De junho de 2022 até ao fim de 2024 publiquei regularmente no eggas.pt quase quarenta artigos que me deram imenso prazer escrever e que suscitaram uma troca de opiniões e conversa interessante com os seus leitores. Como esse site deixou de estar disponível online, esperamos que temporariamente, aqui se republicam para que possam manter-se acessíveis a quem os procurar. Foram revistos num pormenor ou outro. A ordem da sua republicação não é a mesma da que foi a da sua edição original. Mas começamos pelo primeiro, Sardinhas Assadas, em todo o caso, por vir a propósito do mês em que estamos. MC
Sardinhas Assadas
©Manuel Cardoso
Ainda no século XX, a minha vida
profissional disparava quando a de um dos meus melhores amigos de então estava
no ocaso – e fomos grandes parceiros nesse cruzar das nossas curvas de Gauss: com
grande admiração privei de perto com o Dr. João Pessoa Trigo,
médico-veterinário municipal experiente e com um enorme savoir-faire dos
anos em que, antes, fora político, procurador à Câmara Corporativa, Presidente
da Câmara, vida cheia de aventuras que eram uma delícia ouvir.
Tal como era uma delícia quando nos
convidava (o que era frequente) para os seus almoços e, em especial, em dois dos
seus momentos quase sagrados do ano: num dia frio de Janeiro comermos um azedo com
couve (um dos must mais secretos e conseguidos no mundo dos enchidos
tradicionais), e o almoço das sardinhas assadas, nos seus últimos tempos algo
clandestino para que em sua casa não se soubesse destes atentados auto-infligidos
à sua dieta!
Ambas as coisas tinham mais de uma
edição (porque havia vários amigos com quem gostava de partilhar esses momentos
“únicos”) e, se uma delas era no antigo Montemel, um restaurante de cozinha
segura e guardanapos de pano que então existia numa sala de primeiro andar em
Macedo, por cima do Café Central, outras eram no Saldanha, de Peredo, e, ainda, no Armando da Choupada, mais
conhecido como O Cinco Coroas, honestíssimos a servir posta, rodeão ou
bacalhau mas que, por ordem expressa, nos dias aprazados arranjavam o tal azedo
ou as tais sardinhas.
Coisa fundamental para que corressem
bem, esses almoços tinham sempre um vinho escolhido. Com o azedo, comido no
início do ano em dia de geada severa ou de temporal desabrido, o tinto não era
difícil de decidir, um Valle Pradinhos gastava-se em várias garrafas pelos
nossos copos.
O ano corria, passava-se o mês de
Março em que numa pontualidade de cavalheiro ia a nossa casa oferecer um ramo
de flores à Mariana, no nosso dia de casados, e vinha Maio, em que, no dia 28,
se sentava no Café Central a oferecer, aos amigos que o iam cumprimentar, uma
taça dum Raposeira Bruto mergulhado num frappé, e, depois, com
expectativa, chegava-se a Junho e às sardinhas.
O seu gabinete ficava no mercado municipal
e, logo que a inspecção das caixas em que vinham de Matosinhos lhe revelava, ao
seu olho experiente, estarem já pingonas, o recado passava rápido para o dia em
que os pimentos, as batatas, o pão e a salada, se punham prestes a acompanhar
as ditas em local aprazado. Que iriam bem com branco, que iriam bem com tinto,
que o melhor seria sangria, talvez um rosé de novidade… até ao ano em que
descobriu – e logo partilhou connosco! – que o superlativo seria um espumante
e, a partir de então, passámos a ser useiros e vezeiros nos Murganheiras e
Távoras-Varosas a fazer par com as sardinhas. Com um enorme successo.
De tal modo que ainda hoje mantemos o
hábito saboroso de assim fazer, haver espumante para as sardinhas, e, sempre
que alguém nos pergunta o porquê, relembramos o nosso amigo. Mesmo que as tenhamos
assado de modos diferentes, com carvão ou outras brasas, ou queimadas com
caruma e alecrim, o espumante vai sempre bem. Mas…
Nessa época, há mais de vinte anos,
não se usava o vinho verde por estas bandas nem, muito menos, o espumante de
vinho verde. Essa é uma descoberta recente. Não a do vinhão, em malga a ser
sorvida ao comer-se uma sardinha no pão, gesto antigo e experimentado desde a
nossa meninice na Póvoa ou num outro arraial minhoto. Referimo-nos a outra
coisa.
Não era só o efeito benfazejo do gás,
a emulsificar as gorduras aromáticas, que resultara inesperadamente nesse
sucesso, nos almoços com o João Trigo: o trincar do pimento com o grão de sal e
o azeite excepcional, o sabor da batata cozida com casca e a junção,
proporcionada, com o lombo rescendente da sardinha, toda essa mistura na boca,
com o picante da cebola, era, de repente, inundada de perfume, arrefecida como
uma brisa de Verão por dois golos ou três de malvasia fina, de pinot noir, de chardonnay
… até descobrirmos que um loureiro de ano ou reserva, um avesso, um alvarinho,
um azal ou um bom vinho de lote … até descobrirmos que o perfume do Minho ou de
Basto, o cachão dos seus rios, a maresia e o vento da serra são uma das formas
mais perfeitas de se saborearem, em todo o seu esplendor, as sardinhas assadas.
Espumante, frisante, tranquilo com a
sua inquietude natural, o vinho verde é, hoje, um dos indispensáveis desde o
acender fumegante do assador. Termos acabado de engolir o cocktail de sabores
que acompanha a garfada para, logo a seguir, sentirmos a fragância que nos
impressiona, vinda do copo e, simultaneamente, do golo que passou na garganta,
é captar todo o flavour e sentir todo o prazer das sardinhas assadas.
A todos, votos de um bom Santo
António, de bom São João, de bom São Pedro, de boa Santa Bárbara!
Bom Verão, com sardinhas assadas!
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