© Manuel Cardoso
Por sugestão do então meu Executive
Advisor Jorge M. Fonseca, escrevi mais duma dezena de artigos para um site,
newmen.pt , entre Novembro de 2022 e Julho de 2023.
Considerando que os mesmos
deixaram de estar online sem explicação, aqui os coloco republicados, revistos
e anotados, já que, entretanto – e felizmente! – foram referidos
noutras publicações e, assim, poderão ser repescados, por quem faça buscas
relacionadas na net. Como digo, foram para aqui transcritos, revistos e
anotados pelo que poderão não estar ipsis verbis em relação à sua
primeira publicação. Alguns contêm hiperligações.
Estão pela ordem cronológica com que
nesse período foram colocados online, excepto os dois últimos, trocados por uma questão de lógica de arrumação aqui.
O título deste post, Copo de Cocktail Newmen, está relacionado
com o sortido dos temas abordados. Algo caótico, como caótico é o objectivo
polímato deste blogue! Estão sob um mesmo chapéu, aliás, confinados num mesmo
espaço, o dum copo de cocktail, que se agita, porque o seu destino era só um:
poderem ser bebidos, digo, lidos, por um público que os pudesse ter como
denominador comum de interesses, o mesmo é dizer, gosto requintado por coisas
apetitosas. Que os pudesse ter, não!: que os possa ter!
Espero que gostem!
Trincar porto com Bach e bolo de noz
Novembro 2022
Uma amiga minha que tem justo orgulho nos seus vinhos[1] manda-me, de vez em quando, as notas publicadas que sobre eles aparecem neste jornal ou naquela revista. Normalmente por whatsapp. A minha sensação é a de que quem escreve é extremamente injusto para com esses vinhos – como o é para os demais. Porque se usam as mesmíssimas palavras, os mesmíssimos adjectivos, os mesmíssimos substantivos e advérbios, que se repetem até à náusea, sobre cada um e todos eles. De modo que muitas notas de prova, para mim, vulgar leitor, acabam por nada dizer de distintivo, por nada caracterizar de objectivo sobre tais vinhos. Poderíamos fazer um exercício de trocar nomes, rótulos e castas de muitos deles que o resultado prático de informar, de opinar, de fazer marketing multiplicativo é pouco ou nenhum, numa boa parte dos casos. É quase sempre a mesma coisa.
Há muita monotonia na informação e publicidade dos vinhos portugueses. Há demasiado falar para dentro, para os que fazem parte do negócio ou fazemos parte da sua informação, esquecendo-se o público de fora. Há muito investimento em vocabulário especializado e acções dedicadas para dentro do sector, muito pouco para fora do sector, para os leitores ou potenciais novos consumidores. A responsabilidade não é de quem escreve ou de quem faz as campanhas de marketing: é de quem encomenda o que se escreve e de quem paga as campanhas de marketing. Umas voltinhas na net e umas vistas de olhos no que se passa noutros países (chamem-me provinciano, mas não me importo: imitar o que os outros façam de bom e corrigir o que façamos de menos bem, sem excluir a nossa criatividade, não é provincianismo, é outra coisa) pode dar uma ideia das diferenças de sucesso na captação de público e de consumidores jovens.
Quando desliguei o telemóvel da chamada com o Jorge Marques, em que me convidou a escrever artigos para o site Newmen, o sol a entrar pelas janelas da sala e a lareira acesa faziam morno o ar em contraste com o de lá de fora, Outono instalado. Cliquei no botão da Netflix e fui apanhado de imediato pelo primeiro som: Erbarme Dich, Matthäus Passion Stories, filme/documentário holandês que me pregou ao écran e me fez viajar no tempo, solista da primeira voz do coro do colégio, cantando na Sé Nova de Coimbra o Ertzlibster Iesu, há mais de cinquenta anos. Para trás e para a frente com o comando, repassando momentos e testemunhos, ampliando sons, cada vez mais sem posição no sofá, emoções e saudades. Fui buscar um bolo de noz já encetado (que na véspera a Mariana e o Miguel tinham feito) e cortei uma fatia para um prato (não é dumas nozes quaisquer mas das duma nogueira do Lameirão de Macedo, com pedigree do Morgado de Oliveira, que a nossa querida amiga Marília esmera – e tudo isso se lhe nota na consistência do miolo, na essência da noz que se conserva no bolo e cujo travo se liberta ao trincar). Pus um tawny 10 anos da Quinta da Silveira num copo largo de pé (não me venham com a ideia sonsa de que o porto só se deve beber nos cálices estreitos de entalhe do Siza…), de que só o aflorar já inebria. Bach, repetir, garfada, porto nos lábios. O som da televisão e o sol a inundar tanto a sala como o aroma do porto, que acrescentei, encharcando as fatias do bolo de noz. Fui escrevendo no bloco de apontamentos, palavras soltas, frases, até uns parágrafos, traços jesuítas com as marginalidades da vida, os farrapos feitos esquecer, mas que estão sempre na arca à espera duma costura, a intrínseca utilidade do que é desprezado. Talvez do porto, talvez do morno do ar, da luz, talvez de qualquer coisa, mas, de certeza, de certeza, de Bach, daquele Bach a mim trazido inesperadamente, fazendo cintilar as lágrimas do Erbarme Dich na televisão, na sala, nas árvores de lá de fora, perladas de amarelos e duns verdes a esbater-se noutros tons.
Como são bons nesta altura do ano os frutos secos, em que as nozes já tiveram tempo de maturar e ainda não começaram a degradar-se, em que os dias são mais pequenos, antecipando passas! E o acompanhar o bolo de noz com porto, literalmente ensopando-o com porto, mais uma extravagância: pequenas fatias de queijo velho, também dum amigo meu.
Pus-me a folhear revistas e a procurar notas de prova antigas sobre os vinhos da minha amiga, depois disso. Um rebusco no passado. Aqui no meu estúdio do sótão os rebuscos no passado vêm sempre misturados e são um bom exercício de desempoeirar verdades e revisitar momentos. Trouxera para cima o tawny, que não é dela. Fui pensando em como poderia corresponder ao convite do Jorge Marques, em como poderia começar. Da torrente caótica de revirar páginas, de querer achar a justa medida para as palavras sobre os vinhos, dos sons de Bach, do bolo de noz e do queijo velho, do querer escrever algo que convide alguém a beber um tawny ou a abrir uma garrafa de reserva tinto numa tarde de Outono, de tudo isso chegámos aqui, ao momento da realização de teclar um texto. Com a dificuldade de ser justo, de conseguir dar a beber em gramática a vontade de trincar uma fatia de bolo de noz embebido em porto.
Escrever artigos e sopas de sangue
Dezembro 2022
Há artigos escritos de jacto,
pormenor do dia a dia, entrelinha duma frase, vazio e medos duma insónia. Clic!
e já está! Mas…
…Não é assim. Da centelha brilhante
(feliz a quem acontecem centelhas e se livram da angústia do écran em branco!)
há o trabalho de passar a ideia a palavras que a transmitam com verdade, para
ser retransmitida a quem leia. Escrever é trabalho, para se escrever é preciso
ler – e muito! – e ler dá trabalho. Que se faz com gosto: livros, jornais, almanaques
e livros, cartas, apontamentos antigos, impressos ou manuscritos, perspectiva
duma época com a vantagem de quem sabe o seu devir e vive no futuro. Bom, podermos
relacionar e relativizar coisas do presente e recuperarmos a verdade nas épocas
em que foi condicionada por intenções e modos de ser, tal como hoje é
condicionada por intenções e modos de ser.
A literatura portuguesa publicada dos
anos 60 e setenta, sobre a qual tanto se diz ter sido censurada (e alguma foi),
é, em muito, uma janela de liberdade! Hoje como então! Hoje, é preciso ter um
meticuloso cuidado, um preciso exercício de autocensura para não se cair no
politicamente incorrecto que, rapidamente, será a lapidação contra a parede! É
claro que, à época, esteve errado censurar o José
Vilhena pelos seus divertidos livros e ilustrações, mas… creio bem que lhe
seria impossível publicar agora os seus trabalhos sem reunir contra si a
megacensura que por aí arroga! Ele teve várias chatices e processos em tribunal,
já na democracia, e, neste século XXI, tentariam condicionar até o seu
pensamento. Penso, por isso, que uma reedição integral do José Vilhena seria
útil para a nossa cultura – mas a mesma é impossível pelos pruridos e
susceptibilidades das prima donne reinantes, difíceis no convívio com diferenças
de opinião. Faz-nos falta a sua sulfurosa sátira e iconoclastia de valores.
Faço parte dum grupo de amigos
nascidos nos anos 50 e trocamos saudades, nostalgias e vontade de encurtar
distâncias do espaço-tempo, no whatsapp. Damo-nos os parabéns, partilhamos
informações, combinamos almoços e encontros. Sem filtros. O que é muito bom.
Tão bom que o Acácio Pimentel ontem colocou uma foto de sopas de sangue que
imediatamente nos fez salivar, recuar décadas, ouvir sons e saborear o ímpar
trincar duma garfada de sopas de sangue, a sua textura mole e escorregadia, mas
firme, combinada com o rijado de azeite e alho, espalhados sobre o pão amolecido,
absorvido de repente o travo ténue do vinagre e do sal da água com que foi
cozido o sangue. Indescritível o sabor do pão, o sabor do sangue. Há quem lhe
ponha um bocadinho de malagueta, da brava, e não lhe fica mal se for apenas um
bocadinho a pedir logo um copo. Desculpem-me, já outra garfada à boca e um golo
deste vinho tinto. Ah! é forte! Já seguimos a conversa.
Actualmente, os porcos vêm para as
aldeias já esventrados, enxutos e preparados, transportados em camião
frigorífico. Se alguém, no interior, quiser abater um porco num matadouro e ter
o sangue desse animal, ser-lhe-á entregue em casa, devidamente assegurada a
rastreabilidade (o saber-se que aquele sangue corresponde àquela carcaça e o
saber-se de onde e que porco era). Pode pendurá-lo e desfazê-lo depois para os
enchidos de fumeiro, os presuntos curados, os chichos e costelas em
vinho-de-alhos. Orelha e pezinhos no sal ou na arca congeladora. Um cozido com
o osso da suã. E usar o sangue para fazer as sopas. Isto, deve fazê-lo de
imediato: quanto mais fresco, melhor.
Dezembro é o começo das matanças
tradicionais, feitas em casa. Lembro-me bem das nossas, no quintal da casa de
Macedo, com o senhor Isaías a espetar a faca comprida com que acertava na croça,
porco bem seguro e bem preso ao possante banco de freixo e agarrado por uma
dezena de mãos, um guinchar de fazer tapar os ouvidos que, depois, ia ficando
cada vez mais fraco, o sangue a jorrar para um alguidar de barro ou esmalte
onde estava sal, vinagre e azeite, a espuma da agitação do braço da senhora Isabel,
para que não coagulasse, vermelho até ao cotovelo, umas últimas golfadas a sair
quando a faca se torcia um pouco para alargar o golpe, animal inerte e exangue;
das de aqui de Latães, memoráveis, no casarão do Tadeu e da Aida ou em casa do
Hérmino e da Adelaide, com a novidade de que os porcos já eram chamuscados com
maçarico em vez de molhos de palha.
O sangue era a primeira dádiva do
porco, a primeira coisa que dele se consumia, logo no dia da matança. Nada se
desaproveitava dum porco. Nada se desaproveita, da ponta do focinho à ponta do
rabo enrolado. Este quadrúpede era e é um elo natural na economia circular.
Desde a Pré-História. Porque o porco aproveitava praticamente todos os restos
da comida de casa e imediações (até as folhas dos olmos!) e transformava os
aparentes desperdícios em proteína e lípidos essenciais para a dieta de todo o
agregado de pessoas e animais, incluindo aqui as aves, os cães, os gatos, todos
os demais. Sob a forma de comida ou de serviços. Ecologicamente. Uns happy
few têm ainda hoje a sorte de participar duma matança tradicional. Grande
respeito.
