Atlantis, Atlântida
©Manuel Cardoso
(...)
Oh mar! oh mito! oh sol! oh largo lecho!
Y sé por qué te amo. Sé que somos muy viejos.
Que ambos nos conocemos desde siglos.
(...)
Jorge Luís Borges
Obras no centro da cidade de Huelva, parque de estacionamento pago, calor e barulho ao abrir do vidro, sol fortíssimo a fustigar-nos como se não devêssemos estar ali, como se nos quisesse corrigir um equívoco na nossa rota. Fechámos o carro, pusemos chapéu de palha e óculos escuros, demos alguns passos no pavimento quente e entrámos, à procura de sombra e abrigo, no Café Central.
O passarmos essa porta, que empurráramos, foi um
súbito e inesperado virar duma página num livro de Borges.
Enquanto a Mariana foi lavar as mãos, um homem ao
balcão tirou-nos cafés de máquina que nos serviu nuns copos de vidro grosso e,
ao pousá-los, fitou-me com ar de velho conhecido. Calças de fazenda, camisa
branca e colete, cabelo grisalho com um leve ondulado dum quadro de El Greco –
ou seria dum mural de Creta? – mãos seguras mas dum tom de pele sem idade,
veias salientes de sangue muito escuro, ficou a olhar a porta por breves
instantes e, logo depois (quem o ouvisse diria que era mais uma frase duma
cavaqueira de horas), argumenta-me que sim,
Borges esteve comigo nas vezes em que veio a Sevilha, cúmplices nesses
momentos de imortalidade, tinham bebido vinho andaluz e desfiado epopeias dos
antigos povos do mar. Apesar de tudo, não pude aceitar como loucura uma frase
daquelas mas entendi-a como centelha do tempo, algo que tinha de ser dito antes
de se apagar. E logo a seguir veio outra: porque
eu tive de pegar no que havia, tivemos de pegar no que sobrou e fazer toda a
costa da Líbia e ir a Sais, contar derradeiramente todo o pavor que em dia e
meio tinha feito desaparecer a minha cidade, o nosso mundo! Os sacerdotes de
Sais tiveram pena de mim e dos meus, tão poucos, e fizeram, num por do sol, o
sortilégio de Neith, a quem agradaram as nossas oferendas, e tal me faz ainda
hoje estar aqui.
Crescia em mim um desejo de fazer imensas perguntas,
mas ele desenhou-me um gesto, como um maestro, com que me calou. A Mariana aparecia,
entretanto, ele disfarçou a breve conversa que tivera comigo e deu-me o troco
da nota que lhe tinha estendido, com desculpas, ainda por cima, por demorar a
fazer-mo!
Ficámos a olhar o ambiente e as paredes do café,
castiço com as cabeças de touros que as decoram, lidados quem sabe se por ele e
pelos seus, aviso de publicidade com fita-cola na parede, manuscrito, a pedir
uma empregada para um período de férias. Antes de sairmos ainda o considerei
mais uma vez mas ele estava já entregue a si próprio, eu já não existia,
tinha-se extinguido a minha ínfima participação na sua longa eternidade,
passava um pano num ponto do balcão, arrumava copos baixos dumas cervejas que
tinham sido bebidas com tapas. Ainda exclamou um gracias, Caballero! no momento de sairmos e, num relance
derradeiro, consegui surpreender qualquer coisa, na atitude, num gesto, não sei
bem, que me fez considerar ser verdadeira a loucura de ter estado de facto na
presença dum atlante!
Tenho quase a certeza de já ter sido relatada esta
história mas não sei nem onde nem por quem – talvez em algo que li duma
recitação dum serão ao luar, na Alhambra cordovesa de Ab-El-Rahman, ou, mais
verosímil, na corte itinerante de Afonso X, por um dos últimos jograis
moçárabes – e, por não me lembrar, a tal me atrevo, em palavras breves, seguindo
a afirmação do argentino de que a memória e o esquecimento, ou o mesmo pela
ordem inversa, são as duas faces do tempo – o ingrediente essencial dum mito.
