quarta-feira, 21 de maio de 2025

Água, a senhora dos montes

Manuel Cardoso*

Mirandela, 21 de Maio de 2025

Comunicação em nome da CAP na sessão do Workshop de Agricultura e Alimentação, sobre Sustentabilidade e Tecnologia da Gestão da Água em regiões de Montanha, Plano de Água, integrado no SUSTEC – Associate Laboratory for Sustainability and Technology in Inland Regions

 

 [introdução sem mais]

Estamos sentados nesta sala cerca de 5 a 6 m3 de água. Espero que todos tenhamos consciência deste facto e da importância de manter essa água equilibrada, com a temperatura correcta e elementos em solução na proporção certa, e com a necessária polaridade eléctrica. A água é um dipolo permanente e é esta característica, que lhe é conferida pelas cargas de 0- e H++, que faz com que tenha as extraordinárias propriedades essenciais à vida, a começar pela interacção com os sais e as proteínas.

Apesar de vivermos aqui no interior, em Trás-os-Montes, onde criamos galinhas que matamos para comer e acendemos uma fogueira para assarmos uma posta de carne que pingue no pão, tal como os nossos antepassados pré-históricos, porque gostamos de coisas boas, simples e autênticas, como o nosso vinho, o azeite, o queijo, os enchidos, sabemos o que é a água e o que vale, nos seus conceitos científicos e económicos mais modernos.

Os que aqui vivemos não somos nada como a mentalidade urbana instalada nos retrata tantas vezes, a de arcaicos gastadores de água, que a tem em excesso e que a usa mal. Bem pelo contrário: nós cuidamos muito mais da água e da natureza no nosso dia a dia e temos sofrido com a sua falta. Precisamos de mais investimentos para a reter em mais e novas albufeiras, para a usar a partir dessas e das hidroeléctricas que existem, limitados como fomos de o fazermos, pelos políticos que têm privilegiado o litoral e o Sul, até agora.

[cumprimentos e agradecimentos]

Muito boa tarde a todos, é muito bom podermos estar aqui a conversar sobre água e foi com muito interesse que ouvi as intervenções anteriores, que saúdo, e que espero sejam frutuosas em conseguir mais água e mais áreas de regadio para o Interior Norte de Portugal.

 




1.     Quando aprendi a regar batatas não sabia nada do que acabei de dizer. Eu era ainda muito pequeno, tinha um sacho com tamanho a condizer, esperava que a água viesse a correr a partir dum rego, primeiro num sulco construído por pedras de granito, duma nora, que um macho ou uma vaca, era conforme, accionava horas a fio. Era um fascínio todo aquele movimento das rodas dentadas, os alcatruzes presos uns aos outros subindo do poço misterioso e pingando água com um barulho fresco, que a vertiam na lata aparadora com uma calha e daqui corria continuamente até à horta. Sob o olhar da Irene ou do Senhor Silva electricista, que traziam a horta à renda, eu podia ir fazendo e desfazendo um a um os pequenos montes de terra que serviam para a ir distribuindo para os diferentes sulcos das batatas.

2.     Abundando na horta e onde tinha a sua rotina de horas certas, os alcatruzes içavam a água até que já não havia mais para esse dia. E tenho presente a imagem em nossa casa, na vila, onde faltava: no Verão apenas circulava em poucas horas, e a pressão não dava para accionar um esquentador, na maioria das vezes. Recorria-se, então, a um poço no quintal, com uma bomba de volante, aspirante-premente, que a fazia ir até a um depósito sobre o telhado da casa e de onde, por gravidade, a canalização a trazia à cozinha e à casa de banho. Mas sempre contada, economizada, na tentativa de não faltar absolutamente e de, em Setembro, ainda a haver, até chegarem as primeiras chuvas de Outono, em anos com sorte.

