sexta-feira, 17 de junho de 2022

O nosso tio de Ponte de Lima, João de Abreu Malheiro

 

©Manuel Cardoso

 


Na resenha genealógica da nossa família, este nosso tio, casado em 1925 com a irmã do meu Pai, Lygia da Conceição de Sousa Cardoso (1903-1939) e, oito anos depois de viúvo, em 1947, com uma prima direita da sua primeira mulher (Beatriz Maria de Nazaré de Sousa Pereira e Oliveira, 1913-1999), aparece resumidamente.

Nasceu em 11.10.1893 em Arcozelo, Ponte de Lima, e morreu em 4.09.1952 no Hospital da Ordem da Trindade, no Porto, tendo vivido em Macedo de Cavaleiros desde os anos vinte, onde foi solicitador judicial e escrivão de direito. Era filho de Abílio de Abreu Malheiro e de sua mulher Maria Rodrigues Guerra, neto paterno do Dr. João de Abreu e Lima Pereira Malheiro e de sua mulher e prima Joaquina Rosa da Cunha Fiúza, e neto materno de Manuel José Rodrigues Guerra e de sua mulher Maria Francisca Agra (este avô do Tio João, Dr. João de Abreu e Lima Pereira Malheiro, era filho de João Bento de Abreu e Lima Pereira Malheiro, da Casa de Penouços, Oleiros, Ponte da Barca, e de Joaquina Clara da Cunha, neto paterno de Bento José de Abreu e Lima Araújo, de Santa Maria de Souto de Rebordãos, Viana, FCR, da Casa da Gandra, e neto materno de Pedro José da Cunha, de Ponte de Lima, e de Maria Teresa, de Santa Marinha, Arcozelo).

A minha tia era giríssima e vistosíssima desde muito nova, trajava anos vinte up-to-date, cantava, dançava e era culta e o meu tio, de quem muitas pessoas me contaram histórias e episódios, era também culto e sedutor, escrupuloso em muitos hábitos, como se lerá, e, por isso, acima ter referido que “aparece resumidamente” no pequeno escrito genealógico.

Como já explicado por diversas vezes neste blogue e noutros textos, tendo eu nascido quando o meu Pai tinha 52 anos, fiquei desfasado em relação às gerações contemporâneas e já não contactei pessoalmente com muitos dos protagonistas da sua fase, mas, por testemunhos, documentos e reminiscências, fui construindo todo o pano de fundo no qual se desenha e pinta, de forma cada vez mais nítida, a constelação da nossa família. Como todas as constelações de astros, dotada de movimentos reais e aparentes, de ciência e de mitologia (de mitomania, também!!!). O tio Malheiro (como era conhecido), não escapa à regra.

Veio parar a Macedo numa janela de oportunidade: o movimento do tribunal na então progressiva vila justificava o seu lugar e trabalho, além de que deve ter tido uns ecos sobre a nossa família pelas estadias habituais e notadas em veraneio na Póvoa e um pouco pelo Minho. Além do mais, para chegar ou partir de Macedo, havia comboio, o que na época fazia toda a diferença.

Ponte de Lima já figurava há muito nos remetentes de correspondência das nossas casas de parentela de cá, havia relações antigas com os Alpoins, com o Conde de Aurora (que trocava pés de roseiras e efusivas notas sobre flores e perfumes com o nosso bisavô …) e uns quantos conhecidos de meu pai mais recentes, ligados ao regime ou na oposição, alvos de abraços nos cafés ao pé da ponte, onde se parava nas deambulações de Julho ou Agosto, trânsito sempre difícil e vigiado por guardas da PVT (Polícia de Viação e Trânsito), que tinham um posto característico, modernista, dos do Arquitecto Dário da Silva Vieira (1908-1956), tipo boné com pala (que, felizmente, ainda lá está)!