Hatlo saiu da cidade com os seus três filhos rapazes
e os seus criados numa caravana de burros e mulas. Levavam odres com vinhos
perfumados, sacos de sal e fardos de peixe salgado, ânforas com azeitonas,
atados de panos do Egipto e tingidos com murex fenícios, caixinhas de unguentos
e pequenos potes de cosméticos. Levavam ainda, para si, água, pão, peixe e aves
de escabeche, que a jornada era longa e duraria uns dias, iriam ter de ficar em
descampados, nem sempre com gente por perto com quem mercar alimento. Depois de
o sol já ter passado um quadrante, viam, ainda ao longe, ao meio dia e para o
lado das Colunas de Hércules, a sua grande cidade com os seus palácios, os
navios ao largo que a demandavam ou dela saíam carregados de cobre, de ouro, de
estanho, dos mais finos e fortes bronzes, o brilho das suas muralhas revestidas
de metais e de refulgente oricalco. A primeira noite passaram-na junto a uma fogueira,
acesa por outros mercadores que vinham para sul a caminho da cidade ou do
templo de Hércules, que lhe ficava próximo. Foi a sua última vez de avistarem, quase
indistinto, o contorno da cidade, de lhe adivinharem a vida e o movimento, de
saudarem os deuses dos seus templos e estenderem a mão na direcção da casa onde
tinham ficado a mulher e as concubinas, as suas filhas, as criadas e criados.
A volta demoraria semanas. Tinham-se afastado para
norte, subido montanhas acima, até aos povos serranos onde haviam vendido tudo
o que levavam e comprado lingotes pesados de bronze que traziam em seiras de
esparto, no dorso dos burros e das mulas. Era um bronze precioso que os
artesãos iberos faziam em cadinhos com o segredo da Lua. Como nenhum outro. Um bronze
que se destinava ao templo de Poseidon, para o aplacar, já que oráculos
insistentes diziam querer desferir a sua ira. Os fundidores, esconjurados para conseguir
tal metal, soprando nos tubos de canas sobre as brasas para o derreter,
mantendo o bafo com os foles de pele que comprimiam com as mãos untadas de
sebo, recitavam as palavras monótonas com que invocavam deuses tutelares,
ignorando que, ao fim e ao cabo, estavam, sem saber, a marcar e libertar Cronos
da sua imobilidade, a fazer escoar o par e passo do tempo. “Que este bronze vai
ser só para Poseidon e este tudo fará para que vá ter consigo” – palavras do
chefe do povoado, entalando os lingotes entre palha macia e dentro das seiras
de esparto, levadas com ritual reverente para dentro dos alforges de cabedal
que as bestas carregavam.
No dia seguinte, já caminhavam há dois quadrantes
desde que o sol despontara, entravam numa brenha de sobreiros que bordejava o
rio, quando um ronco vindo do chão se sobrepôs ao murmúrio do rio, os burros
especaram, assustados, e eles, num espanto, sentiram tremer a terra, viram
desfazer-se penhascos e rolarem penedos para o vale, as aves voar
desorientadas. Mal refeitos do susto, logo voltou uma e outra vez o chão a
soltar os tremores de Poseidon… seria Poseidon?! e, finalmente, num espaço mais
longo, parecia que tudo voltara ao normal. Mas logo mais um tremor com ruído, e
outro mais drástico, inspiravam terror, atemorizavam os homens e desorientavam
os animais.
Foi, então, que Hatlo, olhando os céus e
dirigindo-lhes uma prece, sentiu um instinto sobre o pior e estugou o passo,
incitou os demais e rumaram mais rápidos a sul, ao seu destino de casa. Andaram
dois dias, faltava passarem a última colina que lhes vedava o horizonte. Sol já
alto. Um grupo vinha em sentido contrário, como outros com quem se tinham já
cruzado, brados altos, incoercíveis, palavras incompreensíveis. Que Poseidon
descarregara toda a sua ira! Que todos os deuses os tinham abandonado! Que o
nada (o nada?! Que seria o nada?) e o fim vinham aí! Fujamos! Depois houve mais
um que passou por eles, mudo, atónito, olhar no vago e no imperscrutável. E
ainda outros, trôpegos, incompreensíveis, a apontar para trás, chorando sem
lágrimas, batendo no peito, gestos de arrancar cabelos, apanhando terra do
chão, atirando-a ao ar, batendo na cara. Hatlo ficou cada vez mais apreensivo.
