, tortillas, churros, morros, callos, crestas y pinchos de una amplia variedad para añadir que, para quien no esté avisado, quedará almorzado o cenado, -¡ y mucho! - solo con tantos bocadillos.

10. Hay una cosa que es inevitable notar: si en una ciudad nos atienden con la profesionalidad de quien presta un servicio a un cliente, en los pueblos y aldeas de la frontera, de uno y otro lado, nos atienden esos que están esperando descifrar inmediatamente, en nuestra cara, si disfrutamos de lo que acabamos de picar o beber. Ese momento es decisivo. Por nosotros y por los que nos sirven. Porque, a partir de ahí, una vez que te ganes la confianza, se te puede abrir una posibilidad inmensa de degustar cosas que no están en la carta, de probar vinos sin etiqueta (disculpen a las autoridades económicas y por favor no utilicen esto para reprimir esta riqueza cultural ¡y patrimonio histórico!) y recetas prohibidas por la corrección política: pescados de río o perdices en escabeche, con vinagres y hierbas de alquimia caseras, pichones con pimientos, chichos hechos con ajos de cerdos de matanza, las sopas de sangre, los vinos de la casa y los perfumes de las aguardientes de orujo, todo ello sólo existiendo con autenticidad en una supervivencia atemperada por la clandestinidad y la transgresión. Que amplifican sus sabores, sumados con emoción, historia y raíces inmemoriales.

11. Pero nuestra visita puede hacerse sin miedos, apoyada en las gloriosas recetas de los libros de cocina de frontera a los que damos los enlaces, notablemente escritos e ilustrados, editados con el sello de la Junta de Castilla y León y la Comisión Coordinadora de la Región Norte de Portugal. Que son muchas y exquisitas, para degustar despacio. Hoy vas a la frontera con facilidad y sin prisas, como si buscaras un destino dentro de ti. Otro ritmo atemporal, ya que no hay colas para las costumbres. No es casualidad que ya en este siglo, del lado portugués, se instalen monjas trapenses contemplativas en un nuevo convento en Palaçoulo y, del lado español, aparezca una de las mayores inversiones turísticas privadas incluidas en la red del slow food. Dos modos distintos en los que el Hombre siente que no vive sólo de pan sino de otras comprensiones del Tiempo. Es el sentimiento que queda, después de un fin de semana de vagar por los pueblos y aldeas de la frontera. Que la gastronomía caleidoscópica que allí las personas, la historia y el espacio conservan para nuestro disfrute, bien puede ser, con una copa del vino adecuado, una forma extraordinaria de meditación sobre nuestro propio destino. Tantas veces desparejado por España y Portugal, tantas veces fusionado en el amor a la tierra que nos ha reconciliado, la tierra de la frontera.

 

 

Bibliografia:

Diana Manuela Dos Santos Marques, A casa rural do Planalto Mirandês em meados do século XX: espaços de confeção dos alimentos, utensilagem e práticas alimentares. FLUP. 2014.

Links importantes:

https://www.espaciofronteira.eu/wp-content/uploads/2021/08/Recetario_Raya_Receitas_Raia_2021.pdf

https://hermisende.com/wp-content/uploads/2020/06/Recetario-de-la-Raya.pdf

Agradecimentos: Fernando Bianchi de Aguiar, Mariana Ary, Ana Cristina Ruano, Afonso Ruano, António Afonso Pimentel, António Picotês, Frederico Machado.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

O nosso tio de Ponte de Lima, João de Abreu Malheiro

 

©Manuel Cardoso

 


Na resenha genealógica da nossa família, este nosso tio, casado em 1925 com a irmã do meu Pai, Lygia da Conceição de Sousa Cardoso (1903-1939) e, oito anos depois de viúvo, em 1947, com uma prima direita da sua primeira mulher (Beatriz Maria de Nazaré de Sousa Pereira e Oliveira, 1913-1999), aparece resumidamente.