O José Vilhena tinha uma
característica de base que muitos desconhecem: era um homem do interior, até
aos dez anos teve uma vida rural que o fez posteriormente deixar-se fascinar
pelo lado urbano da sociedade, das franjas de marginalidade da civitas. Se
tivesse vivido na Idade Média, seria um goliardo, talvez autor dum Decameron
ou duns Canterbury Tales e estudá-lo-íamos como tal. Como glosaria hoje a visão urbano-deformada
do mundo rural! De certeza que as suas frases e os seus cartoons valeriam
discursos ao fazerem a desmontagem dos discursos anti mundo rural. E
desfazê-los-iam! Que falta faz hoje o Vilhena!
As fotos do Acácio, mandadas do Minho,
as memórias acrescentadas em comentários e com cores reais. Verdade sem filtros.
Medos íntimos de quem escreve, como os da Sarah Langton do Rentes
de Carvalho, o antes razoável surgir tosco e desastroso, uma intensa e
genuína paixão ser uma vaidade mal canalizada, o que se julga talento não
passar de miragem, uma ilusão que entretém…
Matar-se um porco num dia frio e
comer sopas de sangue a beber tinto forte à lareira. Dezembro. Uma grande
emoção. Um inesquecível momento.
O Bom, Óptimo e Superlativo: Trás-os-Montes
Dezembro 2022
Rachmaninov, Concerto para piano n.º
2. David Lean e Brief Encounter. A Mariana e eu fomos até à Guarda,
cidade, assistir à apresentação duma publicação excepcional sobre a Beira
Interior, “Os Vinhos Que Vêm do Frio”, um evento/cocktail da CVRBI (Comissão
Vitivinícola Regional da Beira Interior). Ainda regressam hoje a casa?
Perguntava-nos o Bernardo Gouvêa, surpreendido por nos ver naquele auditório
fora da nossa rota habitual sem saber que o que nos levara ali era a pura
fidelidade à amizade e a nós mesmos: o livro de Virgílio Loureiro será mais um
dos muitos e bons livros sobre vinhos que estão na nossa estante mas, desta vez,
com o carácter e a perspectiva feminina que lhe foram dados pela Constança
Vieira de Andrade, a óptica especialíssima de ler as pessoas, sensível aos seus
silêncios no meio duma conversa, perscrutadora de materiais para além do óbvio
e intenções, transparentes nas suas entrevistas, conduzidas e relatadas como
documentos humanos essenciais. Temos a certeza de que um segundo livro lhe vai
na mente, tecido no cenário atrás do cenário e da realidade que encontrou por
toda a Beira nesta investigação de campo. Saudades, dos tempos da Casa da Bouça
e da nossa casa de Macedo em que tivemos a pura felicidade, a sorte, a honra de
conviver com o génio que era o seu Pai: inesquecível.[2]
Também tinha um dever para comigo
nesta ida à CVRBI: uma das minhas teimosias conseguidas na vida foi a de que a callum
se pudesse voltar a chamar legalmente callum e assim ser usada nos rótulos, um
pouco contra tudo e contra quase todos. A posteriori, mas sempre a tempo,
Virgílio Loureiro deu-me razão: “Também eu sou um purista [na ciência] mas
omitir nomes é uma falta para com a língua e a história portuguesa!” - fiquei
contente. No regresso pelo IP2 furou-se-nos um pneu, seria uma chamada à razão
pelo destino? A assistência da Douro Interior foi eficiente a despejar
WD40 no parafuso que não se soltava para podermos usar o sobresselente e
mudou-no-lo enquanto decorria na rádio do carro a goleada que demos à Suíça! Voltávamos
a casa, já passáramos a Beira Trasmontana, estávamos no Alto Douro, parados na
berma com o colete posto, mesmo em frente à Quinta do Chão d’Ordem. Cena que
uma noite teremos de desmontar no tempo. Noël Coward, na Still Life, a
peça de que brota o Brief Encounter de David Lean, faz tudo (e este tudo
é imenso!) passar-se num só acto e num mesmo local.
Dias de chuvadas, brumas e ventanias,
sopraram-nos a caminho do Porto e entrámos, atravessando o chic do lobby do
Crowne Plaza, apropriadamente já decorado com renas de Natal, subimos as
escadas, check-in simpático e atencioso, sala repleta e quente de amigos,
vinhos e innuendos – de onde captara os Queen? – tendo nós provado de todos ou
quase de metade, nem sei bem: a novidade da flor de castanheiro em vez de
sulfitos, o saído da wiseshape para as primeiras garrafas, o
orgulho de ouvirem dizer-me que valeu a pena incluir o godelho na
portaria,[3]
a surpresa dos novos a apostar no interior e a captar de nós os segredos (nem
todos sabem o que é atravessar de pedra em pedra e o nome destas que D.Dinis
mandou multiplicar pelos rios e ribeiros de Portugal, as alpondras, poldras ou
pondras, segundo o Dicionário da Academia), os de medalha de ouro e os de
menção, aqueles que passavam pelos copos partilhados pela Mariana e por mim, todos
da CVR de Trás-os-Montes! O Francisco Pavão, a Ana Alves e o Aristides conseguiram
fazer do Trás-os-Montes Em Prova a prova de que Trás-os-Montes não é
só potencial, mas um jorrar de vinhos real. Sempre houve videiras, uvas e alguns
vinhos. Mas hoje podemos dizer: Que vinhos – e quantos! Argumentos e atenção a
cada um deles, o bruhaha no salão do Crowne Plaza Porto
deixou-nos conversar com o Mário Araújo e Silva (atentíssimo), a Maria e o
Paulo Martins, a Virginie e o Nuno Costa, o José Preto, o Fernando Nicolau de
Almeida, a Teresa Vaz e o Jorge Afonso, a Prof.ª Ana Oliveira e a Adriana
Vicente, a Rute Gonçalves, o Prof. Manuel Cordeiro, o Dr. Amílcar Salgado, o
Beraldino Pinto, o Francisco Gonçalves, o Leandro Garcia, a Cátia Barreira, o
Luís Gradíssimo, produtores, enólogos, intelectuais, amigos! Com que
amabilidade atendiam o mais de meio milhar de pessoas dos dois dias, e nós
entráramos já no final! Tive pena das ausências: o Casal de Valle Pradinhos, o
Costa Boal, a Adega de Valpaços, a Quinta do Lombo, a Menina d’Uva, as Arribas
e o Picotês, outros mais… e, ao dizer que tive e tenho pena, faço-o pelo motivo
de que sendo nós tão poucos no interior de Portugal, mesmo quando estamos todos
nunca estamos demais!
Mas estas ausências têm um
significado bom, por outro lado: é o de que há por onde e para onde crescer! Experimentámos
aromas e sabores como compete numa prova de vinhos qualquer. Só que aqui não
estávamos numa qualquer e, por isso, soube-nos a uma outra coisa que só os
iniciados pressentem: uma familiaridade quente, a dos vinhos com lascas de
bacalhau seco ou de presunto numa adega térrea em que a primeira saúde é feita
com gotas para a chão em homenagem aos ancestrais lares. Estes vinhos, ali no
salão, respiravam desse sopro antigo que também perpassa entre as folhas e
bagos das videiras de Trás-os-Montes. Será por isso que muitos sobreviveram à
filoxera; muitos não precisam de tratamentos químicos; tantos desfrutam do
aroma sobrenatural e inexprimível duma alma singular. E esta alma, este íntimo
factor, é o grande segredo que os fez chegar até hoje e serem um sucesso! Não é
só questão de terroir, climat et culture, como dizem os franceses e que
se aplica a todos: há mais este je ne sais quoi, como também dizem os
franceses, que está presente carinhosamente quando fazemos os nossos mostos. Junos
e génios zelando.
O próximo ano, 2023, vai ser muito
difícil. Trás-os-Montes vai ultrapassá-lo com denodo e garbo. Para o conseguir
já tem o bom, o óptimo e o superlativo. Não sei como a escreveria, mas se
tivesse à mão um vinho como uns que provámos, Noël Coward teria dado à Still
Life um happy ending. E nós poderíamos acabar de assistir ao Brief
Encounter sem lágrimas nos olhos no fim. Em todo o caso, com um valente
copo para aplacar tristezas! E agora vou ler a Villas & Golf, que fez 21
anos, que o Paulo Martins teve a gentileza de me enviar! Uma nesga de Sol, lá
fora!
As chuvas vieram
Janeiro 2023
Tomo de empréstimo o título a Louis
Bromfield, do seu livro The rains came, em que as monções na Costa do
Malabar, na Índia, são as chuvas desejadas… mas por causa das quais as
consequências na vida de cada um dos protagonistas serão percursos
imprevisíveis, com destinos imperscrutáveis enquanto tinha durado o período de
seca. As chuvas são tantas vezes os pontos de viragem e, até, os de partida!
Espera-se por elas para uma nova etapa, algo de génesis, euforia de repleção, acontecimento
que fazia com que o padre de A Um Deus Desconhecido, de John Steinbeck, tinha
de ir a correr para a multidão a fim das raparigas e rapazes não se deixarem
deslizar em desejos irreprimíveis, despertados pelos pingos nas faces, nos
cabelos, nas mãos, dançando, a colar-lhes a roupa em volúpia, lama, sentir a
água saborosa sem ser de lágrimas.
Foram grossas chuvas, as que fizeram
desabar o pedaço de monte em cujos socalcos se erguia a igrejinha rústica do
século XVI onde estavam os veneráveis ossos de Jacintos, soberbamente e
tão bem fantasiados por Eça de Queiroz, graças às quais podemos ler uma das obras-primas
da literatura portuguesa, A Cidade e as Serras. As mesmíssimas grossas
chuvas que, um pouco por todo o Douro, desfazem aqui e além os vetustos muros
de pedra posta que, no seu conjunto, ultrapassam em volume as pirâmides e,
postos em fila, seriam talvez mais compridos do que a muralha da China. As
chuvas vieram. Vêm suaves ou mais violentas, fugazes ou mais persistentes.
Todas a sugerir uma mão humana a domesticá-las, mas.
Louis Bromfield começou por estudar
agricultura em Cornell e isso marcou-o para toda a vida, criando um polo
magnético na sua Quinta de Malabar, no Ohio, onde casaram Laureen
Bacall e Humphrey Bogart e onde recebia celebridades e cidadãos comuns,
desenvolvendo modelos pioneiros de agricultura cientificamente sustentável. Se
tivesse vindo ao Douro e a Tormes, teria escrito o seu livro a bordo
dum rabelo e teria sido amigo dum Alves Redol ou duma Agustina, com quem
afinaria ideias e conversas. Tal como, se Eça de Queiroz tivesse nascido
americano, A Cidade e as Serras renderiam milhões como sucesso de
Hollywood e iriam já numa terceira ou quarta versões de sétima arte: uma
pré-code, outra no início do cinema a cores e ainda uma deste século, se calhar
já mais triste porque politicamente correcta, com os critérios de hoje a desfigurar
muitas das cenas, nomeadamente aquela em que o Jacinto manda o Zé Fernandes
deitar fora a papelada recheada de mulheres nuas, de historietas sujas, de
parisianismo, de erotismo, (…) belas estampas que o Pimenta, debruçado sobre o
monturo de lixo, apanhava, sacudia, recolhia com amor.
As chuvas vieram. Têm sido arrastadas
pelas depressões e superfícies frontais que este Inverno são frequentes de
encontro à Península. O caminho para nossa casa vai já escalavrado das
correntes que se formam e arrastam tudo, está mole nos pontos em que a fraga dá
lugar à terra, onde ressurge água que atravessa para todos os lados. Andava de
sacho na mão o Quintino para a dirigir e lhe indicar saídas e – coisa curiosa –
ao fazê-lo, porque estamos numa linha de festo, se a deixa correr para a
esquerda irá ter ao Mosteiro, ao Azibo, dali ao Sabor, mas se a orienta para a
direita do caminho, irá dar ao Tuela e ao Tua, em qualquer caso ao Douro, dali
ao mar. Poderíamos demorá-la mais entre nós, a esta água, para quando as chuvas
não venham, represando-a em novas barragens e distribuindo-a em condutas
pertinentes. É um bem tão precioso, o da água da chuva, que o guardá-la é o
mesmo que guardar um tesouro. Para os dias em que as águas não venham.