Que estaria para lá? Que queriam dizer todas estas pessoas?
O cimo da colina estava mesmo em frente, Hatlo aproximou-se
com os seus filhos, a sua caravana desordenada de burros e mulas com lingotes
de bronze nos seus alforges de cabedal e esparto. Estacou quando o caminho se
detinha também, magote de pessoas clamando alto e batendo de mãos no chão,
querendo ver o invisível, declive abrupto e novo a impedir a passagem, a
despenhar-se num abismo. Ao fundo, em todo o horizonte, não havia a cidade, nem
toda a terra em seu redor, nem os navios demandando o seu porto, nem as casas,
de entre as quais se destacaria a sua com a sua mulher, as suas concubinas, as
suas filhas, as suas criadas e criados, nem nada. Nada se via. Ao fundo, apenas
havia o mar. Um mar baço, indistinto nas ondas, antes ignorado naquela cor e
naquele som, marulhando como se fosse um acordar do desconhecido. O sol não
conseguia disfarçar um ocre de morte. Poseidon levara a melhor! Apenas havia o
oceano imenso que apagara a terra e se estendia até às Colunas de Hércules!...
Retrocederam de ao pé do precipício, de modo a
atingir a costa por entre dunas e arvoredo que cortaram a machetes, pelas
bordas de pomares agora sem donos, tragados pelo mar. De onde em onde havia
grupos, todos desesperados a clamar do trágico e desconhecido. Mortos, feridos,
indiferença e incapacidade perante o urgente. Desvanecia-se um mundo inteiro.
Que seria de si? Além, um grupo de onde se
salientavam homens de túnicas púrpuras, mulheres de branco. Um deles mais novo,
cabelo grisalho com um leve ondulado, mãos dum tom de pele tostada, veias
salientes de sangue muito escuro, como o seu. Tartamudearam uma breve descrição
dos acontecimentos, o mais novo dos quais explicitava. Tinham nadado, depois da
sorte de, entretanto, estarem numa embarcação que a corrente desfizera contra
destroços, junto à linha de costa, agora nova. Tinham vindo do templo de
Hércules, que uma primeira vaga, longa, de mar de fora, tinha banhado a ponto
de lhe tombar as colunas, desfazer as paredes, engolir para Poseidon. Que iriam
fazer? Hatlo deu-lhes alguns lingotes de bronze, promessas de um dia, devoção
por uma vida. Que os usassem para ofício e protecção, testemunho de respeito. O
mais novo, Cad, o de cabelo grisalho e ondulado que puxava para trás com um
gesto da mão esquerda, agradeceu o bronze, confortou-lhes o desespero,
sugeriu-lhes irem a Sais, de cujo favor e fé ele ouvira, até do próprio
Odisseus, a infalibilidade e o extraordinário.
Mais à frente havia um barco encalhado, jorrado bem
para longe da costa, companha desolada, vela grega e rasgada que era dos de
Odisseus, que o tinham perdido, que todos tinham saído junto da cidade, dias
antes do grande pavor, e eles tinham seguido para Ocidente. Depois, as grandes
ondas os tinham apartado. Mas não havia mesmo a cidade? Não havia mesmo a
cidade, Poseidon a submergira sob todas aquelas águas, ainda revoltas e cinzentas!
Estavam perdidos uns dos outros, abandonados. Da última vez que tinham avistado
Odisseus, ele seguia para o ocaso, na rota que ele demandava para um rio de
onde sabia correr ouro nas suas areias e haver estanho nos seus mercadores.
Hatlo, então, emudeceu, convicto da dimensão imensa
da sua desgraça. Toda a noite, de volta da fogueira, filhos após ele, todos os
nomes dos deuses dos templos da cidade foram invocados naquele transe aflito. Até
que emudecera mesmo, num estupor. E foram os filhos, já noite alta, que
pactuaram com o mestre duma embarcação para nela todos subirem e demandarem
outras cidades onde procurar resgate dos deuses para a sua situação desesperada.