Nasceu em 11.10.1893 em Arcozelo, Ponte de Lima, e morreu em 4.09.1952 no Hospital da Ordem da Trindade, no Porto, tendo vivido em Macedo de Cavaleiros desde os anos vinte, onde foi solicitador judicial e escrivão de direito. Era filho de Abílio de Abreu Malheiro e de sua mulher Maria Rodrigues Guerra, neto paterno do Dr. João de Abreu e Lima Pereira Malheiro e de sua mulher e prima Joaquina Rosa da Cunha Fiúza, e neto materno de Manuel José Rodrigues Guerra e de sua mulher Maria Francisca Agra (este avô do Tio João, Dr. João de Abreu e Lima Pereira Malheiro, era filho de João Bento de Abreu e Lima Pereira Malheiro, da Casa de Penouços, Oleiros, Ponte da Barca, e de Joaquina Clara da Cunha, neto paterno de Bento José de Abreu e Lima Araújo, de Santa Maria de Souto de Rebordãos, Viana, FCR, da Casa da Gandra, e neto materno de Pedro José da Cunha, de Ponte de Lima, e de Maria Teresa, de Santa Marinha, Arcozelo).

A minha tia era giríssima e vistosíssima desde muito nova, trajava anos vinte up-to-date, cantava, dançava e era culta e o meu tio, de quem muitas pessoas me contaram histórias e episódios, era também culto e sedutor, escrupuloso em muitos hábitos, como se lerá, e, por isso, acima ter referido que “aparece resumidamente” no pequeno escrito genealógico.

Como já explicado por diversas vezes neste blogue e noutros textos, tendo eu nascido quando o meu Pai tinha 52 anos, fiquei desfasado em relação às gerações contemporâneas e já não contactei pessoalmente com muitos dos protagonistas da sua fase, mas, por testemunhos, documentos e reminiscências, fui construindo todo o pano de fundo no qual se desenha e pinta, de forma cada vez mais nítida, a constelação da nossa família. Como todas as constelações de astros, dotada de movimentos reais e aparentes, de ciência e de mitologia (de mitomania, também!!!). O tio Malheiro (como era conhecido), não escapa à regra.

Veio parar a Macedo numa janela de oportunidade: o movimento do tribunal na então progressiva vila justificava o seu lugar e trabalho, além de que deve ter tido uns ecos sobre a nossa família pelas estadias habituais e notadas em veraneio na Póvoa e um pouco pelo Minho. Além do mais, para chegar ou partir de Macedo, havia comboio, o que na época fazia toda a diferença.

Ponte de Lima já figurava há muito nos remetentes de correspondência das nossas casas de parentela de cá, havia relações antigas com os Alpoins, com o Conde de Aurora (que trocava pés de roseiras e efusivas notas sobre flores e perfumes com o nosso bisavô …) e uns quantos conhecidos de meu pai mais recentes, ligados ao regime ou na oposição, alvos de abraços nos cafés ao pé da ponte, onde se parava nas deambulações de Julho ou Agosto, trânsito sempre difícil e vigiado por guardas da PVT (Polícia de Viação e Trânsito), que tinham um posto característico, modernista, dos do Arquitecto Dário da Silva Vieira (1908-1956), tipo boné com pala (que, felizmente, ainda lá está)!