Com as chuvas, veio o verde que
afogou pedras em musgos suaves e fez brotar erva que as ovelhas do Carlos
Frederico e do Hérmino Gonçalves comem com um apetite de grandes saudades. Seja
aqui, seja no Alentejo, onde há dias passámos de ano, em cenário lindíssimo com
as cores frescas do chão prestes a flores e as dos sobreiros lavados com banho
de noite de núpcias, a água veio trazer vida e esperança, um pouco de segurança
a um tempo de tanta incerteza que estamos vivendo.
Convite da Teté e do Luís, guardiões
e senhores do Monte de Santa Maria, em Montemor, do pinheiro-manso que ali
plantámos há ano e meio e está famoso! Esforçámo-nos por viver o momento. Feira
de Estremoz na manhã de sábado, abastecimentos de paios, queijos (a ver com
atenção: há cousas raras!), ervas aromáticas e temperos, café no Águias d’Ouro,
passagem pela Barragem de Minutos cuja albufeira ainda tem muito para encher, encharcada
que o Luís encomendara na Pastelaria Estudantil, já em Montemor nesse passeio,
leitão assado dos de repetir, pão de ló da Gi, tudo foi fazendo o lastro para
as provas em contínuo: tínhamos levado de cá CARM, Romeu e Valle Pradinhos,
fomos encontrar lá os Herdade das Servas monocastas e de lote, os Pêra-Grave,
enfim, teríamos de colocar em anexo o rol da CVRA.
Missa em S. João de Deus, café no
Clube, tarde épica em casa da Antónia e do Carlos, conversámos de enchidos de
Trás-os-Montes, dos azedos, dos butelos, das perdizes com castanhas e cogumelos
no pote! Uma outra encharcada com açúcar queimado, das de se pedir a receita!
De copo na mão, fora de casa, anoitecendo: as luzes de Arraiolos ao longe, o
negrume profundo da noite, a segunda do ano, chocalhos baços a ouvirem-se como
se estivéssemos vizinhos do estábulo de Belém (também havia uma Mãe, um Pai e
um bebé-menino!) a aguardar pela vinda dos Reis Magos. Saímos no dia seguinte,
manhã escorrida, tarde escorrida, frio a entrar de Norte.
Cortante, em Fátima, ao sairmos da
Capelinha. Cortante, ao chegarmos a casa, a Latães. Noite estrelada, luz
sideral a iluminar o nevoeiro aconchegado no vale de Macedo, no da depressão de
Mirandela e Valpaços, o nosso mar.
As chuvas vieram e vão voltar a vir.
Saibamos dar-lhes valor. Sempre.
Ovnis, Passado, Presente
Fevereiro 2023
Os OVNIs dos últimos dias fizeram-me
recordar um dos mais espectaculares que ocorreu em Portugal, o da noite de 19
de Julho, uma terça-feira, em 1983. Estávamos em pleno Verão, a Lígia, o Acácio
e os filhotes tinham ido para o Algarve e eu tinha ficado a “tomar conta” da
casa deles no Restelo, com o Danny, um especial pastor-alemão, o de
maior altura ao garrote então registado em Lisboa. Estava a meio duma fase de
tempestades pessoais: terminara mal um namoro de turbilhão, lia e escrevia
coisas frenéticas impublicáveis (foi bom, apesar de pro bono, então escrever e
assinar os artigos na Eles e Elas da Maria da Luz Bragança, com a
colaboração do Miguel Cordovil nas fotografias, e conhecer de enxurrada uma
dezena de pessoas originais e extravagantes), percorria todo o meu círculo de
amizades em busca de qualquer coisa a que me agarrar. Retrospectivamente, foi
um Verão de todos os perigos. No meio do part-time no The Great
American Disaster, o da Elias Garcia, das idas à Van Gogo, à Banana
Power (ui, Billie Jean!) e à Whispers (onde todas as noites
se ouvia Africa, dos Toto, e se bebia JB com águas), das
aulas e exames fracassados na faculdade (Escola Superior de Medicina
Veterinária, onde hoje é o edifício novo da Polícia Judiciária), do picar o
ponto na Versailles (residia aí um grupo especial, o de todas as tardes,
que veio a dar actrizes, empresários, agentes secretos, juristas e engenheiros,
fundidos também nesse cadinho que misturava as meninas do Académico e
agitava as hostes em matinés no Porão da Nau ou no Rock-Rendez-Vous),
no meio desse wild side tive a presença duma providência constante de,
aqui, ali e além, me irem aparecendo as stepping-stones certas para não
desaparecer na corrente: um casamento de amigos, jantares com discussão em casa
de outros amigos, um enterro emotivo, a imperial bebida à hora de fechar o Gambrinus,
uma semana em Santiago e outra em Macedo, as missas do Padre João Seabra. E
outras coisas mais. Esse OVNI de terça-feira, 19 de Julho de 1983, fulgurou em
Lisboa no início do concerto do Rod Stewart no Estádio do Belenenses. O Danny
apercebeu-se: eu, não, apenas um clarão. Não tão forte como o que representou a
letra de Sailing, a bússola possível no meio da
tempestade, pontos cardeais posicionados para rotas menos incertas. Oh,
My Lord, to be near You, to be Free!
Ter-me lembrado das coisas
sintetizadas no parágrafo anterior fez-me clicar nos Les Concerts en Chine do Jean Michel Jarre, porque
a Lígia e eu os ouvíamos com o botão do volume no máximo, nesse Verão, copos de
cubalibre ou de vodkorange na mão, janelas abertas para o
relvado, conversando, discutindo rumos de vida que entrecortávamos com
castanhas de caju e batatas fritas, repetindo e repetindo a Overture, o Equinoxe 4, os Champs Magnétiques
4 e 2, o Souvenir de Chine. Tínhamos que andar para trás e para a frente com a cassette de
vídeo beta que era o suporte da música, reproduzida numa aparelhagem sony
com uma televisão gigante, das de então, e esses apuros técnicos davam tempo de
reprogramarmos também a argumentação de cada um. As palavras da Lígia eram as
de irmã mais velha, ditas sempre como esconjuros de quem se tinha visto livre, com
êxito, do que no seu passado tinha sido inferiorizante, olhando os nossos olhos
como quem incute neles a força, a determinação e a inteligência necessárias
para se sair dum buraco negro. Que ela percebia, muito melhor do que eu, que
era aquele em que estávamos em 1983. Não era assim tão grave. O grave seria o
não se querer sair dele. É impossível compreender o que aqui vai escrito sem ir
ouvindo a música, sem ir bebendo os copos, sem ir sentindo o calor da noite de
Lisboa e os contrastes de luzes entre o interior e o exterior de casa, os Danny
a aparecer de vez em quando com o seu
pelo comprido e cabeçorra a pedir festas, as Lígia a insistir nos argumentos,
experimentando o brotar da vontade de partir para gestos grandes, de nos
ultrapassarmos a nós mesmos.
Todos os verões são extraordinários,
mas alguns são mais extraordinários que outros. O extraordinário Verão de 83
foi-o em muitos sentidos. Vimos muitos semáforos a acender no vermelho.
Felizmente, nesses anos, Rod Stewart, Jean Michel Jarre e
bastantes outros estiveram presentes. Tal como a Lígia, reposicionando-nos no
nosso lugar. O de estarmos atentos a todas as surpresas, sempre, às vozinhas
engraçadas que nos despertem e peçam para desenharmos uma ovelha. Os OVNIs, os
reais e os imaginários, não aparecem por acaso. Nenhum deles. Muito menos a
coincidir com o início dum concerto. Muito menos a coincidir com um mês de
Fevereiro em que tudo nos parece afligir. Haverá mais. Uns, vindos do passado e,
outros, muito reais no presente. Saibamos vê-los.
Cinzas, renascimentos e licor de café
Março 2023
O licor de café era feito numa
terrina de faiança inglesa de Staffordshire que, nos seus tons azuis e
brancos e, até, pela sua origem, dava um carácter monárquico àquela fórmula
antiga, usada na casa das nossas Tias Sousas e decantada de imensos sentimentos
misturados. Era uma fórmula secreta, “de família”, servida a convidados e até
mesmo os mais pequenos, entre nós todos, podíamos molhar a ponta da língua
naquela delícia vaporosa e doce. Grandes eras de inocência, longe das
explicações de hoje, em que muitos apontam para que a coincidência de cafeína,
álcool e susceptibilidade genética possa ser uma das causas de cancro gástrico.
Interessante que, connosco, gerações sucessivas, nenhum tenha padecido deste
mal no estômago, felizmente.
Olhando pela janela enquanto escrevo,
por aqui está tudo reduzido a mínimos: o frio tem feito o que lhe compete, os
ramos das árvores estariam completamente nus se não fossem os
líquenes-da-islândia a forrá-los e a entreter alguns chapins esporádicos,
rabirruivos e umas trepadeiras-comuns que os reviram a catar alimentos. O
nabal, já muito colhido, vai espigando uns amarelos, em contraste com a cinza
espalhada, ida da nossa lareira, a aguardar pingos de chuva que venham daqui a
uns tempos ressuscitar fénixes.
O ambiente rural da nossa comunidade,
resistente neste interior de Portugal, ficou bem patente há uns dias, no eco da
assembleia ao Padre Eduardo, na missa de quarta-feira, quando este perguntou
porque eram importantes as cinzas: “para os alhos”, foi a resposta profana que
todos tiveram em mente e deram quase em uníssono, referindo-se aos alhos
acabados de plantar nas hortas e quintais em terra aconchegada com os cinzentos
encarvoados, dessintonizados do que o
celebrante teria na sua cabeça, a de que aquele pó é uma expressão simbólica
muito nítida da morte, o resto informe duma coisa que se destruiu, para
usar as palavras do Tio António, o nosso bom Cónego Figueiredo, que nos deixou um livro precioso de
vida e memórias rurais, esgotado e a pedir reedição, Ambiência do Ano. Estas cinzas não são as dos mortos,
são as do simbolismo da compunção, outrora impregnadas nos cabelos de
anacoretas e penitentes, estampada na pele, sinal de frugalidade extrema,
película de contacto com o além e o íntimo, simultaneamente.
Produto multifunções, as feminae romanas
usavam as cinzas para tingir os cabelos e fazer cosméticos, as lavadeiras no
rio para as barrelas de roupa branca, as empregadas domésticas para limpar e
arear metais polidos, as bruxas e mulheres de virtude para mezinhas e
estratagemas de enganar crédulos e clientes. Vi homens a usá-las para lavar
garrafas e chocalhar o sarro de garrafões, outros a espalhá-las para proteger
plantas de insectos malfazejos, livrar as capoeiras de pulgões e piolhos. Desde
sempre, um produto do fogo, olhado pela humanidade como um potencial de misteriosas
promessas contidas. As silvas cortadas, plantas daninhas, guiços de poda e
pernadas inúteis de árvores, se reduzidas a cinzas numas labaredas que queimem
o mal, ficam à mercê de usos e propriedades que a primavera se encarregará de
reciclar. Aqui e além vêem-se as colunas de fumo que deixam para trás o
trabalho do controlo de infestantes, de reparação de sebes e de condução de
vinhas que é feito nesta época, mancha no chão da cinza prometedora de não
repetir pragas, mas de fecundar raízes.
Os artistas dão especial uso às
cinzas azuis e verdes, os escritores ao seu poder de remissão e recomeço como nos poemas de Borges “Las cosas son su porvenir de polvo “ e “el último jardín será el primero”. Até nas séries mais
negras (zu Aschen, zu Staub se
decompõem em elementos de análises vertiginosas), as cinzas aparecem como
destino e esperança, algo difícil de conceber nos momentos sombrios, mas
essenciais para se perseguir desideratos construtivos e se poder seguir em
frente na vida. O amor,
tantas vezes reduzido a cinzas, consegue refazer-se das próprias cinzas como um
motor de realização.