Os gregos propuseram-lhes mais uma vez Sais, onde
oferendariam a Neith, e a Sais rumaram, dirigidos pela estrela Koshab semanas e meses a fio, com o Pai
mudo, olhos fixos, dentes cerrados, a não ser para a água e miolos de pão
ensopados, que lhe davam pelo canto dos lábios. A sua urgência mudara: do
impossível saber do destino da família desaparecida, para querer cuidar do pai
cuja morte selaria a sua condenação. Cad e alguns companheiros também se
associaram nesse destino.
Os filhos empenharam o seu bronze restante para essa
empresa, nessa rota, ir aportar ao acolhimento e protecção das sacerdotisas e
sacerdotes de Sais. Estes acharam favor no relato inaudito da sua viagem e do
que a motivara, a recontaram aos discípulos e aos devotos. De tais factos
extraordinários tinham tido, anteriormente, apenas um eco mas ainda não algo
concreto e contado em primeira mão e de viva voz. Agora palpável na sua
presença, na sua aflição, nos seus lingotes, fundidos por artesãos que sabiam o
segredo da Lua. Urgia serenar os deuses apeados de seu pedestal, mergulhados
nesse mar ignoto que engolira toda a afamada cidade de muralhas em círculo com
os palácios, os templos, as casas, os cais e a sua gente.
Nesses dias a benefício do pão, do peixe e dos frutos
do mar, da cerveja e das azeitonas de Sais, urgia-lhes recuperar a saúde do
pai. Com as abluções, com a inalação de fumos doces de ervas queimadas em
brasas de cedro, com a emersão na água do templo, com a companhia duma mulher que
uma sacerdotisa lhe trouxera, envolta num véu. Durante a noite final do recobro
ele sentira-a deslizando sobre si suavemente e exalando um perfume forte que o
fizera voar e regressar ao catre de madeira onde acordara, desperto e são, pela
manhã.
Hatlo e os filhos não voltaram a sair do Nilo nem a
flanquear as Colunas de Hércules, o resto da sua vida passou-se em Sais, a
coberto do bronze que tinham levado, a coberto do contar e recontar da sua
história, cada vez mais recôndita, cada vez mais um mito, cada vez mais
inesquecível, já que um mito é a melhor forma escolhida por uma verdade para ser
perene para toda a eternidade.
Ao fim de duas estações de cheias, um pequeno grupo
voltara para Ocidente, dirigido por Cad, o mais novo, o que tinha o cabelo
grisalho e ondulado. De tudo faziam no barco, inclusive remar nas calmarias,
segurar os remos de governo nas agitações mais fortes das ondas ou nos repentes
de Eolos, sob as ordens do mestre. Cruzaram-se receosamente com raros navios e
houve um em que lhes pareceu mesmo avistar Odisseus, à popa, também a olhar
para eles, mão em pala no sobrolho, capa esvoaçante de roxo. Seguiu cada um o
seu destino, não podiam agora confundir a sorte, ouvidos os oráculos de Sais.
Chegados para lá das Colunas de Hércules, aportando
numa costa desconhecida depois de saberem ter estado a navegar por cima do
desaparecido, empenharam-se em refazer o seu horizonte, palavra de Neith,
empregando sabiamente o seu já pouco bronze, guardando o mais duro para
testemunho, para um dia. Encalharam o barco na areia, montaram tenda e
estabeleceram-se na costa perto do preciso ponto em que Cad deixara, antes de
partir, enterrados bem fundo no chão mole dum montado[1],
os lingotes da oferenda que Hatlo lhe fizera antes de emudecer.
Gastara alguns deles com uns mercadores que passaram
em caravana, para comprar animais, tecidos, azeite e resina. Adquirira também
uma partida de escravas. Muito em breve sentiram o favor dos deuses. Os porcos
multiplicavam-se e em pouco tempo lhes deram abundância e prosperidade, as
ovelhas e cabras supriam-nos de outras carnes e de leite, de queijo e de soro,
de lã e de chifres, de peles curtidas com que forraram os abrigos e fizeram
odres. Alguns companheiros faziam-se ao mar, traziam peixe que secavam e de que
espremiam óleo. À formiga, iam adquirindo contas, pingentes, placas e lingotes
de cobre e pesos de estanho e chumbo que, de quando em vez, com a vinda dum
barco fenício, trocavam pelas mercadorias exóticas que preenchiam o esplendor
da sua nova vida, a atracção e negócio com os povos do interior. Mas Cad sempre
guardara, escondidos, alguns dos lingotes, muito poucos, do bronze de Hatlo, do
que fora fundido com o segredo da Lua. Um bronze que ganhava mistério e força,
reverenciado pela memória de todos, um bronze que deveria ter ido – mas não
fora – ter com os artesãos de Atlantis para forjar votos no templo de Poseidon.
