domingo, 7 de novembro de 2021

AZEITE 2. O preço das azeitonas

Em Elvas, em Abrantes, em Torres Novas, em Montemor ou em Évora e noutras cidades e vilas do Sul, havia em cada uma um ponto fulcral de discussão e acerto. Em Trás-os-Montes, há meio século, era no círculo do Mira, do Paulino, da Caixa Geral de Depósitos e das esquinas do pequeno largo da Pensão Praia, em Mirandela, com um vai-e-vem de atravessar a rua no meio do trânsito (passavam ali mais de metade dos veículos do Distrito!), que entre lavradores, negociantes, informadores do Cachão, candongueiros, chapéus, apertos de mão e samarras, ao frio, vozes e olhares, sob sombreiros abertos se a chuva insistia, se fazia, nas últimas feiras do ano, definitivamente na de 23 de Dezembro, o preço da azeitona da Terra Quente. Os vidros embaciavam e o fumo do tabaco, misturado com o vapor das máquinas de café, davam uma atmosfera de lagar ao Mira e ao Paulino, a que as botas acrescentavam o cheiro. À mesa ou em pé, ao longo da manhã, fechavam-se negócios, com argumentos da funda que constava que já tinham dado os bagos dos olivais de S. Pedro ou dos do Cabral de Guribanes, que em Abreiro isto ou na Torre aquilo, ou com mitos de compradores fantasma. Havia alguns pequenos lagares que já moíam desde a Santa Catarina e as filas para descarregar nas Cooperativas e no Cachão já se iam formando no seu ritual anual (que com estas o preço era outro, o rendimento só no fim da safra se determinava por médias e os escudos e tostões só eram fixos quando o azeite saía, às vezes mêses após, podendo os lavradores por conta ir levantando produtos para grangeio ou alguma importância para despesas prementes).

Com os lagareiros, o dinheiro começava logo a girar. Em Macedo havia dois, três e quatro preços diferentes, conforme: o Cóque adiantava, às vezes ainda antes do Natal, simpático, em preços fixos por baixo, em notas, conversadas no Café Central, sobre olivais de que sabia os rendimentos de memória de campanhas passadas; o Artur Moreno era mais circunspecto e, até, quase secreto nos complexos negócios de acertos de contas para os quais a azeitona era apenas o lastro ou a garantia; os de Castelãos, de Chacim, dos Olmos, de Lagoa, de Vinhas, de Peredo, do Lombo, de Morais, de Talhas, dos Cortiços, tantos outros, valiam-se da premência dalguns proprietários em traduzir em metálico a sua melhor azeitona, levando a outra para as tulhas das Cooperativas ou do Cachão. E notava-se que o dinheiro já corria em sentido inverso ao do azeite quando a afluência e o tom ficava mais animado nas vozes no Germano, no Flórida ou no Tótó, no Campos de Vila Flor, no Saldanha de Peredo ou no Montemel em Macedo. Coisa algo diferente mas também parecida era o que se passava em Alfândega, em Moncorvo, em Freixo, em Mogadouro, onde os primeiros valores eram sempre díspares por causa dos negócios em grande de casas maiores mas, depois, ao terminar o ano, vinha o diapasão da feira de ano, fazendo eco no Montanha ou no Central de Moncorvo: em Mirandela corre a tanto! E, a partir daí, o valor da safra deixava a discussão dos lavradores e passava mais para a dos azeiteiros e negociantes de grosso trato. 

Passava para estes, com o lado divertido ou por vezes dramático que criava histórias e lendas de negócios, tão abundantemente bem sucedidos, que a euforia os levava a escoarem-se nos casinos de Espinho ou da Póvoa ou com pasodobles e tangos, dançados com espanholas em Verín, em Vigo… que não começavam ao acaso: havia anzóis com engodo para fisgar estes peixes mais graúdos quando em trânsito na ronceira Nacional 15, a caminho de Rio Tinto, colocados expressamente em restaurantes já para lá do Marão, em Amarante ou na Lixa, lábios pintados e olhar fulminante, amostras em que só um truta muito seguro de si não deixaria de trincar. E ainda os negócios mais discretos e rendosos dos carregamentos de bidons de 200 litros, às dezenas e centenas, que atravessavam a fronteira miraculosamente invisíveis, em camions que, jurados não ter saído de casa em Macedo nem de nenhum armazém de Mirandela ou de Rebordelo ou das Lamas, tinham feito meia dúzia de horas de quilómetros cobertos de oleados verdes, com as cargas saldadas em Benavente. O câmbio da peseta era estável e, por isso, a repercussão do preço da feira de Mirandela era verdadeiramente internacional. Não por acaso o velho Granjo, meu amigo, em Macedo, e outros em Mirandela, tinham sempre notas do Banco de España disponíveis para as passar, gordos maços nos bolsos de que as contavam, uma a uma, e no-las davam para a mão a troco de escudos, quando as precisávamos para ir a Zamora às tábuas ou aos caramelos. 

Estivesse a chover ou tivesse caído a mais severa geada, houvesse temporal ou fosse uma manhã de sol de Inverno, a feira de ano dos 23 de Dezembro em Mirandela era infalível para os lavradores, fossem eles de Vale de Asnes ou de Vale Benfeito, de Valbom ou da Bouça, de Grijó ou das Múrias, de Suçães ou de Alvites, de Abambres ou Lamalonga, de Ala ou Vila Flor, de todo o lado: a convergência unânime na vila do Tua, nesse dia, traduzia o tangível valor das azeitonas no seu preço em dinheiro,  escasso. 

1 comentário:

Eduardo Botelho disse...

Manuel,
Bem descrita a safra da azeitona e do seu escoamento. Ouro para a nossa região e levada para tudo quanto é sítio pela excelência da sua qualidade.
Havia comerciantes que vinham de Oliveira de Azeméis comprar azeite aqui a Mirandela. Nos anos 50 e 60, havia um que comprava muito azeite. O seu nome era Eduardo Correia da Silva. Era o meu pai que lhe indicava os produtores.
Também ainda é presente uma construção, onde funcionou um armazém de mercearias, em frente à velha moagem de S. Sebastião, que era propriedade do Porfírio de Morais, que negociava muito azeite da nossa região. Chegava a ter nesse local muitas dezenas, senão centenas de bidons de 200 l.
Os velhos lagares em Mirandela, no S. Miguel, na rua do Rosário, na subida para o Bairro Operário e por trás do actual Continente eram alguns sinais de produção na nossa terra.
Depois, as dezenas de lagares existentes nas aldeias do concelho, que permitia a obtenção de vários tipos de azeite devido ao processo de fabricação.
Um abraço