Assisti várias vezes ao meu Pai, no
processo do licor de café. Começava no olival e terminava na adega, aliás, no
louceiro-aparador da sala. Na tal terrina azul e branca, na mesa de madeira da
adega, despejava-se um litro e meio de aguardente nova (duas garrafas) a que se
acrescentava quase um quilo de açúcar escuro e um pouco menos dessa quantidade
de café, do melhor, moído no Mascarenhas ou trazido de Lisboa. Misturava-se
tudo, remexendo-se com uma concha de prata que, depois de três ou quatro
agitações, ficava a aguardar num prato, ao lado. A terrina era tapada. Como era
extraordinário aquele perfume, aquela mistura de perfumes, o da aguardente, o
do acúcar, o do café, e como todos juntos resultavam num outro, indefinível,
que por dias se insinuava um pouco pelo pátio, já que o Pai, ao entrar e sair
de casa para ir trabalhar na repartição, passava de cada vez pela adega e
voltava a fazer os mesmos movimentos com a grande colher de prata. “Isto é uma
solução saturada” – e explicava-me o que era, em ciência física-química, uma
solução saturada! O açúcar, primeiro pastoso e aparente na concha, ia-se
dissolvendo e sumindo. No segundo dia notava-se cada vez mais o café, fina
película à superfície e grossos grânulos no fundo, tom escuro de toda a poção,
cada vez menos castanha e mais a fugir para o negro. Que ficava retinto quando
se misturava o “segredo de família”: tínhamo-lo feito na véspera, queimando um
pequeno molho de vides da poda da nossa vinha, que tinham secado atadas e estado
penduradas na varanda, com dois ou três raminhos de oliveira, e, depois, as misteriosas
cinzas eram apanhadas com a pá do lume para irem arrefecer numa travessa, na
despensa, peneiradas no dia seguinte numa ceitil e, finalmente, adicionadas à
mistura na terrina onde maturava a magia. Mudava tudo. No dia seguinte não
havia nada a flutuar no líquido preto, perfume mais discreto e polido, só
remexendo-se com a colher se despertava do fundo uma mistura espessa mas
fluida. Tinham passado três dias desde que toda a operação começara. Então, numa
garrafa de cristal bojuda, daquelas bonitas de tampa esmerilada, colocava-se um
funil de vidro com um papel de filtro frisado onde, com cuidado, se despejava o
máximo de líquido sobrenadante da terrina. Gota a gota, caía para o interior o
almejado licor de café.
Seguia num frasco pequeno para ser provado em casa dos primos, a garrafa grande e bojuda ficava, orgulhosa, fechada à chave no louceiro da sala, a poder-se vertê-lo em cálices ao serão, quando havia visitas ou vinham as manas de Lisboa. Também para dias frios. Era um licor capaz de tudo. Dos de fazer renascer. Até as memórias.
Portugal é paisagem, o resto é Lisboa!
Abril
2023
“O carácter de uma paisagem é sempre
profundamente marcado pela sua capacidade de produzir vida”. É uma das
primeiras frases dum livro tranquilo e belíssimo, escrito por Henrique Pereira
dos Santos, Portugal:
Paisagem Rural. Que pode e deve ser lido por todos, compra-se pelo
preço duma dúzia de ovos no Pingo Doce, porque é edição da Fundação Francisco
Manuel dos Santos. E lê-se numa tarde, no tempo que demorariam dois jogos de
futebol, em muito menos tempo do que demorariam dois jogos de futebol com os
comentários antes, durante e após o tempo regulamentar. Com o condão de abrir
pistas para outras leituras, dar vontade de correr toda a bibliografia, ficar a
embasbacar enlevado no Portugal Luz e Sombra de Duarte Belo e de ler,
reler e sublinhar os artigos dos meus amigos e mestres João Azevedo e Carlos
Aguiar.
Um dia mandei ao Carlos Aguiar a imagem
dum postal ilustrado de Macedo de Cavaleiros em que se vê ao fundo o recorte
inconfundível de Bornes (a “Montanha de Bornes”, segundo observação, com
o seu quê de certeira, do Guia de Portugal, da FCG) e se pode
interpretar toda a paisagem do planalto, do vale, da serra, adivinhar as
restolhas do centeio, do trigo, da cevada, da aveia, indistintamente, já se vê,
surpreender o grupo de medeiros de palha no espaço que, hoje em dia,
sensivelmente, ocupa a Cooperativa Agrícola. É uma foto de há um século. Para a
qual o Carlos Aguiar me avisou: comparar a paisagem que hoje vemos com a de
então seria e é eloquente.
Não é um mero exercício de descobrir as
sete diferenças: é um deleite de poder compreender palpavelmente, diante dos
olhos, ao mesmo tempo nas reminiscências das histórias que o nosso Pai nos
contava, na imagem do tanque de água para regar uma horta que o meu Avô mandou
fazer no tempo da II Grande Guerra, hoje demolidos para dar lugar a um bairro,
nos testemunhos que ainda tive a felicidade de ouvir sobre o ciclone de 41, a
grande seca de 1944-45-46, os vagões carregados de cereais dos comboios de mercadorias
puxados por uma máquina a vapor, os nevões nos anos cinquenta e sessenta, o
impacto das transformações sociais, os lobos que desceram à vila nos Invernos
de 72 e 73, tudo se foi passando à frente nos meus neurónios e intrometendo nas
linhas do livro de Henrique Pereira dos Santos, sem que ele disso escrevesse –
um pouco como no Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, se intrometem
todas as imagens nas recordações de Salvattore Di Vita – e o levam às lágrimas,
arrastando consigo os espectadores.
Portugal é um país cheio de paisagens.
Todos os países o são? Não são. O que acontece é que nós, portugueses, a viver
nas nossas paisagens, habituamo-nos a elas e acabamos por já não reparar que
temos o privilégio de as ter como chão e horizonte!!! À beira-mar, no interior,
nos vales, nas planícies, nas encostas, por todo o lado há perspectivas de
encanto e pasmo. Não é à toa que os estrangeiros se embevecem e delas nos falam
a ponto de nos embaraçar pelo facto de as não notarmos. E se Eça, sendo português,
sobre elas nos deixou páginas memoráveis tão bem descritas que parece vermo-las
diante de nós, foi porque, tendo vivido fora, em Londres, em Havana, em Paris,
os seus olhos tiveram tempo de delas se desabituarem para, depois, nelas se
surpreenderem uma e outra vez.
Já não me lembro se alguma vez lhes
contei que uma manhã, tendo vindo a nossa casa os nossos primos de Oxford
passar uns dias, a Alex, o Mike, o Sebastian, a Flick e a Inês-Hermione Mulford (uma notável
pintora hoje radicada em Edinburgh, na Escócia, que até parecem ter saído de si
e ter sido quem andou a pintar os líquenes nas nossas árvores!), nos
telefonaram da viagem de ida de Trás-os-Montes para Lisboa, parando numa saída
para Lamego, dando-nos conta da sua emoção ao longo das A4 e A24, da descida ao
Douro, subida pelo Varosa, absolutamente “…astonishing, this is breathtaking!”,
e é!
As paisagens de Portugal são
profundamente marcadas pela sua capacidade de fazer sonhar. De nos fazer olhar
o tempo e a sucessão da história. De nos absorver uma parte da alma e nos
retribuir uma enorme sensação de amor à vida e à plenitude. Porque a emoção
experimentada ao observarmos o horizonte, o recorte dos campos, as plantações,
as cicatrizes do fogo, da erosão ou da exploração, as landmarks, as
transformações pelas obras mais colossais, essa emoção vem misturada com
sentimentos profundos e gratos por quem plantou, fez os muros, lavrou,
construiu, tirou pedra, abriu estradas, conduziu a água, foi pondo casas e
verdes como num jogo gigante. Saído dum esforço gigante, de muitas gerações, de
homens, animais e máquinas, de fazedores que urdiram todo este tecido que cobre
o nosso torrão à beira-mar. Daí que um tal esforço mereça um infinito
sentimento de gratidão e respeito.
Impossível negar que muita dessa gratidão
e respeito nos foi inspirada pela atitude e obra de Gonçalo Ribeiro Teles.
Também pela de Ilídio de Araújo. E de outros. Esmagadoramente pela de muitos
lavradores que conhecemos ao longo da vida que sabiam que os regos para plantar
batatas ou para regar lameiros em encosta se fazem “ao consoante do nível”
por causa da rega de pé e da rega de lima; de muitos pastores que chegavam fogo
a matos em Janeiro e Fevereiro e com isso conseguiam os “renovos de
Primavera” para dar ao gado e às cabras e que, conjuntamente com a acção
deambulante destas, eram os verdadeiros preventivos de incêndios; de
proprietários com a sabedoria de deixar as silvas crescer nalgumas bordas,
porque quanto mais silvas mais amoras bravas, para a passarada e para as
mulheres e miúdos que, nos fins de tarde de calor, com baldes, as apanhavam
para “vender à cooperativa”.
Pessoalmente, prefiro as que têm a marca
dum homem que lhes tenha querido bem, que os houve, desde D.Dinis, aos frades e
freiras de conventos, a D. Fernando, aos nossos viajantes e emigrantes nas
Índias, Áfricas e Brasis, que nos trouxeram pés de plantas e sementes
prodigiosas, aos que as preservaram ou que as mudaram com a finalidade de
conservarem ou produzirem vida. Que tenham tido o significado de ter servido
para a realização de desígnios, para a melhoria das condições de vida das
pessoas.
Tal como fazem os meus queridos vizinhos
daqui destas aldeias, obstinados em plantar as hortas, em semear, em ser
teimosos nas lavras dos castanheiros – e que os secarão todos com doenças,
porque não acreditam, quando lhes digo que o não façam, olhando-me como se eu
fosse meio pírulas “onde é que já se viu deixarem-se os castanheiros por
lavrar?!”.
Ao rever agora a fotografia de Macedo,
Castelãos e Serra de Bornes, é impossível não citar ipsis verbis
Henrique Pereira dos Santos: “Uma forma simples de ilustrar a ideia de que a
paisagem é muito mais que uma fotografia de um sítio, sendo antes movimento
perpétuo, consiste em abrir uma janela sobre a dinâmica das espécies selvagens,
relacionando-a com alterações da paisagem”. Já não há hoje na serra o ritmo
das searas e das restolhas de onde voavam bandos de perdizes e codornizes, mas
passou a haver carreiros sob os castanheiros bravos, as carvalheiras e os
giestais, por onde circulam corços e javalis, notados nas memórias paroquiais
do século XVIII, sumidos pela pressão humana dos finais de XIX e de mais de
metade do século XX, reaparecidos triunfantemente desde há três ou quatro
décadas. Uma sequência que é um bom pretexto. Porque as paisagens são, também,
um bom pretexto: “Seria bom podermos olhar para as paisagens no que elas
transportam do passado para o futuro, para lá do retrato instantâneo que
fazemos instintivamente a cada olhar em volta, melhorando a nossa capacidade de
conversar sobre o que vemos”.
Enquanto estivemos a viver em Lisboa, a Mariana e eu não perdemos oportunidades de olhar para a paisagem. Clandestinamente, com os nossos filhos e namoradas, do antigo Miradouro de Monsanto; eruditamente, do da Graça, de Sophia; religiosamente, da cobertura da Basílica da Estrela; em grande angular, de Azeitão para norte; em modo cinemascope, percorrendo a rua do Cais do Ginjal. A piada política de que “Portugal é Lisboa – o resto é paisagem” não poderia ser mais enganadora sobre a nossa essência: é que Portugal é paisagem, e o resto, um resto que é das melhores paisagens do mundo, o resto é Lisboa.
Arthur C. Clarke, Stanley Kubrick e Pitões das
Júnias
Maio 2023
A emoção ao sair do Tivoli era imensa
e estivemos horas, dias, todo o tempo desse Verão, nos anos setenta, a
discutir, elucubrar ideias e teorias, ou seja, a cumprirmos o que Arthur C.
Clarke desejava que os seus leitores imaginassem e o que Stanley Kubrick, com a
sua linguagem cinematográfica de ruptura e espectacularidade, propusera como
experiência aos espectadores. Desde então – e sê-lo-á para o resto da minha
vida – quando se ouve o Prelúdio de Also Sprach Zarathustra, de Richard
Strauss, imediatamente sou remetido, à velocidade do espírito, para o primeiro
instante, no Tivoli, em que se fundiram numa só realidade as imagens, os sons e
o propósito do 2001 A Space Odissey.