Para muitos uma memória incerta e lenda recôndita, passariam
muitos séculos até ser desenterrado esse bronze.
No tempo em que as caravelas, as naus e os galeões
se faziam aos mares do Ocidente e do Índico, das oficinas de metalurgia de
Sevilha de Juan Morel e do seu filho Bartolomeu saíam os mais fortes e
manejáveis canhões de Espanha e os sinos de mais sonoro timbre de que se
orgulhavam os carrilhões dalgumas igrejas. A Casa da Contratação das Índias providenciava-lhes todo o cobre e
estanho necessário e nos seus fornos de fundição e moldes se formavam, apurados
depois a maço e polimento, artigos de fama cobiçados por todo o mundo. Não
havia segredos para pai e filho no que aos metais dissesse respeito. Por isso, Bartolomeu
ficou atónito ao olhar para aqueles lingotes de bronze antigo. Nunca tinha
visto tais. O tom, o brunido tão belo, imaculado, sem verdete que o tingisse! Quem
lhos depositara em cima da bancada de trabalho, um homem estranho, saca de
cabedal a tiracolo com algo pesado lá dentro, de cabelo grisalho e ondulado que
apartara para o lado com uma mão ossuda e grande e em que se salientavam veias
escuras, fizera-o com um cuidado religioso. Trouxera-os um a um, dos alforges
duma mula que tinha ficado à porta, ainda envoltos num tecido grosseiro com que
os disfarçara dalgum salteador, e desembrulhara-os de forma meticulosa,
afagando-os ao procurar uma posição em que não ficassem a oscilar. Batera com
os nós dos dedos em cada um, som seco, bronze,
é bronze! Perceberam que ele não estava para grandes falas, não explicava
de onde vinha aquele metal naquela forma rara. Sei que os senhores são os melhores e vivemos tempos de começar a
descobrir o que tem estado escondido. Como faz o Imperador![2] Saúdes de vinho em
canecas de estanho, nem por isso conseguiram tornar mais loquaz o visitante
que, ainda por cima e para maior surpresa, confidenciava deixar pro bono aquela mercadoria, na condição
de ser usada na estátua de Poseidon que estava para ser feita para os jardins
do Alcazar e na de Atena para o catavento do Colosso da Fé Vitoriosa que iria encimar a torre de Santa Maria…
mas Morel via aí dificuldades: ninguém lhe entregara qualquer encomenda para
qualquer Poseidon para o Alcazar e a dama para o colosso da torre tinha um
desenho já feito e já se trabalhava no molde! E… não seria Minerva?! Um dos
ajudantes dos Morel apressou-se a esclarecer que, para muitos poetas, Minerva
era Atena… Então fariam um tridente! Sim, um tridente para quando alguém
encomendasse uma estátua de Poseidon, tridente que colocariam apontando para um
azimute entre o meridião e o ocaso! E a Atena colocariam uma coroa, uma coroa
que ele trazia ali… e desembrulhou um último atado de tecido escuro e untuoso,
retirando de lá uma coroa brunida de trifólios e esferas. Que o resto do bronze
ficaria para pagamento de todo o mester.
Não sabemos – só a posteriori notei que ficaram
muito incompletas as minhas anotações sobre esta reunião na oficina – o que lhe
terá respondido Bartolomeu Morel, nem como a coroa trazida por Cad foi parar in solidum à cabeça da giganta de Sevilla, mas o catavento mais
célebre de todo o Ocidente gira na sua torre ostentando um bronze de patina ímpar,
dum cobre quase puro reconhecido por todos os técnicos que o têm analisado.