Ficou célebre, e tal tem de ser entendido à luz dos costumes da época, nada atávicos numa sociedade só aparentemente atávica, a forma como o Tio Malheiro se deu a conhecer na vida da Tia Lygia. Foi há quase um século. Ela mal teria vinte anos, terminara os estudos, regressara a casa, era frequente estar à sacada numa das duas salas da frente, a que se assomava a passar o olhar na pasmaceira da vila, no intervalo dalgum capítulo dum livro de Henry Bordeaux, em francês, ou duma das revistas assinadas, casa de médico. Do ouro lado da rua, no rés-do-chão de casa das nossas Tias Sousas (hoje demolida), no que fora o escritório do nosso bisavô Sousa, com placa de esmalte azul e branco cravada na parede a identificá-lo, o João Malheiro tinha a sua secretária e estante de papelada e sempre, sempre que ela vinha à sacada, ele aparecia na porta e fazia uma vénia com tanto de cerimónia como de galante, dirigida à Lygia. Se havia dias em que ele sumira porque ela o tinha visto sair, soçobrando a pasta dos processos rua adiante, para o tribunal, fechando a porta meticulosamente, saudando com chapéu levantado, encetando um andar cauteloso para que não houvesse poeira ou grão de areia a saltar-lhe para os sapatos engraxados e refulgentes, outros dias havia em que, estando a trabalhar ali, de cada vez que ela ia à sacada – ele aparecia na porta! Como seria aquela coincidência?

Ao fim duns dias e dumas quantas vénias, já com sorrisos, passados outros, com sinal de bilhete enviado por uma das criadas, passados mais outros ainda, com trocas de cartões perfumados, chegou o convite para o chá pela nossa Avó Micas, atentíssima. Só meses depois a Lygia descobriu – e contou em casa – como era a coincidência do surgir à porta quando ela ia à sacada: ele usava um espelhinho de bolso num estojo de tartaruga com que, antes de entrar em audiência no tribunal ou duma aparição pública no Saldanha ou na Associação, acertava a risca do cabelo e examinava o imaculado do colarinho e da camisa (sem o que, não entraria e teria de ir a casa aprontar-se). Ora, quando estava sentado à secretária no seu escritório, apoiava o espelho entalado numas resmas de papel ou contra a lombada dum volume do Diário do Governo num ângulo tal que, estando a ler ou a escrever com a pena de aparo, avistava as sacadas onde poderia aparecer a sua almejada! Daí ao ser pretendida, ao compromisso e ao casamento, foi com a velocidade dum charleston ou dum foxtrot.

Culto, inteligente e criativo, tenho imensa pena de não ter nenhum dos seus textos autógrafos, nenhum dos seus cadernos de diário (que não seria contínuo mas que seria de notas autobiográficas) nem nenhum dos seus poemas ou correspondência. Não faço ideia onde estarão e se é que ainda existem. Connosco, na nossa casa de Macedo ou na de Latães, não estão. Era um leitor compulsivo, sobretudo imprensa periódica e poética, romances, história. Assinou paulatinamente a edição dos fascículos do Felgueiras Gayo, que esmiuçava com esquemas, compondo a sua árvore genealógica, até ao dia em que apareceu na sala dos meus avós e seus sogros a dizer que “Nunca mais! Não lhe pago nem mais um fascículo! Não é que uma das minhas linhas entronca no Miguel de Vasconcelos?!”. Estando o país no fervor das comemorações patrióticas de 40, terá sido um nosso outro tio a continuar a assinatura do Gayo, para não ficar incompleta!...



Irei seguir, transcrito à letra, um artigo de Virgílio Pires publicado em 9 de Março de 2001 no Mensageiro de Bragança, intitulado História de Um Soneto Encantador:

“Estávamos no Verão do ano de 1951. Eu era aspirante de finanças em Macedo de Cavaleiros. Ali desempenhava também a sua profissão o Senhor João de Abreu Malheiro, mui ilustre Solicitador Judicial, que anteriormente havia exercido o cargo de Secretário Judicial, do qual se encontrava já aposentado. Tratava-se de pessoa séria e honesta, com uma formação moral exemplar, que aliava à sua elevada competência profissional uma conduta social impecável.

“Estas qualidades, que ele diariamente revelava não só no exercício da sua profissão, como em todas as suas relações de ordem social, granjearam-lhe enorme prestígio no meio. Nas contas que apresentava aos seus clientes era tão escrupuloso que o seu rigor e precisão iam, naquele tempo, até aos centavos.