Em Pitões das Júnias o carro pode parar-se a metros e é da praxe os visitantes irem para o degrau do marco geodésico para uma foto, mais ou menos romântica ou provocante, conforme a motivação de quem manobra os telemóveis. Mas também a metros desse vértice geodésico (do Anjo da Guarda de Pitões das Júnias, 1131 metros de altitude) há outras coisas interessantes que nos captam a atenção para dimensões diferentes. Aconteceu há dias quando, deixando-o vago para que um parzinho de espanhóis se fotografasse em poses de Corín Tellado (sabê-lo-iam?), deparei com a silhueta vertical dum monólito negro, magnético para recordações e tempos, que fui tactear com o respeito mimético dum hominídeo ancestral, parecendo-me, benfazejas, as notas do Prelúdio, inaudíveis mas fortes, entretidas no vento que se escorregava, nesse fim de tarde suave e morno, pelas urzes e pedras de land art, de que a Mariana, a Camila e a Paula ouviam o Miguel dar explicações sucintas e percorriam com sobressalto e surpresa.
Um baixo-relevo
dum bebé esculpido num granito polido e dividido em homotetia, faz a invocação
carinhosa e espectacular para a génese, no filme de Kubrick dada com uma imagem
intrauterina. Numa fraga agarrada à rocha-mãe, de mãos dadas, uma inscultura
remete-nos para outros mundos com um ressuscitar de mitos fundacionais, da
Idade Média, de Pedro e Inês, Heloísa e Abelardo, Filipa e João, Margarida e
Miguel, presentes desde a Pré-História, desde o Egipto, desde o Paraíso. Não se
imagine que esta arte, espalhada nuns milhares de metros quadrados, resulta de
descuido ou de meras intuições casuais. Bem pelo contrário. Há uma intenção
obstinada neste Anonyma - Anonymous Art Project. E essa intenção nasceu aqui no
Gerês. É sentida, por exemplo, palpando o monólito negro, sem mais, e deixando
em liberdade tudo à volta, percorrendo com o olhar, com a curiosidade e com uma
crescente interrogação interior aquele rebusco de pedras ora planeada, ora casual,
ora, até, aleatoriamente dispostas para atrair o nosso olhar, despertar a nossa
curiosidade e fazer crescer a nossa interrogação interior. Com uma finalidade?
Sim, a de nos dotar da intuição reveladora de que tudo e toda a natureza pode
ser arte, tudo e toda a natureza tem um artista, tudo e toda a natureza tem um
artista anónimo. Ou vários. Porque para a parede em construção e em polimento,
que está orientada para o Sol no Ocaso no Solstício de Verão, contribuíram
vários artistas: o da idealização, da concepção, da colocação, do afeiçoamento
(com uma máquina eléctrica portátil a agir conforme o pensamento e a mão que
experimenta a superfície onde deslizam o pó de pedra e os pensamentos, alguns
evolando no ar soprados pela aragem que afasta a poeira que também se acumula
na face, cabelo e fato de trabalho do escultor), que podem ser todos ou um, e –
acima de todos mas familiar – o de quem concebeu os solstícios, o do Senhor do
Tempo.
Estão à procura e experimentam um
diálogo com Ele, todos estes anónimos? Nas noites sem Lua no Planalto da
Mourela onde brota Pitões, as estrelas parecem ao alcance da mão com o braço ao
alto. Lavram-no riachos que brincam de piscina em piscina tornando musicais as
tardes e manhãs em que a toda a volta nos sentimos rodeados duma coroa real de quartzos,
feldspatos e micas.
Escondido num vale, está o convento
de Santa Maria das Júnias, em todos os roteiros e livros mencionado de fundação
Beneditina e reformado de Cister – mas todos omitindo uma referência expressa,
que a merecia, a três espectaculares cruzes templárias, cada uma em seu tímpano
das portas de acesso à igreja, como que velando pelos segredos duma outra
realidade ali conservada de forma discreta mas eficaz. Nele não nos faltou,
manhã de sol entre carvalhos robles que faziam a guarda, o som duma querida
Escócia emitido por um quinteto de Gaiteiros de Pitões, orquestrados em fundo
pela rumorejante e cristalina água. Soberbo e raro, todo aquele momento, ouvido
também por sardões e embalando um enxame de abelhas que, por uma frincha,
estará preenchendo de favos de mel o interior da parede. Corre água pela ruína
da cozinha cumprindo a velha vontade dos frades como se a natureza se
encarregasse de conservar o mistério e transcendência do sítio, em que ainda se
abrigam e nos inspiram, apesar de tudo, a arte, a ideia e o homem. E a ruína da
lareira e chaminé parece aguardar, paciente, que alguém, disposto a tal,
coloque uma gabela de guiços, de estevas e urzes, a arder, para um agasalho que
asse uns rojões e ferva um caldo num tripé de ferro.
Pode parecer pretensioso todo este
colar de erudição leve às horas do dia-a-dia de quem apenas passeava, a usar o
tempo dum fim-de-semana comprido a visitar amigos. Mas o colar é
intencional. Porque o mesmo movimento artístico cola também, literalmente
falando, o caos nas revistas já publicadas, formas de dissolver autor, obra e
materiais e obtendo no final apenas o resultado, sem o autor, concretização
anónima da mensagem mais importante: a de que os autores, o Autor, de muitas das
grandes obras e descobertas que perduram na Humanidade, são autores anónimos.
Não se trata de serem desconhecidos: trata-se de serem conhecidos pelo seu
anonimato. Por isso estas esculturas espalhadas têm o propósito erudito de não
ser assinadas. Esculturas, re-instalações, outras obras, condensados em papel, a
printed matter, metamorfoses, presentes na Gulbenkian e em Serralves, até em
joalharia mostrada na PIN, Primeira Bienal de Joalharia Contemporânea de
Lisboa.
Já muitos artistas passaram pela
varanda voltada a sudoeste e de onde se pode avistar – capacidade dada aos que
ali vão por bem – a alma e a vida, ao contemplarmos os cimos, as linhas de água
que descem da Fonte Fria, o Beredo dirigindo-se para o Campesinho e a albufeira
de Paradela. Com a pergunta: será anónima a nossa alma na outra vida?
Partiremos para a Eternidade recomeçando, afinal, dum zero redentor que anule e
nos liberte do “vale de lágrimas”?
Na esquina da varanda está um
pedregulho magnífico de perfil, a comunicar-nos com a outra parte do mundo, muito
provavelmente com a Ilha de Páscoa, com outros relais de significado e
olhares, também eles infinitos e intemporais. São diferentes dos nossos, os
caminhos dos artistas, para se chegar à Verdade, percorridos com liberdade e propósito.
Também os de ascetas, os dos místicos, os de quem dá a sua vida nessa entrega a
esses caminhos. Para muitos, esse percurso começará num passeio em que cheguem
ao Marco Geodésico do Anjo da Guarda de Pitões das Júnias, horizonte de dia ou
de noite, cujo alcance poderá ser infinito e intemporal, dependendo do
observador.
A Mariana e eu saímos de Pitões
depois de almoço, despedindo-nos da Margarida, da Inês, da Camila e dos Miguéis.
A Paula, Artur e filhotes já tinham zarpado de manhã. Numa fonte, na estrada
estreita para Tourém, tomei um comprimido de que me esquecera das horas. A água
gelada e saborosa a escorrer do granito, que aparei com a mão em concha, seguia
lameiro abaixo onde pastavam vacas. Parámos em Celanova, unida a Pitões por São
Rosendo. Na esplanada do Café Espolón, voltada para a Igreja de S.
Salvador (onde entrámos, rezámos e saímos), un té y una caña con tostadas.
Em mente e nos meus ouvidos, o Preludio de Also Sprach Zarathustra.
Ainda hoje. A Mariana fazia anos.
O vinho bom também tem de ser giro
Maio
2023
O vendedor silencioso duma garrafa é o
rótulo. Também é o informador, a primeira mensagem do produtor ao consumidor. Numa
relação biunívoca, se for despertada uma paixão por aquele rótulo em particular
e se surgir o arrebatamento para adquirir determinada garrafa, para a abrir,
provar o vinho do seu interior, deixar que esse vinho satisfaça o seu desejo.
Beber vinho é um acto alimentar e de prazer sensual. Por si só, ou a acompanhar
uma sinfonia de outros prazeres sensuais.
Um rótulo é uma mensagem visual
explícita e, também, codificada. Pode ser táctil e, com intervenção dum
smartphone, auditiva e ampliada quase sem limite em complementos vídeo,
informativos, etc. Não vamos para estes campos, já que o nosso foco é o da imagem,
o do primeiro impacto, o dos elementos gráficos e coloridos que estão num bag-in-box, nos rótulo e contra-rótulo duma
garrafa, na gravação duma caixa de madeira ou nas latas dos vinhos novos.
Estou a ver à minha frente o pequeno
grupo de raparigas e rapazes que há uns dias encontrei no corredor dos vinhos e
bebidas do supermercado, phones, gargalhadas e andar descontraído de quem
estava às compras para uma festa acima de teenager, pastilha elástica e
make-ups apelativos, anéis e unhas à Salvador Dali (saberiam eles quem foi o
Salvador Dali?!) a retirar garrafas das prateleiras e a ler os rótulos… de gin,
de vodka, de rum, de groselha, vá lá, dum determinado Porto, a irem fazer
companhia, no carrinho, aos pacotes de frutos secos, azeitonas, batatas fritas
e caixas de minis, latas de tónica e sumos de laranja. Eu estava na busca duma
garrafa de branco para os nossos almoços de sábado. Porque não levam vinhos,
destes? Perguntei, indicando as prateleiras arrumadíssimas das garrafas por
regiões, tintos dum lado, brancos doutro, preços mais baratos em baixo, médios
acima e caros entremeados... Olharam-me, passaram a vista num relance pelas
prateleiras, entreolharam-se e responderam-me, num tom despreocupado: Hm,
não são giros!
Três palavras resumiram o assunto: não
são giros. Se há algo que eu preze é a opinião dos mais novos para testar
as minhas convicções. Observando nessa perspectiva os escaparates dos vinhos,
sob o ponto de vista estético, do sex-appeal, do despertar da emoção que
provoca a vontade de comprar, aquele pequeno grupo juvenil valeu um estudo de
mercado encomendado a uma empresa, e com uma clareza meridiana: a secção dos
vinhos daquele supermercado não é gira. Quem compra ali fá-lo-á porque
sabe do que vai à procura, ou gosta de vinho à partida, ou está familiarizado
com o que foi uma imagem de toda a vida. Não vai atraído por uma questão de
estética, não pega numa garrafa com a curiosidade da capa com que poderá
comprar uma revista num quiosque ou tabacaria, não sente a atracção duma imagem
numa montra de perfumaria e, se tiver ido ao supermercado para arroz ou o que
seja, ao passar pela secção dos vinhos, fá-lo-á despercebidamente porque não há
uma imagem, um jogo de cores, um motivo escancarado que o faça parar, olhar,
perguntar-se o que será aquilo, querer experimentar aquele líquido secreto e
hermeticamente fechado.
Felizmente que tem havido excepções
cintilantes, algumas de grande beleza e erotismo, mas a visão geral do panorama
da rotulagem dos vinhos portugueses é o de um cinzentismo e monotonia triste e
apagada. Há rótulos com arte, com design, com criatividade, mas a regra geral,
apesar da arte, do design, da criatividade, é a da falta de fulgor, ser mais um
no meio da sucessão reticulada das prateleiras. Rótulos que cumprem bem as
normas obrigatórias da burocracia, mas deixam quase tudo a desejar em matéria de
arte, estética ou sex-appeal!
No arquivo do IVV, Instituto da Vinha e
do Vinho, existe uma colecção notável de rótulos antigos iniciada no tempo da
Junta Nacional do Vinho, e com alguns anteriores, em que uma boa parte mete num
chinelo a esmagadora maioria dos que hoje em dia revestem de forma pobre as
nossas garrafas. Seria um serviço à cultura e à causa se fosse feito um
ficheiro online com tal acervo, disponível ao público. Há uns anos, n’
Observador foi publicado um artigo muito interessante , sinal duma
evolução artística dos rótulos em Portugal. Basta ir dar uma volta pelo OLX
para se perceber a imensa variedade e incrível riqueza artística dos rótulos
antigos. Vale a pena gastar tempo a surfar as ofertas e ver a diversidade, a
criatividade, o empenho com que, num tempo não tão fácil nem ao alcance dum
clic, os artistas gráficos e as tipografias de Portugal executavam de forma
exímia e brilhante os trabalhos encomendados.