Nalguns bares do Bairro da Santa Cruz ainda procurei alguém que – tinham-me
confidenciado que haveria quem – me confirmasse se seria autêntica a versão de
que a coroa teria sido originalmente feita por um alquimista que Cad procurara,
com fama de perito fundidor de Toledo, e que viera trabalhar para uma estreita
rua de Jerez, forjando navalhas. Não o consegui. Tal como ficou por se saber,
verdadeiramente, da história deste se ter revelado um charlatão, que entregara
a Cad a coroa mas, indagado sobre o resto do bronze, lhe mandara dar de troco
uma sova por dois brutamontes a soldo, que o carregaram no dorso da mula e a
açoitaram para que seguisse à desfilada pela estrada de Sevilha.
Uma das grandes qualidades de Homero foi a sua
cegueira, que lhe permitiu ver todo um mundo que, se o observasse fisicamente,
teria ficado limitado na sua geografia e no seu tempo. Esta qualidade dos
escritores poderem captar muito para lá da sua circunstância em espaço e em
tempo, tem sido notável sobretudo naqueles, com dificuldades evidentes de
visão, que ousam fazer uso dela e nos dar o privilégio de dela participarmos.
Dessa maneira Borges nos deu a visão do Aleph,
da profunda eternidade e de todo o vasto orbe do esquecimento onde se encontra,
ao fim e ao cabo, toda a história. Era com essa visão que Torrente Ballester,
sentado no Novelty ou à sua porta,
encarava a Plaza Mayor como se fosse
a ágora de onde os seus olhos com lentes de fundo de garrafa abarcavam todo
esse mesmo mundo. Era com essa visão que Borges reconstruía o tempo e o
infinito a partir de cada folha e letra de cada livro, mesmo das intangíveis,
corroídas, fugazes como as do Livro de
Areia. O sangue dos heróis de Tróia serviu de tinta às palavras que Homero
não escreveu. Ballester preferiu a luz. Talvez por ser tão coada e especial na
Galiza, tão forte e crua ao reflectir-se no chão molhado da cidade dourada,
depois duma bátega de trovoada de Verão. Com aquela luz, ao olhar a Sul,
entreveria a Atlântida? Borges usou a água do mar: há sempre um marulho
contínuo ao lê-lo, ao ouvi-lo, ao observar a sua expressão fluida do tempo
inesgotável. Nesse marulho intuía as línguas com que falavam inenarráveis
marinheiros antigos. Quando pensamos em Homero, é possível idealizarmos que ele, ao ajeitar a capa antes
de tomar a palavra, estendendo a mão no assomo de a proferir, se voltasse para
Ocidente, para as Colunas de Hércules, para a rota de Odisseus – como saberia,
onde era o ocaso? Há um pormenor numa célebre foto de Sevilha em que aparecem
Borges e Ballester na esplanada do terraço do Hotel Doña Maria, com a Giralda ao fundo, que é um testemunho da
permanência do tempo ou, se quisermos, da inexorabilidade de este ser o
verdadeiro e único testemunho de transes da Humanidade: no último plano está o colosso de bronze em cujo metal estará
uma ínfima mas significativa parte do que Hatlo levava para Poseidon e que Cad
terá entregue a Morel. Se esse bronze tivesse chegado ao seu destino, teria
sido submergido e estaria hoje sob a areia, num ponto para o qual, em dias
precisos do Verão, se diz que aponta a pluma do Giraldillo, seja de onde for que sopre o vento. Borges e Ballester
saberiam?
A Mariana e eu entrámos na Cervecería Giralda, na Calle
Mateos Gago, o arqueólogo e catedrático de teologia que não suportava os
argumentos dos evolucionistas, mais para cumprir um acto do que para comer
tapas àquela hora, deixada vaga pelos andaluzes para a sua sesta. Apenas umas
estrangeiras, a um canto, apreciavam copos de vinho branco sorrindo para si
próprias, com graça. Queríamos respirar ali algo duma outra atmosfera. Pedimos
água e cafés solo. Sentados nas
cadeiras de madeira, chão quadriculado e paredes de azulejos polícromos de
estilo mudéjar, cabos de electricidade torcidos com suportes de porcelana como
nos anos vinte de há um século atrás, arrefecendo do calor das calles de Sevilla, era como se
estivéssemos metidos num singular caleidoscópio que nos remetia para a frescura
dos antigos banhos árabes que funcionaram naquele local, sob outras abóbadas
apoiadas noutras colunas. A nossa ida ali poderia ter ficado por uma
peregrinação poética de tentativa de escutar os ecos das tertúlias que se
juntaram nas mesmíssimas mesas de tampo de mármore, ao longo do quase um século
de história do estabelecimento. Mas aconteceu que fotografámos, com o
telemóvel, o breve diálogo encaixilhado com o nome de José Maria Asprón Gómez,
o asturiano que em 1943 converteu o Bar
Español em Bar Cervecería Giralda,
e nisso fomos observados por um sujeito que estava à porta. Que nos disse, quando
estávamos a sair, numa frase proferida cheia de empenho num castelhano
fortemente tingido de andaluz, que, de diante daquela porta, ali, no meio da
rua, muitos tinham sido os que vendo El
Giraldillo apontando para sudoeste, apuravam o ouvido porque lhes parecia
ouvir, distante mas muito preciso, o som do mar e um ruído cavernoso e antigo.