Ficou célebre, e tal tem de ser entendido à luz dos costumes da época, nada atávicos numa sociedade só aparentemente atávica, a forma como o Tio Malheiro se deu a conhecer na vida da Tia Lygia. Foi há quase um século. Ela mal teria vinte anos, terminara os estudos, regressara a casa, era frequente estar à sacada numa das duas salas da frente, a que se assomava a passar o olhar na pasmaceira da vila, no intervalo dalgum capítulo dum livro de Henry Bordeaux, em francês, ou duma das revistas assinadas, casa de médico. Do ouro lado da rua, no rés-do-chão de casa das nossas Tias Sousas (hoje demolida), no que fora o escritório do nosso bisavô Sousa, com placa de esmalte azul e branco cravada na parede a identificá-lo, o João Malheiro tinha a sua secretária e estante de papelada e sempre, sempre que ela vinha à sacada, ele aparecia na porta e fazia uma vénia com tanto de cerimónia como de galante, dirigida à Lygia. Se havia dias em que ele sumira porque ela o tinha visto sair, soçobrando a pasta dos processos rua adiante, para o tribunal, fechando a porta meticulosamente, saudando com chapéu levantado, encetando um andar cauteloso para que não houvesse poeira ou grão de areia a saltar-lhe para os sapatos engraxados e refulgentes, outros dias havia em que, estando a trabalhar ali, de cada vez que ela ia à sacada – ele aparecia na porta! Como seria aquela coincidência?

Ao fim duns dias e dumas quantas vénias, já com sorrisos, passados outros, com sinal de bilhete enviado por uma das criadas, passados mais outros ainda, com trocas de cartões perfumados, chegou o convite para o chá pela nossa Avó Micas, atentíssima. Só meses depois a Lygia descobriu – e contou em casa – como era a coincidência do surgir à porta quando ela ia à sacada: ele usava um espelhinho de bolso num estojo de tartaruga com que, antes de entrar em audiência no tribunal ou duma aparição pública no Saldanha ou na Associação, acertava a risca do cabelo e examinava o imaculado do colarinho e da camisa (sem o que, não entraria e teria de ir a casa aprontar-se). Ora, quando estava sentado à secretária no seu escritório, apoiava o espelho entalado numas resmas de papel ou contra a lombada dum volume do Diário do Governo num ângulo tal que, estando a ler ou a escrever com a pena de aparo, avistava as sacadas onde poderia aparecer a sua almejada! Daí ao ser pretendida, ao compromisso e ao casamento, foi com a velocidade dum charleston ou dum foxtrot.

Culto, inteligente e criativo, tenho imensa pena de não ter nenhum dos seus textos autógrafos, nenhum dos seus cadernos de diário (que não seria contínuo mas que seria de notas autobiográficas) nem nenhum dos seus poemas ou correspondência. Não faço ideia onde estarão e se é que ainda existem. Connosco, na nossa casa de Macedo ou na de Latães, não estão. Era um leitor compulsivo, sobretudo imprensa periódica e poética, romances, história. Assinou paulatinamente a edição dos fascículos do Felgueiras Gayo, que esmiuçava com esquemas, compondo a sua árvore genealógica, até ao dia em que apareceu na sala dos meus avós e seus sogros a dizer que “Nunca mais! Não lhe pago nem mais um fascículo! Não é que uma das minhas linhas entronca no Miguel de Vasconcelos?!”. Estando o país no fervor das comemorações patrióticas de 40, terá sido um nosso outro tio a continuar a assinatura do Gayo, para não ficar incompleta!...



Irei seguir, transcrito à letra, um artigo de Virgílio Pires publicado em 9 de Março de 2001 no Mensageiro de Bragança, intitulado História de Um Soneto Encantador:

“Estávamos no Verão do ano de 1951. Eu era aspirante de finanças em Macedo de Cavaleiros. Ali desempenhava também a sua profissão o Senhor João de Abreu Malheiro, mui ilustre Solicitador Judicial, que anteriormente havia exercido o cargo de Secretário Judicial, do qual se encontrava já aposentado. Tratava-se de pessoa séria e honesta, com uma formação moral exemplar, que aliava à sua elevada competência profissional uma conduta social impecável.

“Estas qualidades, que ele diariamente revelava não só no exercício da sua profissão, como em todas as suas relações de ordem social, granjearam-lhe enorme prestígio no meio. Nas contas que apresentava aos seus clientes era tão escrupuloso que o seu rigor e precisão iam, naquele tempo, até aos centavos.

“Com a sua pessoa era excessivamente cuidadoso. Levantava-se tarde porque a sua toilette demorava algumas horas a preparar. Vestia e calçava muito bem, apresentando sempre um porte impecável. O seu horror ao pó e ao lixo era sobejamente conhecido de toda a gente.