Cada marca tem as suas especificidades
e os seus objectivos. Nem tudo passa pelo rótulo. Mas num tempo em que o
consumo per capita do vinho está a aumentar, em parte porque haverá menos
consumidores a beber, deveria merecer atenção a captação de público e seria,
até, vantajoso, o seu desvio das bebidas brancas e shots em cocktail para a
experiência estética, cultural e artística que pode e deve ser a do vinho.
As revistas de vinhos e os suplementos
de jornais trazem boa publicidade com anúncios bonitos. Mas a malta nova, a não
ser a do sector, não lê essas revistas nem frequenta essas páginas dos jornais.
Passa nos corredores dos supermercados, vai aos restaurantes e bares onde há
vinhos nas prateleiras, mas que não lhes emocionam a vista. A malta nova, que
tudo gosta de experimentar se sentir uma solicitação para o fazer, só reparará
no leitmotiv vinho se lhe for dada uma emoção para isso. O rótulo pode ser essa
primeira emoção. Se for giro.
Vets e Vets
Maio 2023
Anos sessenta. As restolhas de aveia
e de trigo estavam iluminadas pelo sol rasante que se punha ao lado da Serra de
Pinhovelo e a Gracinha, com uns dez anos a tomar conta de nós, o Zé, o Beto e
eu, tínhamos sido chamados da varanda para irmos lanchar. Passávamos a linha de
caminho de ferro que era tangente às casas e entrávamos no pátio da Estação de
Fomento Pecuário, familiarmente chamada “a pecuária”. Era um mundo todo, ali: à
volta havia paredes de granito, as casas dos empregados e a do director, a que
se acedia por umas escadas, o cabanal onde se abrigavam o tractor e as
máquinas, os estábulos com os animais de cobrição (um charolês enorme sobre o
qual um dos tratadores nos tinha colocado, à vez, às cavalitas!) e as vacas, as
ninhadas de pintos com o moderno de terem uma lâmpada de aquecimento suspensa e
um pequeno comedouro de zinco que os obrigava a uma formação lado-a-lado. O
cheiro da silagem. O rebanho tinha ficado ainda no campo de onde viéramos.
Subimos as escadas a correr e a senhora dona Luisete, a mãe da Gracinha e do
Zé, tinha à nossa espera torradas com doce de cereja, copos de leite e fatias
de bolo. O Pai não estava. O Dr. José Maria da Silva Lobo era também Presidente
da Câmara, além de Director da Estação de Fomento Pecuário. Eu sabia que ele
era Médico-Veterinário, o segundo que eu conhecia na minha vida com a
consciência de o ser.
Porque o primeiro tinha sido o Dr.
Botelho, pai da Bli, do Fernando e do João, que faziam grupo com as minhas
irmãs e com o meu irmão Carlos, mas não comigo, pela diferença de idades. Contudo,
o Dr. Botelho estava bem presente na minha vida: eu escutava-o atentamente nas
suas conversas com o meu Pai na Estalagem do Caçador, a sua voz grave de baixo,
a careca inconfundível, olhar perscrutador e nariz de águia, as opiniões, que
me lembro de serem muito consideradas, sobretudo acerca de música clássica. Era
o maior melómano da nossa vila e um piano que mandara vir tinha estado durante
meses, para nossas delícias, em nossa casa, a aguardar que houvesse espaço
condigno na sua.
O Dr. Botelho era o Veterinário
Municipal, inspeccionava as rezes e a carne no matadouro e nos talhos, o peixe
que vinha de combóio e de camioneta para a peixaria e para as peixeiras
ambulantes, os ovos que se vendiam um pouco por todo o lado. Vacinava os cães.
Dava consultas a algumas emergências e vacinava/desparasitava alguns gados. Na
realidade, superintendia a tudo isso com olhos inteligentes, ar sonhador e mãos
nos bolsos da bata, porque em todos estes trabalhos tinha os ajudantes, alguns
pagos pela função oficial e outros a que pagava ele. Além do seu ordenado
camarário, tinha ainda um complemento dumas aulas de matemática que dava no
ciclo preparatório ou no colégio, não sei bem. O que sei bem é que a mim e a
uns colegas meus deu explicações de geometria e matemática durante meses ininterruptamente,
pro bono, às quintas-feiras à noite, exceptuando a duma certa
quinta-feira, semana e meia depois da Páscoa de 74, em que aparecemos, mas a Senhora
Dona Maria Augusta, à porta, nos disse que não iria haver estudo nessa noite
porque o nosso Dr. Botelho há horas que não saía de diante da televisão. Uma
semana depois retomou as explicações e a sua normalidade na vida foi importante
testemunho para todos nós.
Todos os veterinários da altura
tinham ideias, alinhamentos e atitudes políticas de que não abdicavam. O
tabuleiro político de Trás-os-Montes era cheio de peões que mudavam de casas e
de cores nesse tumulto social dos anos sessenta e setenta e em que as figuras
principais, reis e rainhas, bispos, cavalos e torres, também se movimentavam,
não segundo as regras do xadrez, mas segundo as da política nacional e as da
consciência, ou a falta dela, de cada um. Havia vários jogadores a movimentar
as peças, mas sem dúvida que o mais activo era o Eng.º Camilo de Mendonça, com
o qual todos os Veterinários da nossa região, de forma mais chegada ou mais
alérgica, tinham relacionamento.
O Dr. Lobo acabou o mandato de
Presidente da Câmara, mas como tinha sido colocado pelos opositores do Eng.º Camilo
de Mendonça, teve de deixar não só esta função, mas também a de Director da
Estação de Fomento Pecuário, na onda Caetanista, em 1969, onde foi substituído
por um seu afecto, o Dr. Luís Ferreira (marido da minha professora de francês
no Colégio de Macedo), fiel à cousa até ao momento em que deixou o próprio
tabuleiro de xadrez e passou a fazer um jogo à parte. O Dr. Botelho também
sairia de Macedo, mas por questões de carreira e de idade e o seu lugar viria a
ser ocupado pelo nosso excelente amigo Dr. João Pessoa Trigo, aliado sem
condições do Eng.º Camilo de Mendonça e apoiante do regime, Presidente da
Câmara de Alfândega da Fé.
O meu imaginário sobre médicos
veterinários, à época, tinha sido construído por todos eles e por coisas que eu
lia. Mais cultos, mais viajados, mais próximos do que a bitola média, detentores
duma aura social relevante pela identificação com as nobres missões da pecuária,
da alimentação, da saúde pública e do socorro aos agricultores nos problemas
relacionados com animais. Os médicos veterinários eram um dos pilares da
sociedade, sobretudo da sociedade de província, e fonte de inspiração de
carreira e de decisões de vida. De tal modo que nos Verões de 75 e 76, quando
conversei com o Álvaro Mendonça sobre, precisamente, essas decisões de vida, as
minhas hesitações entre história e medicina ficaram desfeitas indo para
veterinária. Decidi-me, então, a que um dia voltaria a esta minha terra
imitando os passos de James Herriot, o autor de If Only They Could Talk
e de All Creatures Great and Small (outros títulos surgiriam mais
tarde). O nosso Trás-os-Montes natal seria o Yorkshire de James Alfred Wight. Consegui, felizmente, até certo
ponto, cumprir esse desígnio pessoal e um dia publiquei o meu Quartzo,
Feldspato e Mica, Vidas de um Veterinário, republicado aqui.
Para ser médico-veterinário foi
preciso ir para Lisboa. Apesar da turbulência que ainda se sentia, anos setenta
em brasa e em crise, nas aulas era perceptível o justo orgulho com que os
mestres nos apontavam os enormes progressos e contributos para o país que os
veterinários tinham dado e continuavam a dar: na investigação científica e na
investigação científica aplicada, no ensino superior, no melhoramento e
produção pecuária nacionais, no abastecimento de leite, nas indústrias
agroalimentares, na captura e preparação de peixe, na caça, nos desportos
hípicos e tauromáquicos, na saúde e higiene públicas. Também apareciam as
práticas relacionadas com animais de companhia. As vindas e idas de férias
foram aumentando o sortido de emoções e a visão de futuro na linha do
idealizado. E o início da vida profissional, coincidindo com um período
especial de progresso que o país teve, no final dos anos oitenta e noventa,
seguiu o seu curso em ascenção. Veterinário de campo plurifacetado, atendendo
as pessoas e fazendo parte das suas vidas.
Só que esse mundo foi acabando e
hoje, trinta anos passados, os médicos-veterinários enfrentam grandes angústias
e incógnitas. Uma boa parte da população de onde saem os estudantes diplomados
é desligada de qualquer contacto com o campo ou a vida rural. A sociedade mudou
o paradigma com que encara os animais. E, na mesma sociedade, o Médico-Veterinário
não é o pilar de outrora, mas um mero prestador de serviços e cumpridor de
regulamentos, especializado, em que a vocação foi substituída por uma visão
mercantilista e de concorrência entre os pares. Concorrência violenta, tantas vezes com a aflição da sobrevivência,
que fez e faz com que se estilhacem os níveis mínimos que haveriam de estar
presentes no bom relacionamento deontológico e na boa ética do exercício da
profissão. O desencanto, quando não o desespero, são frequentes em muitos dos
que se licenciaram em medicina veterinária e lamentam o erro de cálculo na
tomada de decisão do seu curso superior.
Não será possível, porque isso nunca
acontece na História, um regresso atrás – nem seria desejável – mas já será
possível dar uns passos à frente para se ultrapassar o actual estado de coisas.
Ainda há pouco tempo ouvi o meu filho Manuel – médico-veterinário já da nova
vaga da Ajuda, mas oriundo dum íntimo contacto com o campo e sem a visão mítica
que deste tem a população urbana ou de subúrbios – queixar-se dum aspecto ou
outro da sua prática médica e valorizar outros. Sorri para mim. Fiquei
contente. Porque o estava a fazer na justa medida em que se deve equacionar o
exercício da nossa profissão se se quiser andar para a frente e ultrapassar a
nossa realidade sombria. Tal passa, na base, por um posicionamento filosófico
do nosso exercício profissional.
Tenho aqui de interromper o fio e de
fazer um parágrafo de homenagem aos nossos mestres que nos instilaram esta
visão filosófica nos antigos bancos dos anfiteatros da Gomes Freire,
implicitamente. Teria de citar muitos nomes. Vou-me reduzir a um. Porque o basta
em nome de todos. O do Professor Doutor Abreu Lopes. Juntava em sua casa grupos
de alunos por várias razões: ou porque os notava com capacidade para ter
camaradagem com os demais ao longo da vida, ou porque os sentia algo
desencantados e a precisar dum empurrão, ou porque os queria distinguir com um
gesto de amizade e significado para além dos laboratórios e aulas na Escola
Superior. Nesses encontros, normalmente ao jantar, era distribuída uma pagela
de Santo Elói, supostamente o protector dos Médicos-Veterinários. Supostamente,
porque a razão pela qual o foco era posto neste santo, medieval e de charneira
entre dois mundos, era outra: estudara graças aos pais, humildes lavradores e
que mais nada tinham podido deixar ao filho que não fossem os seus estudos e,
muito importante, era e é ainda hoje o exemplo da integridade e da honestidade,
qualidades essenciais para o exercício pleno duma profissão e relacionamento
com os demais. Ora acontece que, quer a dádiva dum bem intangível como o duma
licenciatura, quer o ser-se honesto e íntegro, são tudo características que só
fazem sentido num ser humano. E aqui reside o essencial do que o Professor
Abreu Lopes e os demais nossos mestres (na generalidade) nos transmitiram: o
foco da vida dum médico-veterinário não é “os animais” mas, sim, as pessoas, o
Homem.
No centro da nossa actividade e
atitude social tem de estar a pessoa, homem ou mulher, que temos diante de nós.
Quer por ser o nosso colega, quer por ser o dono do nosso doente, quer por ser
o produtor de leite, de carne, de ovos, seja o que e no que for, quer seja,
ainda, o utente ou consumidor de qualquer produto de que temos a obrigação de
assegurar a qualidade e segurança. O nosso interlocutor não é a vaca, ou o cão,
ou seja que animal for. O nosso interlocutor é sempre alguém que tenha poder de
decisão e/ou direito de propriedade sobre os animais. Será sempre na
salvaguarda dos interesses e dos direitos e deveres dos donos dos animais que
se deverá exercer a nossa profissão. É o Homem quem tem deveres para com os
animais e exerce alguns direitos sobre eles. Pensar e querer o contrário, o da
sobreposição dos animais em relação ao Homem, é um retrocesso à idade das
cavernas em que o medo dominava nas interdependências entre seres. O futuro irá
achar tremendo o momento que vivem os Vets. Mas este momento passará porque o
futuro foi sempre feito de progresso, com alguns lapsos de tempo em que
ocorreram fugazes (mas terríveis!) retrocessos. Oxalá passe depressa.