E que em certos dias de verão, sempre os mesmos se se considerasse o calendário
da Lua, fizesse o vento que fizesse e viesse donde viesse, El Giraldillo apontaria para sudoeste, imperturbável, para
sudoeste, indiferente…
Vendo a nossa cara de espanto, um empregado
interveio para que não temêssemos, que ele era assim, repetidor dessa palabrería, esa lilipollada…
Quase o desequilibrou, puxando-o para dentro ao
pegar-lhe no copo que tinha na mão, mas educadamente e com respeito,
sugerindo-lhe voltar a dar-lhe mais uma caña,
com certeza para o desviar da nossa atenção e para que não nos importunasse.
Já ao por do sol, nesse mesmo dia, ainda voltaríamos
a passar por ali, considerando a torre de La
Giralda, no cimo da qual estava El
Giraldillo. Apontava para sudoeste, apesar de correr uma baforada quente de
norte...
Latães, Verão 2017
[1] Dehesa, no relato que ouvimos.
[2] É
misterioso e não conseguimos descortinar como é que terão chegado ao
conhecimento dum recôndito povo do Golfo de Cádiz, no século XVI, duma forma
tão esclarecida, os motivos expostos no capítulo da Ordem do Tosão de Ouro que
se reuniu em Bruxelas em 1516 e em que Carlos V terá assumido o seu moto Plus
Ultra, implícito nas palavras de Cad na oficina dos Morel, que o
imperador usaria, escrito numa lista enrolada nas Colunas de Hércules do seu
brasão (e que hoje sobrevivem nas armas do Reino de Espanha). Tão misteriosa
como isso foi a fundação da própria Ordem, no âmbito do casamento duma
portuguesa da Casa de Avis, Isabel, filha de João I e de Filipa de Lencastre,
com Filipe de Borgonha, em 1429. Notável é a sua sobrevivência à rasoira de
1914-18, que tentou anular toda a velha (diziam eles…) ordem das coisas. Há quem diga que o Plus Ultra, uma
metafórica alteração das palavras lendárias inscritas nas lendárias Colunas de
Hércules da Antiguidade, NON PLUS ULTRA, se referia não a África nem às
Américas mas a algo mais longínquo, entrevisto por Carlos V…
4 comentários:
Ser escritor não é uma opção, é de nascença e para toda a vida.
Espantoso este conto. Ainda só o li uma vez mas é imperioso que seja lido várias, para apreender tanta, mesmo tanta, informação. Começa em Huelva, a que existia 300 anos AC, a tal que foi destruída junto com Lisboa pelo terramoto de 1755 e fala logo de uma catástrofe idêntica há milhares de anos, na idade do bronze. Passa pelo Egipto e retorna depois ao século XVII, cheio de evocações e mitos pelo caminho, tão herméticos e densos que é um deleite compreem-los. Julgava abandonado o "Drive im My Country". Descubro agora que está cheio de textos preciosos que me vão deliciar. Obrigado Manuel.
Li e apreciei. Estilo límpido, preciso e conciso, harmonioso, a valorizar actos simples do quotidiano que inscreve com naturalidade na narrativa mais elaborada. Abraço
Li com gosto e muito apreciei o estilo sonoro, preciso e conciso, que muito valoriza actos simples do quotidiano e os incorporar, com harmonia, na narrativa culta e elaborada.
Abraço
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