“Não guardava na carteira as notas que recebia dos clientes para pagamento dos seus honorários, sem que previamente as sacudisse bem sacudidas, uma por uma, e lhes soprasse várias vezes de ambos os lados.

“Em dias de chuva, podia atravessar qualquer rua encharcada da então vila de Macedo de Cavaleiros sem que nos seus sapatos se notasse depois qualquer pingo de lama.

“Certo dia, estava ele já sentado à mesa para almoçar no Restaurante Seixas, lá da terra, quando foi procurado por um seu cliente que, no fim da conversa, se despediu com aperto de mão. Tanto bastou para que o Sr. Malheiro tivesse que lavar novamente as mãos antes de retomar o seu lugar à mesa. Só que a cena repetiu-se por mais duas ou três vezes, porque o cliente se havia esquecido de alguns pormenores e voltava atrás para contactá-lo de novo.

“Era frequentador assíduo da Repartição de Finanças, mas normalmente a horas mortas, já depois de encerrada para o público.

“No Inverno, sentava-se connosco à volta da braseira e deliciava-nos com as suas histórias, anedotas, cantigas, poesias e outras manifestações da sua tão vasta cultura geral.

“Quando desejávamos que se retirasse, por já ser muito tarde, como ninguém tinha coragem de lhe pedir que saísse, bastava que auqlquer um de nós deixasse cair sobre o balcão, com algum estrondo, algum dos pesados volumes das matrizes prediais, para que a onda de pó que se gerava afugentasse imediatamente o Senhor Malheiro.

“Diabruras da juventude!

“Mas vamos à história do soneto.

“Os aposentados recebiam mensalmente a sua pensão em dias certos e pré-determinados, na Repartição de Finanças, que funcionava também como Delegação da Caixa Geral de Depósitos, entidade que, nessa altura, englobava a Caixa Geral de Aposentações.

“O Senhor Malheiro, durante esses meses de Julho e Agosto desse ano de 1951, ausentou-se com a família para a Póvoa de Varzim, onde costumava passar as suas férias e frequentar a praia.

“Antes de partir, pediu-me para eu lhe receber a pensão de aposentação desses dois meses e deixou-me ficar os respectivos recibos, por ele já preenchidos e assinados.

“Disse-me que devia guardar a importância total dessas pensões até ao seu regresso, salvo se ele me pedisse que lha mandasse por vale de correio.

“A certa altura, já muito perto do fim do mês de Agosto, recebi um postal do correio que dizia assim:

Meu Prezado Amigo.

 

Já bastante maltratada,

Quase exausta e combalida,

A minha bolsa exaurida

Toca a rebate, coitada!!...


Acuda à sua chamada,

Pois a pobre e desvalida,

Se não é já socorrida,

Dá ao Diabo a cartada.


São dois meses, note bem,

É só o que a triste tem

P’ra tomar algum alento.


Não se esqueça, veja lá,

Que outro remédio não há,

P’ra tão grande sofrimento.


Com os meus melhores cumprimentos para todos, agradece o amigo mt.º obrigado, João Malheiro

24-VIII-51

“Com a publicação deste magnífico soneto e narração dos acontecimentos que estiveram na sua génese, pretendo apenas prestar a minha simples e modesta homenagem à memória de um inesquecível e Ilustre Amigo, que muito admirei.

“A sua apurada e admirável veia poética está bem patente neste maravilhoso soneto que guardo religiosamente há cerca de cinquenta anos e já recitei várias vezes em convívios de amigos. Ainda conservo o postal do correio que o Senhor João de Abreu Malheiro me enviou e onde escreveu, por seu próprio punho, este soneto. (…) esta preciosa jóia poética, de valor estimativo e até literário incalculáveis”.

O Tio João Malheiro teve três filhos rapazes do seu breve casamento com a minha Tia Lygia e uma rapariga do seu segundo casamento com a Prima Beatriz Maria. Conheci-os muito fugazmente, infelizmente, mas muito melhor a sua filha Milú, e temos privado ao longo dos anos.

Ele e o meu Pai foram amigos chegados, tantas vezes cúmplices naqueles transes de vida que tornam mais firmes os laços. Uns, de aventura e riso – outros, secretos e sérios. E eu sinto esta coisa estranha e profunda, de se ter amizade a Tios que se não conheceram.


A foto da Tia Lygia e do Tio João foi tirada na Póvoa de Varzim, em Maio de 1925, durante a sua lua de mel. 

   

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