Na nossa aldeia ainda pastam, felizes, dois rebanhos, e os cães circulam livremente. Podemos falar por telemóvel com cada um dos pastores (seria impossível com as ovelhas 😊). Quando os vejo ao fim de tarde a passar numa restolha ou num terreno ondulado em que fica o seu recorte contra a Serra de Bornes, sinto-me muitas vezes remetido para os tempos, que agora já posso dizer antigos, em que conviviam os Amadeu Rodrigues, Lobo, Ferreira, Lisboa Botelho, Pessoa Trigo, outros… e em que corríamos à voz do lanche, que trincávamos a ouvir chocalhos.
Partilhas, objectos, valores e coisas antigas
Julho
2023
Demos há meio ano um novo impulso a
umas partilhas de família que deveríamos ter feito… há meio século! Casa
indivisa, necessita de ser esvaziada para dela se poder dispor para venda.
Está, assim, a “partir-se” um recheio que por si só é um repositório de
muitas gerações (literalmente), o que implica lidar com sentimentos,
recordações, idiossincrasias e inesperados que nos assaltam, vindos do
consciente e do subconsciente, despertos e capazes duma confusão que tudo pode
comprometer. Entendendo por “tudo” a tarefa de se conseguir pôr fim a esta fase
do processo num tempo razoável, um ano no máximo.
Na realidade, as partilhas começaram há
meia dúzia de anos, quando se mandou avaliar o recheio da casa e se lavrou uma
primeira acta em que concordámos com os valores. Isso permitiu calcular a parte
de cada um, em euros, e tomar decisões. Quando nos reunimos presencialmente, já
todos tínhamos uma ideia sobre o que queríamos e não queríamos e o facto de
estarmos a lidar com objectos, a que está inerente um valor, permite uma melhor
gestão de expectativas. Tudo fica facilitado, assim, até porque as partilhas estão
a decorrer entre duas gerações diferentes (na parte dos irmãos que já morreram
sucedem os seus filhos, sobrinhos dos sobreviventes da geração que realiza as
partilhas) com diferentes perspectivas sobre o passado, o presente e o futuro.
Das coisas inventariadas, foi escolhido
por cada um o que cada um quis, abatendo no valor do respectivo lote. Mas há
móveis e objectos sobrantes, por nenhum dos herdeiros neles ter interesse, quer
inventariados, quer não inventariados. Os sobrantes inventariados estão a ser
vendidos ao público em geral e os não inventariados têm sido escolhidos por
quem os prefere, entre os herdeiros, em harmonia e sem tricas porque o seu
valor é, também, residual, e o interesse na sua posse é muito relativo entre
cada um. Do dinheiro realizado com a venda irá ser preenchida a quota-parte dos
que não quiseram esgotar a sua com os móveis e objectos existentes. So far, so
good.
Tem havido factos inesperados: uma
pequena colecção de moedas que apareceu no fundo duma arca e uma série de
garrafas de vinhos antigos que se descobriram, de dois esconderijos da casa (é
uma casa dessas!...), por se tratarem de extras em relação ao inventário
inicial, acabaram leiloados numa empresa de Lisboa da especialidade, com
sucesso. Também os livros em geral e uma colecção de selos foram considerados
extra-inventário. Já muito depauperadas, quer a colecção de livros quer a de
selos, estão ainda numa nebulosa de valores (alguns com dados concretos porque
um alfarrabista de Guimarães e a net têm ajudado a fixar montantes), mas a ser
a pouco e pouco encaminhados para quem os queira trocar por cash, apesar de
tudo. É extraordinário o que se têm desvalorizado as bibliotecas e os selos nos
últimos anos!
Enfim, tudo a andar. Menos depressa do
que se gostaria, mas tudo a andar. Há roupas antigas, ainda, e velhos adereços
em que ninguém tem interesse, mas como, por diversas vezes, algumas peças foram
emprestadas para exposições históricas, irão ser inventariadas e fotografadas e
mandadas, para constituição fum fundo cultural relacionado em nome da família,
para a Câmara Municipal. Pro bono. Antes que as traças, o pó e o mofo dêem cabo
de tudo.
Sobrará uma quantidade apreciável de
bric-à-brac que se irá vender no final, lá para o Outono. Esta “venda final”
será feita quando na casa já não estiver nada do escolhido pelos herdeiros
porque, evidentemente, toda a prioridade é deles (nossa, somos oito!).
A pouco e pouco as paredes estão a
ficar despidas e os aposentos a ficar vazios. E tudo num caos: onde dantes
havia uma ordem do dia a dia da nossa Mãe e do nosso irmão, os últimos a viver
na casa, ordem essa que vinha do tempo do nosso Pai (desaparecido em 1977) e
dos nossos Avós (o Avô morreu nos anos quarenta do século XX!), agora está
subvertida, com uma mistura de móveis e objectos anárquica, ditada pelas
circunstâncias de cada um juntar as suas coisas a aguardar oportunidades de
transporte (nós vivemos a 8 km mas as manas e sobrinhos vivem a oitenta, a
duzentos e a quinhentos, arredondando!) ou pela conveniência de poder mostrar o
que é vendável a quem o quer ir ver antes de comprar. As portas interiores
estão todas abertas para que os detectores de intrusão funcionem melhor (e têm
funcionado: há dias, da Securitas, telefonaram-me repetidamente por causa dum
disparo insistente, afinal um dos nossos cães tinha conseguido introduzir-se e
ficado esquecido dentro de casa num momento de distração!...). E os sons da
casa mudaram. Quando estou lá dentro a separar livros, a reagrupar itens ou a
espiolhar gavetas, ouvem-se melhor os ruídos da rua e passaram a ser diferentes
as madeiras que rangem com os nossos passos e os estalidos que se ouvem no meio
do silêncio de abandono. Faz muita impressão.
As emoções são muito epidérmicas nos
momentos de partilhas, mas isso é o pior que pode acontecer para que as mesmas
se concluam com sucesso. São inúmeros os exemplos, na nossa primalhada e demais
família, das partilhas que correram mal: as queixas dos que se sentiram
prejudicados (fantasia, quase sempre, em termos objectivos), as combinações
absurdas por escrúpulos absurdos ou invejas inconfessadas (se não vai para
mim também não irá para ti) que comprometem, tantas vezes, o sucesso e o
equilíbrio: coisas que a família vendeu noutro tempo e sem qualquer
necessidade; objectos que se estragaram por passar sobre eles tempo demais em
propriedade comum (um quadro valioso apodreceu nos terceiros duma das casas,
por falta de inteligência quanto à sua posse, há quase um século!) e quanta
mobília não ficou carunchosa, serviços de prata se descaminharam, trens de
cobres e polidos que sub-repticiamente foram desaparecendo em autênticos
roubos, consentidos por inércia, incúria cúmplice ou incompreensível indiferença!
Não fazer bem as partilhas é uma
desonra e uma desconsideração para com quem nos legou o património a dividir. E
honrar e considerar esse património é, antes de mais, fazer com que não se
estrague ou perca com considerações emocionais e sentimentais. Alienar em boas
condições o que se herdou é muito melhor do que permitir que se fique a
estragar ainda que “sem sair da família!”, argumento fútil. E, também,
não permitir que o que são, tantas vezes, testemunhos e documentos históricos
no seio da família, venham a parar à fogueira ou ao triturador de papel só
porque se entende, preconceituosamente, que “se deve respeitar a intimidade”
dos que já não estão connosco. Os que não estão connosco, tão ou mais
inteligentes do que nós, tinham perfeita noção da sua intimidade, privacidade e
segredos. Se os escreveram ou mantiveram em notas, agendas, rol de despesas,
trocas de cartas, e não quiseram destruí-los em vida (ou não deixaram
determinado que fossem destruídos após a sua morte), que direito temos nós para
os julgar a posteriori e os remeter para a fogueira e para o triturador de
papel, não tendo sido os seus autores? Que se guardem num cofre ou em pastas
com senha de acesso, permitindo uma ou duas gerações de intervalo de tempo,
ainda é compreensível, mas destruir algo que levou horas, dias, anos a ser
trabalhado é um verdadeiro crime à memória familiar e uma falta de respeito não
só para quem nos antecedeu como para quem nos suceder directa ou
indirectamente, numa ou em mais gerações). Fico arrepiado quando ouço dizer que
se destruíram agendas, álbuns de fotografias, bobines de filmes, cartas e
rascunhos de cartas, maços de correspondência, anotações em livros,
dedicatórias, coisas dessas, em nome dum suposto respeito pela memória dos
mortos! Que contradição. Que obscurantismo.
Não é fácil e é doloroso entrar agora
na casa, sentimentalmente falando. Contudo, por outro lado é entusiasmante e
deixa sonhar, entrar agora na casa. O facto de estar tudo remexido, dos móveis
terem deixado os seus lugares, das paredes apresentarem sinais de abandono, dos
espaços terem passado a estar por preencher, mistura-se nessa atmosfera tudo o
que há e deve ser misturado quando se parte para novos destinos. Que é o que as
coisas – e a própria casa! – estão em processo de conseguir: partir para um
novo destino como alternativa à sua decomposição e fim. Ao fazermos partilhas
estamos a conseguir que tudo ganhe um pouco de imortalidade, seja a caixinha de
pó-de-arroz da Avó, o tabuleiro de xarão em que se servia o chá, os livros de
mesinha de cabeceira, as revistas e almanaques com as actrizes fatais de há um
século, os potes de cozer as carnes para alheiras, os pratos companhia das
índias, as fotos de tantos desconhecidos (por que não haveriam de as legendar
nas costas?!), as camas, as mesas e as cadeiras, os bibelots sugestivos dos
momentos e vivências de outrora. Os fantasmas dos nossos antepassados não estão
mais ali para nos perturbar – estão na nossa cabeça em recordações para lhes
sentirmos o orgulho de os honrarmos com os nossos actos e respeito pelo que foi
seu.
A esta velocidade, estou convencido de
que conseguiremos terminar as partilhas dos bens móveis no tal prazo expectável
dum ano. Todas? Quase. É que há um objecto que foi subtraído ao rol
inventariado porque iria desequilibrar todo o conjunto. Será vendido à parte e
o dinheiro conseguido será repartido pelos herdeiros. Que objecto é esse? Um
óleo sobre tela, antigo, que há séculos está com a família. Deixá-lo-emos para
uma próxima crónica, porque o merece por si!
Madonna con Bambino
Julho
2023
Na crónica anterior, referimo-nos a
haver um objecto subtraído ao rol nas nossas partilhas, para venda à parte.
Trata-se dum quadro a óleo, com uma grande moldura de madeira esculpida, com
dourado antigo, de dimensões razoáveis, 131x142 cm. É uma peça com uma grande
carga emocional na nossa família: a ele rezaram antepassados, entre eles, as
nossas tias-avós e, na presença da Senhora contemplando o Menino dormindo,
numa cama de dossel, no quarto principal de casa das Sousas, morreu a nossa Avó
Micas, a mais velha das netas dos últimos morgados.
O quadro passou a viver, atravessando a
rua numa tarde pelas mãos da nossa empregada Adelina, de Casa das Sousas para a
dos nossos Pais, na parede da sala de visitas, como uma afirmação de carácter
próprio, a de que, se um dia fosse preciso a família desfazer-se de qualquer
coisa por algum motivo, seria melhor desfazer-se de tudo o mais, do que desta Senhora
contemplando o Menino dormindo.
Ficar na posse do quadro foi como uma
transfusão de sangue! O Miguel, o neto primogénito dos nossos pais, tem uma
fotografia em que posa sob a tela já na nossa sala, do tempo que viveu com os
avós, tal como há várias da Lígia, vestida de noiva, no dia do seu casamento,
quase a fechar os swinging sixties, em contraponto, também com a mesma
parede de fundo.