“Com a sua pessoa era excessivamente cuidadoso. Levantava-se tarde porque a sua toilette demorava algumas horas a preparar. Vestia e calçava muito bem, apresentando sempre um porte impecável. O seu horror ao pó e ao lixo era sobejamente conhecido de toda a gente.

“Não guardava na carteira as notas que recebia dos clientes para pagamento dos seus honorários, sem que previamente as sacudisse bem sacudidas, uma por uma, e lhes soprasse várias vezes de ambos os lados.

“Em dias de chuva, podia atravessar qualquer rua encharcada da então vila de Macedo de Cavaleiros sem que nos seus sapatos se notasse depois qualquer pingo de lama.

“Certo dia, estava ele já sentado à mesa para almoçar no Restaurante Seixas, lá da terra, quando foi procurado por um seu cliente que, no fim da conversa, se despediu com aperto de mão. Tanto bastou para que o Sr. Malheiro tivesse que lavar novamente as mãos antes de retomar o seu lugar à mesa. Só que a cena repetiu-se por mais duas ou três vezes, porque o cliente se havia esquecido de alguns pormenores e voltava atrás para contactá-lo de novo.

“Era frequentador assíduo da Repartição de Finanças, mas normalmente a horas mortas, já depois de encerrada para o público.

“No Inverno, sentava-se connosco à volta da braseira e deliciava-nos com as suas histórias, anedotas, cantigas, poesias e outras manifestações da sua tão vasta cultura geral.

“Quando desejávamos que se retirasse, por já ser muito tarde, como ninguém tinha coragem de lhe pedir que saísse, bastava que auqlquer um de nós deixasse cair sobre o balcão, com algum estrondo, algum dos pesados volumes das matrizes prediais, para que a onda de pó que se gerava afugentasse imediatamente o Senhor Malheiro.

“Diabruras da juventude!

“Mas vamos à história do soneto.

“Os aposentados recebiam mensalmente a sua pensão em dias certos e pré-determinados, na Repartição de Finanças, que funcionava também como Delegação da Caixa Geral de Depósitos, entidade que, nessa altura, englobava a Caixa Geral de Aposentações.

“O Senhor Malheiro, durante esses meses de Julho e Agosto desse ano de 1951, ausentou-se com a família para a Póvoa de Varzim, onde costumava passar as suas férias e frequentar a praia.

“Antes de partir, pediu-me para eu lhe receber a pensão de aposentação desses dois meses e deixou-me ficar os respectivos recibos, por ele já preenchidos e assinados.

“Disse-me que devia guardar a importância total dessas pensões até ao seu regresso, salvo se ele me pedisse que lha mandasse por vale de correio.

“A certa altura, já muito perto do fim do mês de Agosto, recebi um postal do correio que dizia assim:

Meu Prezado Amigo.

 

Já bastante maltratada,

Quase exausta e combalida,

A minha bolsa exaurida

Toca a rebate, coitada!!...


Acuda à sua chamada,

Pois a pobre e desvalida,

Se não é já socorrida,

Dá ao Diabo a cartada.


São dois meses, note bem,

É só o que a triste tem

P’ra tomar algum alento.


Não se esqueça, veja lá,

Que outro remédio não há,

P’ra tão grande sofrimento.


Com os meus melhores cumprimentos para todos, agradece o amigo mt.º obrigado, João Malheiro

24-VIII-51

“Com a publicação deste magnífico soneto e narração dos acontecimentos que estiveram na sua génese, pretendo apenas prestar a minha simples e modesta homenagem à memória de um inesquecível e Ilustre Amigo, que muito admirei.

“A sua apurada e admirável veia poética está bem patente neste maravilhoso soneto que guardo religiosamente há cerca de cinquenta anos e já recitei várias vezes em convívios de amigos. Ainda conservo o postal do correio que o Senhor João de Abreu Malheiro me enviou e onde escreveu, por seu próprio punho, este soneto. (…) esta preciosa jóia poética, de valor estimativo e até literário incalculáveis”.