3.     Vem isto a propósito de dar uma ideia, neste Workshop de Agricultura e Alimentação, intitulado muito oportunamente Sustentabilidade e Tecnologia da Gestão da Água em regiões de Montanha, de que nesta região trasmontana, no interior de Portugal, sujeita a extremos climáticos (nove meses de Inverno e três de Inferno, diz bem das nossas amplitudes, hoje ampliadas pela evolução do clima nos últimos tempos) e com uma geologia e orografia tais que nos dizem que estará em desertificação, tal como o Sul do País, é ancestral e está-nos intrínseca a cultura da economia da água e a sua consideração como um bem precioso e essencial. A água sempre foi entendida por nós como factor de segurança alimentar, e as diferentes formas de nós lidarmos com ela, os açudes e os moinhos (onde também tomávamos banho e nadávamos), os rios e ribeiros correntes (em que também pescávamos), as fontelas (que serviam para as vacas beberem nos lameiros e para se ir fazer uma espera aos javalis), todas as formas em que quiserem pensar, da bilha dos segadores e jeireiros à jarra de cristal nas mesas fidalgas, do cantil dos caçadores e pescadores à garrafa de água mineral comprada num supermercado ou num café de aldeia, a água sempre foi, para nós, trasmontanos, sinónimo querido dum bem útil e precioso.

4.     Até para a paisagem, onde o deleite (quem nunca esteve no Verão sobre uma manta de riscas à sombra de freixos num lameiro, copo de vinho, merenda, conversa de olhar fulminante, não entende o que é uma das melhores fruições da paisagem em Trás-os-Montes!) e o útil se misturam com o cheiro dos mentrastos, vacas ou ovelhas a pastar, rega de lima silenciosa a deslizar por entre fenos e flores.

5.     Na nossa cultura rural da água sempre coube uma dimensão estética, intuitiva na maioria dos casos, capaz de despertar saudades sem dela se sentir a distância a não ser quando a distância era medida a partir da emigração para a cidade ou para outros países. Só que esta dimensão estética aparecia e aparece sempre unida à sua função principal: a de assegurar a nossa sobrevivência. Mais ainda: a de assegurar a nossa sobrevivência numa região de onde muitos têm saído e para onde poucos, muito poucos, têm vindo – a não ser episodicamente, para turismo ou em funções oficiais.

6.     Muitos, imensos, saíram de cá, de Trás-os-Montes, por causa da água, ou melhor, por causa da falta de água. É que sem água não é possível a produção de alimentos, não é possível a produção rentável de alimentos e, sem isso, não é possível a quem queira produzir para si os seus alimentos, conseguir gerar um excedente que lhe permita ter o rendimento para sobreviver dignamente nestes montes.

7.     Fico capaz, por isso, de dar logo um murro na mesa (embora a vontade fosse a de dar um murro mais eficaz, tão cansado já estou de ouvir dizer asneiras sobretudo aos citadinos que do campo só têm a sua visão preconceituosa, por muito científica que seja, mesmo muito preconceituosa e teórica!) quando ouço a expressão de que “a agricultura gasta muita água” porque essa expressão revela um enorme desconhecimento da cultura da água, da vida das pessoas do interior do País, do processo de transformação da água em alimentos usando micro e macro-nutrientes e DNA. Mas fazendo isto sem ser hidroponicamente, fazendo isto ao mesmo tempo que se cuida da paisagem, se evitam condições para os incêndios florestais, se protegem ecossistemas, se combate o despovoamento e se evita ir aumentar o congestionamento das cidades. A utilização da água pela agricultura conserva o planeta. A agricultura recicla continuamente. A agricultura não gasta: transporta água para cada um poder tê-la no pão, nos biscoitos, nos frutos, na carne, no café e no chá. Para cada um poder tê-la, e em qualidade, ao estar sentado neste auditório.

8.     Nunca poderemos viver aqui nos nossos montes se não tivermos água.

9.     Desde os anos sessenta do século XX que, em Trás-os-Montes, começámos a ter formas modernas de reter a água da chuva e a reconduzi-la aos campos com a construção dos primeiros regadios modernos, possibilitados pelas primeiras barragens agrícolas  e instalação de perímetros de rega. Há que prosseguir este trabalho e mormente hoje, em que estamos em despovoamento acelerado e em desertificação geográfica patente.