Há muitas gerações que o quadro está connosco,
por isso, e em muitos momentos de família nos tem acompanhado. Grandes Natais
aqueles, presentes desembrulhados sob o instante barroco duma cena que, de
certeza, não aconteceu em Belém!, mas que tem uma grande beleza e poder de
extasiar. Ao fim de alguns momentos a contemplá-lo, fala-se involuntariamente
baixinho, não vá o menino acordar!
A nossa ignorância, mas intuitiva
sensação sobre este magnífico quadro, a de que estávamos perante uma obra de
arte significativa, desenvolveu ao longo dos anos e das gerações uma mitologia
própria que o fez ganhar contornos sensacionais. Tal como uma vez, faltando há
décadas imemorias um dos florões dos vértices da moldura, sendo copiado por
modelo dum dos originais pelo Zézé Carpinteiro (um verdadeiro mestre que
conheci bem, com oficina minúscula no Prado de Cavaleiros e um génio maiúsculo
em capacidade de execução de trabalhos e maestria de mãos, com o formão e os
demais utensílios que manobrava, certeiro e a parecer fácil, diante dos meus
olhos extasiados), enviado a um dourador de Lisboa no Bairro Alto, veio com o
trabalho feito e um comentário eloquente: vai dourado de maneira diferente,
porque nos seria impossível e não nos atrevemos, a ser dourado de maneira a
imitar a igual e tão rica.
As coisas certas que se sabem, sobre a
origem da nossa Madonna con Bambino, óleo sobre tela, 122x111 cm, são as
de que esteve, até 1904, no quarto de dormir do senhor morgado, no solar de
Macedo, em conjunto com outros dois óleos de dimensões semelhantes; que
transitou para a casa das Sousas onde se manteve até 1967 ou 69; que veio para
nossa casa, ocupando uma das paredes originais do quarto do senhor morgado,
senão mesmo a mesmíssima parede em que esteve exposto tantos anos, quarto
entretanto transformado, em duas salas de visitas, pelo Avô Amadeu.
Sobre as origens, há várias
conjecturas. Uma, a de poder ter sido adquirido e colocado na casa pelo
co-fundador do morgadio, o Padre José de Oliveira da Costa, no século XVII.
Outra, a de ter sido o Padre Manuel Caetano de Morais Pinto, da Amendoeira, que
cursou cânones em Salamanca no século XVIII, e várias vezes terá comemorado o lunes
de aguas, a trazê-lo para o nosso país, e a vir para Macedo por herança da
trisavó do último morgado, Ana Maria de Morais, sua filha. Outra, ainda,
bastante plausível, de ter sido adquirido, pelo morgado Bernardino José, no
espólio arrematado em praça do antigo e extinto convento de Nossa Senhora das
Flores, de Sezulfe. Esta hipótese explicaria a existência dos outros dois
quadros no conjunto do aposento de dormir mais nobre da casa, já que um deles é
um São Francisco, que desde há anos está com os primos no Porto (e o Convento
das Flores era franciscano), e outro se terá literalmente desfeito, por incúria
e desavença de partilhas, no sótão da casa de Vale Benfeito. O tema da origem
do quadro foi sempre, e mantém-se, em aberto, podendo nenhuma das hipóteses
acima referidas ser, afinal, a verdadeira, e tendo vindo do Vilar do Monte,
onde os Jesuítas tiveram uma casa que posteriormente foi secularizada. O que é
certo é que ele existe e é o da foto que acompanha este artigo.
No início deste século, um grupo
académico da Associação Terras Quentes, que fazia um trabalho de inventário de
arte na região, pôde observar a tela, in loco, e levantou-se a hipótese,
escrita em artigo assinado por Vítor Serrão, que liderava
a equipa científica, de poder ser um trabalho inspirado num modelo clássico do
pintor bolonhês Guido Reni (1575-1642), Madonna in adorazione del Bambino dormiente,
óleo sobre tela, 93x120 cm, original hoje na Galeria Doria Pamphilj, em Roma,
muito em voga e difundido na época pelo desenho de Lubin Baugin (um dos
seus discípulos poderia ser o autor) e gravura de Claude Charpignon. Há
várias versões do mesmo tema quer em Portugal quer no estrangeiro e em diversos
suportes e dimensões, por exemplo no palácio dos Condes de Basto em Évora, na
Catedral de Salamanca (na Capilla de San Nicolás de Bari), e outros, alguns dos
quais pudemos observar em lojas de antiguidades de Lisboa e um deles aparecendo
na revista Casa e Jardim de Novembro de 1987 (que saudades e que falta
faz essa revista!) na página 37. Nenhuma dessas versões, contudo, tem a beleza
do traço e equilíbrio de composição da de nossa casa. Uma amiga nossa, perita
em arte, de olho fulminante e criterioso discernimento nas opiniões, entendeu
posteriormente que o modelo da nossa tela poderia ter sido um original de Giovan
Battista Salvi detto Sassoferrato (1609-1685), Madonna con Bambino, óleo sobre tela,
95x113 cm, que hoje se encontra no Palácio Barberini, em Roma, mais do que o
original de Reni. Provavelmente, a nossa tratar-se-ia duma cópia por mão
espanhola, eventualmente feita em Roma. Inclino-me a poder concordar com ela se
uma determinada análise (que não quero revelar) fosse feita ao quadro.
Seja como for, há numerosas versões e a
net apresenta bastantes (basta introduzir as designações no motor de busca),
pintadas em diversas épocas e com os valores de mercado mais díspares.
Com quase todas as paredes vazias, o
processo das partilhas vai a mais de meio, andar nas salas e aposentos da nossa
casa é o mesmo que estar a viver algumas passagens de Agustina ou de Camilo:
fotografias, litografias, gravuras, outros quadros a óleo, espelhos, tudo e
todos se têm retirado para outras partes. Cada vez mais, o espaço deixado vazio
pelos móveis dá lugar ao seu preenchimento por estórias, saudades e
recordações. Permanece ainda a nossa Madonna con Bambino.
Consultámos, formal e informalmente,
várias empresas nacionais de antiguidades e leilões. Todas desvalorizaram a
tela e continuam a não demonstrar qualquer interesse. Umas, atribuindo números
de transacção que ficam aquém do da moldura por si só!, outra, informando-nos
doutamente que as cópias de velhos mestres não têm cotação no mercado e, ainda,
outras apontando os defeitos da tela mas sem a terem visto! Costuma-se dizer
que quem desdenha quer comprar. Neste caso não daremos crédito a
provérbios. Porque há um que diz que de Espanha nem bom vento nem bom
casamento e, provavelmente, o que acontecerá irá ser um retorno da tela por
um dos caminhos por onde poderá ter vindo…
Edgar Sampaio Fontes – A tranquila felicidade
Julho
2023
As portas abertas para a varanda com o
mar em frente, o som das ondas da Baía de Armação de Pêra, arrepios de
gaivotas, azuis e verdes neste tapete de água estendido até Marrocos.
Tranquilidade cheia de azáfamas na areia, maré-baixa de passeio e despertares
de férias. Nasce o sol.
Feliz, esta luz do Sul, captada pelos
poetas de Silves e de Cacela, passada a escrito nas letras de Sophia, de
Fernanda de Castro, do Ary, bebida pelos olhos de fazedores do dia-a-dia,
gizada nos estiradores e obras dos arquitectos de paisagens. O apartamento em
que estamos mantém a presença de Edgar Sampaio Fontes como se ainda hoje a sua
carga científica e extensa cultura, humanista e abrangente, zelassem pela
defesa da paisagem portuguesa numa felicidade que não morreu. Nos jardins do
Bairro de Alvalade, nos do Palácio dos Coruchéus, nos do Centro de Arte Moderna
da Gulbenkian, em numerosos outros trabalhos conserva-se, viva, em plantas e
canteiros e em desenhos de recantos e linhas de horizonte, a memória do sonho e
da concretização do sonho. Numa conversa de ontem à noite se relembrava a
capacidade notável que tinha de distinguir as variedades de rosas pelas notas
de aromas, e, por isso mesmo e exímia ciência botânica, a participação como
convidado para júri de muitos concursos internacionais pela Europa fora.
Tivemos e temos arquitectos paisagistas
de génio: Caldeira Cabral, Ribeiro Telles, Azevedo Coutinho, Vianna Barreto,
Ilídio de Araújo, Álvaro Dentinho, Vaz Pinto, António Campelo, Sousa da Câmara,
Teresa Andersen, e se estes nomes estão a ocorrer como se pairassem com os voos
e com a ondulação, é talvez porque o nosso beber da paisagem nos seja inerente
e viciante para quem se identifica com Portugal. Como Edgar Sampaio Fontes.
Este apartamento de férias em que
estamos, pela mão da Tété e do Luís, tem mais do que o mobiliário resumido dos
apartamentos de férias. Um armário de autor com um recheio intelectual de
livros, de modelos de barcos e de aves de madeira, de conchas apanhadas na
praia e duma colecção notável de louças da SECLA, das Caldas da Rainha.
Estrelas-do-mar. Nas paredes, uma destas estrelas e oito quadros com barcos,
peixes, conchas, motivos oceânicos, das de lojas de decoração… mas há três
deles especiais, estarem aqui deve-se a razões especiais, supomos – temos a
certeza!
Um deles, “Abstracto”, uma
serigrafia de Catarina
Castel-Branco (n. 1956), que para a Mariana se trata dum frasco de perfume
e, para mim, duma bomba, e que, certamente, será uma outra coisa, real ou
onírica.
Outro, também uma serigrafia, de
Cipriano Dourado (1921-1961), é uma Camponesa,
de 1962, original na Gulbenkian, que a olhar-se para ela é ver uma menina
plantadora de arroz ou ceifeira de trigo que, por sua vez, nos fita a nós mais
fortemente ainda – gesto inteiro cumprindo-se no olhar-convite de intervalo no
esforço do campo, interpelação. Se não nos travarmos na observação podemos
perder-nos e achar-nos poetas. Com isso faríamos justiça à vontade do pintor
neo-realista, obsessivo nos traços de a ninguém deixar indiferente e a todos
querer despertar. Para a poesia e para a realidade, formas particulares dos
artistas fazerem a sua descoberta das verdades.
Finalmente, de Dorita de
Castel-Branco (1936-1996), um desenho a lápis de côr, dos apontamentos para
a exposição-série O Jardim das Delícias, levada a efeito na Estufa Fria
em Outubro de 1977. Dorita detestava o cheiro de tintas e diluentes, que lhe
eram insuportáveis, e, por isso, os seus esquiços e notas são a lápis sobre
cartão ou papel. Este não fugiu ao hábito e serviu de correio. A genial
escultora trabalhava no atelier número 3 dos Coruchéus, a que teve acesso ainda
antes da inauguração e concurso, nesse início dos anos setenta. Os seus
elementos de escultura frequentavam diversos jardins e recantos de Lisboa,
conhecidos ao centímetro por Edgar Fontes. Tal como conhecia todos os artistas
da cidade, que com ele partilharam muitas cumplicidades e a quem valeu de
incentivo em numerosas ocasiões.
O arquitecto paisagista e exemplar
profissional dos serviços da autarquia de Lisboa tinha uma visão completa sobre
a arte da cidade e o seu enquadramento. Foi responsável pela Estufa Fria e por
outros espaços verdes que, entrados na normalidade das nossas vidas, acabamos
por nem pressentir o trabalhão que têm por detrás. O génio que têm por detrás.
A arte que têm por detrás e pela frente e nos imbebe de beleza e esplendor. A
ponto de nos fazer participar em corpo inteiro da sua ecologia, por que de ecologia
se trata, da qual somos um elemento, o elemento humano, o mais importante de
todos, capaz da sua viabilidade como arte, ciência e sonho.
A profundidade deste conhecimento da
relação sobre a arte e toda a vida de Lisboa palpita num pequenino cartão de
visita de Dorita, encaixilhado com o esquiço a cores para uma das realizações
de O Jardim das Delícias, manuscrito a acompanhar a mensagem artística
que lhe enviou, desenhada: 16.11.77 Eng.º Fontes: Para que não se esqueça
que foi o seu “agrément” que tornou “O Jardim das Delícias” uma realidade. Um
beijinho, Dorita. Está aqui no apartamento de praia. Na mesma parede que,
dum lado e doutro, tem as portas abertas para a varanda com o mar em frente, as
portas abertas para o infinito e para a tranquila felicidade.
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