O Tio João Malheiro teve três filhos rapazes do seu breve casamento com a minha Tia Lygia e uma rapariga do seu segundo casamento com a Prima Beatriz Maria. Conheci-os muito fugazmente, infelizmente, mas muito melhor a sua filha Milú, e temos privado ao longo dos anos.

Ele e o meu Pai foram amigos chegados, tantas vezes cúmplices naqueles transes de vida que tornam mais firmes os laços. Uns, de aventura e riso – outros, secretos e sérios. E eu sinto esta coisa estranha e profunda, de se ter amizade a Tios que se não conheceram.


A foto da Tia Lygia e do Tio João foi tirada na Póvoa de Varzim, em Maio de 1925, durante a sua lua de mel. 

   

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Joaquim Manuel de Barros Cardoso – 2 : OS SEUS TRISAVÓS DE BASTO, nossos antepassados

© Manuel Cardoso

Queridos Mariana e filhotes, manos, sobrinhos, sobrinhos-netos e primos, ao ter começado a escrever sobre este nosso antepassado, Joaquim Manuel de Barros Cardoso, no post de Fevereiro de 2022, e que pode ser acedido aqui https://adriveinmycountry.blogspot.com/2022/02/joaquim-manuel-de-barros-cardoso-e.html , prometi a pouco e pouco lançar luz sobre os seus nebulosos (para nós) antecessores. E  vimos hoje divulgar mais uns quantos dados do que pude apurar (e irei apurando o próprio texto ao longo do tempo, quando for havendo novidades de investigação), sempre na esperança de que este trabalho, interminável e fascinante, de descobrir a provável história dos nossos genes, possa não só não ser esquecido, mas continuado, um dia, por descendentes nossos, que lhe achem piada e interesse. 

Para a leitura de hoje conviria prepararem-se com um copo e uma garrafa escolhida, a gosto de cada um, de vinho das castas de Basto: arinto, azal, batocal, trajadura, amaral, borraçal, espadeiro, padeiro de Basto, rabo de anho (ou rabo de ovelha), vinhão. ...e também há alvarinho em Basto! Porque é das bordaduras dos mesmos campos de onde estas têm as suas raízes, que tiveram raízes uns trisavós desse nosso trisavô: de Quintela de Basto, na freguesia de S. Clemente, em cuja igreja se baptizavam, casavam e lhes rezavam por alma. 

Não duvido que o seu vinho fosse predominantemente vinhão com rabo de ovelha ou padeiro e espadeiro, de uvas a crescerem em bordaduras armadas e de enforcado, arjoados e uveiras, feito por duas vezes nesses tempos do fim do século XVII, em que o tempo estava particularmente agreste e frio, mesmo neste microclima aconchegado dos vales onde correm vários ribeiros e riachos até chegarem ao Tâmega. Entre eles o de Petimão, talvez o mais perto da casa onde viveria o casal Francisco Ribeiro e Senhorinha Lopes. Foram os pais de, pelo menos, três filhos, Maria (b.12.5.1666 em S.Clemente), Isabel (b.30.5.1669 em S.Clemente) e António (b.18.12.1672 em S.Clemente). Dificílima a vida, então, aí. De tal modo que este último, de seu nome completo António Ribeiro Falcão, decide-se a singrar por conta própria.

Tentámos visitar uma vez a igreja de S. Clemente, a Mariana e eu. Não vimos vivalma e não pudemos entrar por estar fechada (em compensação pudemos estar, a poucos quilómetros dali, junto ao túmulo de Santa Senhorinha, sentindo intimidade e graça). Tiráramos uma foto ao pé da estátua de D. António Ribeiro, Cardeal Patriarca de Lisboa, quiçá nosso parente!, tal como João Pinto Ribeiro, o conspirador da Restauração, como constava das prosápias contadas no Douro, e nem conseguimos saber qual seria a casa dos descendentes desses nossos vetustos avós, que hoje deverá estar apenas com as suas paredes  porque terá ardido em meados do século passado, segundo se dizia. Nunca a vimos. Ficará para um outro dia!