10.          No documento Água que Une, que a CAP saudou desde a primeira hora, espera-se que agora sejam integrados os contributos que lhe foram aduzidos na consulta pública, quer pela CAP quer pelas associações locais como a ABMC, a ADVID, a APPITAD, e nacionais como a FENAREG, em que há um foco em Trás-os-Montes (muito menorizados na sua primeira versão) e com a imperiosa necessidade de novas origens de água em barragens e albufeiras e mudança de estatuto das hidroeléctricas existentes.

11.          O argumento muito usado nalguns organismos oficiais para desmotivar ou menorizar estas pretensões (o de que no Aproveitamento Hidroagrícola de Macedo de Cavaleiros ainda há terrenos infraestruturados com rede de rega e que os agricultores  não utilizam a água disponibilizada) não colhe, pelo facto de que tal perímetro de rega ter sido idealizado para um modelo de agro-pecuária que o próprio Estado condenou a partir do momento em que mandou parar os investimentos PDRITM e a abandonar a construção de SCOMs, na transição dos anos oitenta para os noventa, bem como fez cessar, aos agricultores, a produção de leite no vale de Macedo de Cavaleiros-Castelãos-Carrapatas-Cortiços e em Vale da Porca-Valdrez-Salselas. Temos, assim, centenas, ou milhares de hectares infraestruturados, que seriam bons para pastagens e forragens, à luz do que eram as intenções dessa altura, mas não para culturas permanentes. O paradigma da agricultura de hoje é o de culturas permanentes, em especial o olival, a par de algumas hortícolas e fruteiras, cuja base de implantação é diversa da que foi infraestruturada no início dos anos 80 do século XX, para outra visão e modelo que, repetimos, o Estado mandou parar.

12.          Compete ao Estado corresponder às aspirações de desenvolvimento das populações, resilientes numa paisagem em abandono e que estará condenada se não dispuser de água, afectadas como estão pela desertificação geográfica e pelo despovoamento por fuga dos mais novos. Compete ao Estado corresponder às iniciativas de investimento de que tem sido dado exemplo pelos particulares, visíveis nas novas plantações e na construção de inúmeras charcas. Compete ao Estado dotar de equipamentos capazes de, no futuro próximo, poderem suprir de água em quantidade suficiente todas essas charcas e perímetros privados de rega que, a não serem articulados pelos investimentos públicos, estarão, seguramente, comprometidos e virão, num futuro mais ou menos próximo, a ser inviáveis. Compete ao Estado não ser omisso e mandar incluir na Estratégia Água que Une os instrumentos necessários, financeiros, de planeamento e de governança, para garantir o futuro da nossa região.

13.          Sem água e sem se preverem investimentos em água para a agricultura, são vãs as afirmações políticas de querer promover a coesão territorial e dar sustentabilidade ao interior de Portugal.

14.           Podem contar com o nosso papel de ocupação do território e sermos resilientes no povoamento dos nossos montes e montanhas, desde que possamos contar com o papel do Estado em construir novas barragens, permitir-nos a utilização da água das albufeiras que existem e construir novos perímetros de rega, modernizando ainda as redes já instaladas.   

15.          Pela nossa parte, lançando mão dos mais modernos métodos de monitorização da água nas culturas, como já o fazemos em numerosos pontos do nosso território, com sondas, com drones, com satélites, e de termos uma boa gestão e economia na sua utilização, como os sistemas gota-a-gota ou a micro-aspersão, e todos os outros processos associados que não desconhecemos, esforçar-nos-emos para que a água, a senhora dos nossos montes, se mantenha como fonte da permanência e vida no nosso território. Mas não bastam as tecnologias de gestão, só teremos sustentabilidade nos nossos montes e montanhas se, para a nossa agricultura e vida, dispusermos de água.

Muito obrigado.

 

*Manuel Cardoso, consultor, representante da SMC - Sá Morais Castro, na presidência da ABMC, Associação de Beneficiários de Macedo de Cavaleiros

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