Estão, de copo na mão, ou com uma malga se for um tinto, com algo forte para trincar, por exemplo uma rodela de salpicão e uma fatia de broa? Instalem-se. E ponham música, sugiro Bach, Suite n.º 3, Air, em modo repeat. Têm que ir fazendo esquemas de apontamentos, papel e caneta.

António Ribeiro Falcão saiu de Basto e acompanhou o progresso de então. Deve ter conhecido – conheceu de certeza! – os comerciantes e compradores de vinhos que vinham a Basto escolher o melhor para exportar pelo Porto, para Inglaterra e outros destinos (sobre isto podem ler o post https://adriveinmycountry.blogspot.com/2021/09/os-vinhos-de-viana-e-o-vinho-do-porto.html ) e uma vez foi de abalada, levando cabedais de família suficientes para se estabelecer em Miragaia. 

Miragaia era então uma freguesia cosmopolita, à beira rio, com uma praia (no local que hoje é a Rua da Alfândega) onde varavam os escaleres de embarcações de mais alto bordo e onde descarregavam alguns rabelos as suas cargas preciosas de vinhos de Basto e do Cima Douro, carregados em Entre-os-Rios, na Régua e noutros sítios, ou trazidos em carros de bois até à cidade, os que vinham por terra. Miragaia fervilhava de vida comercial, tal como a restante zona ribeirinha do Porto de então - e de Gaia. O nosso António Ribeiro Falcão montou taberna aberta e um armazém de estanco na Rua dos Cobertos, rua de que hoje ainda resta uma parte importante da arcaria de granito (quem for ao World of Discoveries não pode deixar de a ver!!!) e onde passo com imenso respeito e emoção, imaginando esse agitar do início do século XVIII, as vozes, as línguas, o colorido e significado das fatiotas, os pipos a rolar, os fretes e contratadores, os escravos e escravas exóticos, o pessoal de estiva e os negociantes, gente de mar, gente de rio, gente de terra, militares e corsos, mendigos e ricos, os carros de bois, os toldos das vendas, mulheres de sorte e de convite, o alegre movimento do dinheiro que luzia em prata e ouro nas transações internacionais (Miragaia era muito internacional), a carregação dos barcos, as saúdes às chegadas e partidas. No balcão ou numa mesa da sua taberna, talvez numa conversa de fim de missa na Igreja de S. Pedro de Miragaia, num qualquer momento decisivo, se terá acertado o seu casamento vantajoso no Douro. Ele tivera sucesso nos negócios, era conhecido dos produtores de vinho no Douro, dispunha à partida de seiscentos mil reis para a sua parte de dote e os pais da prometida Domingas de Barros, filha de Manuel de Barros e de Maria João, ambos de Vilarinho de São Romão, dotaram-na com “o seu prazo que possuem de que é senhorio o Convento de Santo Elói do Porto” (in escritura de dote de casamento, Notariais de Provesende, 1.º ofício, livro 17, fls. 66.67.68. 15.6.1708, Arquivo Distrital de Vila Real).

Casam em Vilarinho de São Romão em 24 de Junho de 1708 mas vivem em Miragaia onde continuam com o seu negócio e onde têm pelo menos cinco filhos: Manuel Ribeiro Falcão, b.26.11.1710 em S.Pedro de Miragaia, m.23.5.1753, solteiro, em Vilarinho de São Romão; António Ribeiro Falcão, b.22.8.1713 em SPM, smn; João, b.28.6.1716 em SPM, m.23.6.1726 também em SPM; Ana Maria de Barros Falcão, b.19.2.1719 em  SPM, m.9.2.1802, senhora de grande fibra e que virá a ser avó do nosso Joaquim Manuel, como veremos; Teresa, b.8.3.1722 em SPM smn. 

Nesta geração se fará a mudança da família para Vilarinho de São Romão, facto a que não é estranha a morte precoce do António Ribeiro Falcão em Miragaia em 17.10.1733 e o casamento que a nossa Ana Maria de Barros Falcão vem a fazer em 10.5.1740 em Vilarinho de São Romão com Manuel de Carvalho, proprietário aqui e que permitiu juntar vinhas às vinhas, que contaremos num próximo post. Domingas de Barros, já viúva, veio viver com os filhos para Vilarinho de São Romão e aí morre em 30.7.1751, com testamento. Do vinho que viria de Basto e mais o que passara a escoar de Vilarinho de São Romão, todo produzido em família, com as rédeas do negócio para a sua venda em Miragaia, a família viria a poder crescer quer em capacidade material quer cultural. E fê-lo significativamente.  

Não temos perfeitamente documentada toda esta fase. Faltam livros de assentos ou estão em sítios onde ainda não os descobrimos. Mas não terá sido logo liquidado todo o negócio de Miragaia. Deve ter ficado entregue ou a outros parentes (ao António RF, filho do António RF?) que ainda não descortinámos ou a procuradores em arrendamento a terceiros. Só na segunda metade do século XVIII veio a ser arrumado esse assunto, ainda em circunstâncias não esclarecidas mas de que há um eco num documento que faz pensar numa morte súbita dum dos herdeiros e na necessidade de serem tomadas medidas urgentes para que não levem descaminho os cabedais do Porto.

A partir da metade do século XVIII não volta a haver referência a Basto nos nossos documentos familiares até agora consultados, mas foi significativo e determinante esse passo do bisavô do Joaquim Manuel, o António Ribeiro Falcão, nosso sextavô.

(Um esclarecimento para os menos habituados a estas coisas genealógicas: cada um de nós tem dois pais, quatro avós, oito bisavós, dezasseis trisavós, trinta e dois tetravós, sessenta e quatro pentavós, cento e vinte e oito sextavós e assim sucessivamente……. Mas não rigorosamente, porque há gerações em que há casamentos entre primos e primos de segundo e terceiro graus e isso vem diminuir o número de antepassados. Para além de outros casos atípicos, mas biologicamente possíveis e de que falaremos a seu tempo. Isto para frisar que o nosso António Ribeiro Falcão, pelo menos teoricamente, é uma das mais de cento e tal pessoas - e contando só as de uma geração! - cujos genes hoje estão no nosso DNA… isto de serem mais de cem, mais de duzentas e cinquenta!!! é na minha geração – aumenta dramaticamente se “descermos” às dos filhos, sobrinhos e sobrinhos netos!!!! – e em apenas escassos trezentos anos… Incrível, não é? 

Temos de olhar para o passado com muito respeito, para os que nos precederam com uma grande gratidão e para a sua história com um profundo reconhecimento porque cada um, de forma mais humilde ou mais poderosa, mais infeliz ou mais realizada, teve o condão de ter sucesso em nos transmitir os seus genes e, de certeza, muitos com grande heroísmo pessoal e sacrifício. Investigar e saber sobre o seu passado é, por isso, uma forma de homenagem, não um exercício de prosápia ou vaidade vã).

Acabaram o vinho? Fantástico e diferente do comum, concordam? De Basto, uma das melhores sub-regiões dos Vinhos Verdes. Hoje em dia há todas as castas – e mais algumas – das que enunciei acima. Não era assim no tempo dos nossos Ribeiros e Ribeiros Falcões, havia menos castas e com uma vitivinicultura muito diferente da de hoje. Mas já na altura o exportavam para o estrangeiro. Hoje também. Nós, bebemo-lo pouco. Deveríamos fazê-lo mais vezes.  

Voltaremos a falar de Basto e da nossa família, mas por causa de um outro ramo, o dos Borges, mas só daqui a bastante tempo… 😊.

(Os extractos dos mapas são do mapa de Gotha de España y Portugal, cerca de 1909). 

n. = nascido: b. = baptizado; m. = morto; c. = casado; cc = casado com; smn. = sem mais notícia.