terça-feira, 12 de agosto de 2025

A Padaria e a alma das coisas


Reeditado do EGGAS.


©Manuel Cardoso

 

Quando vivíamos no Bairro Alto, em Lisboa, na Travessa da Espera, a nossa janela da sala, no rés-do-chão, estava a metros, do outro lado da Rua das Gáveas, da loja de vidros quadriculados, azulejos brancos e balcão de mármore sobre uma madeira pintada dum branco-farinha, e vinha de lá, em instantes benfazejos, o hálito envolvente do pão fresco a pedir para fazer parte de nós. 

Na Póvoa do Varzim, há imensos anos, o nosso andar arrendado para férias ficava, nesse Julho e Agosto, por cima duma nuvem encantadora de papo-secos ou moletes, pãezinhos de leite e regueifas, que adivinhávamos nas prateleiras do piso, por baixo, da Padaria Cadeco, esquina transversal à Junqueira, e fizeram as delícias dessas semanas inesquecíveis de praia em que os trincávamos com fiambre que sabia a fiambre, queijo que sabia a queijo e panados com um pão ralado que hoje em dia não há – e até com chocolate, umas tablettes de comacompão, que se compravam aqui e ali, cuja energia de alta tensão ainda agora faz efeito só de as lembrar!

Na nossa vida profissional de veterinário de aldeias, esquadrinhando nos recantos menos prováveis, muitas vezes pudemos surpreender as fornadas de trigos e centeios a entrar ou sair de fornos antigos, acontecimento em que se misturavam os tons vermelhos e escuros do fogo, com os brancos e cinzas das masseiras e das bolas de pão para cozer, embrulhados em toalhas e panos aos quadrados, até ficarem sob a abóbada de barros queimados, encaixada em granitos ancestrais, tons de brasa branca do calor, arrumados com uma pá de madeira, manobrada por sombras negras dos lenços à cabeça das mulheres, que rezavam auspícios ou davam graças, os polvilhavam proferindo orações e imprimindo símbolos na massa ainda mole. 

Tudo tão especial e tão excepcional, mas que, por fazer parte das nossas rotinas, nem nos dávamos nem damos conta, a sério, da sua especialidade e excepcionalidade: o podermos trincar um pão. Deveríamos considerá-lo com muito mais importância:  se já existisse no Paraíso, Adão e Eva não se teriam deixado levar a troco duma simples maçã! Impor-se-lhes-ia, mais alto, o cheiro do pão cozido, algo que lhes saberia doce e muito mais agradável - e os teria mantido na linha!

Esse etéreo perfume, capaz de nos transportar, de imediato nos preencher todos os sentidos, e que nos permite fechar os olhos e abstrair do ruído envolvente. O duma padaria.

Em Macedo, toda a vida o sortilégio acontece a quem passe na rua que vai do jardim para a estação: numa porta discreta, com apenas um passo num degrau, entra-se num território totalmente diferente. O ar morno, pairando nele a farinha com notas de tosta, açúcar, amêndoa e, até, coco, elementos em gradientes leves e ponderados no meio da predominância do de trigos e centeios, com côdeas que apetece logo barrar de manteiga ou comer mesmo assim sem mais, impregna a nossa vontade de um sentimento de dali não sair, jamais. E ver tudo, aspirar tudo. Os pães nos cestos de vime e canastras de castanho, as prateleiras com biscoitos e bolos, a decoração volátil no tempo, a porta aberta para o aposento mágico onde se misturam os ingredientes, levedam as massas e cozem as obras de arte.

Ditas assim mesmo, obras de arte, porque nesta padaria deambulou com afã uma peculiar artista portuguesa, a Túlia Saldanha, que também serviu de mote a um outro post, O termómetro, a pastelaria e a arte.

O ponto do cérebro onde se misturam os déjà vu com reminiscências, saudades e memórias, ganha especial intensidade neste ambiente em que tantas vezes entabulámos conversa com a Clarita e o Eduardo. Como se fosse o aleph de Borges, como se fosse o dia em que tive o meu baptismo de voo num monomotor Cessna descolando da pista de terra de Macedo, com o Eduardo aos comandos, o meu Pai ao lado segurando o meu sobrinho Miguel ao colo porque estava com coqueluche, subindo aos 10000 pés sobre a Serra de Bornes num largo círculo, descendo depois e aterrando com a emoção que me dura até hoje. Que já era lendário na nossa casa, o Eduardo Saldanha, com as histórias que dele se contavam como piloto da Força Aérea Portuguesa, as suas aterragens de emergência a merecer primeiras páginas de jornal, e de quando, no mesmo Cessna, também com o meu Pai ao lado, em passagens razantes e repetidas, bombardearam, com pacotes de manteiga, açúcar e farinha, um medeiro da casa da Maria Isabel Charula, nos Cortiços – tendo ela que mandar desfazer e refazer a meda de palha para poder recolher os ingredientes para o seu saboroso bolo inglês de nozes!

Que, nessa época, era na Padaria do Saldanha que havia uma estante luminosa SPAR com a melhor das manteigas Martins & Rebelo, chocolate Lily’s, farinha Triunfo, refrigerantes, iogurtes a sério e coisas afins. O Eduardo tinha uma peculiar perspectiva das coisas, frases de ironia inteligente, mentalidade matemática aplicada à vida quer quando jogava bilhar com o João Pires e o Luís Madeira, a ouvirem Fausto Papetti ou Sinatra, quer quando zarpava para a neve no seu Porsche, sintonizado para as pistas de ski. “Manel, quem te conhecia com esse cabelo?! Pensei que eras uma das tuas irmãs!” e ambos nos ríamos, eu algo embatucado nos meus catorze ou quinze anos, enquanto ele contava, para um cartucho de papel, os pãezinhos e os biscoitos de amêndoa que eu tinha ido comprar.

O Alcino, irmão do Eduardo, salvou-nos, na nossa pequena cidade, de ficarmos sem a Padaria Macedense, gerida agora pelo seu filho Nuno. Já com redecorações, arranjos, novidades. Sem perder o encanto. 

Como a Brasileira, a Pastelaria Benard, a Nacional ou a Versailhes, em Lisboa, todas lojas antigas por onde passou um sopro de progresso mas sem lhes alterar o carácter nem o conforto dos velhos e novos clientes. Curioso, porque involuntário, mas forçoso e verdadeiro, este associar mental duma padaria com pastelarias de referência! Coisas dos espíritos da farinha!

Dir-me-ão que a Padaria resiste porque tem qualidade e a mantém, desde a época do bolo-rei no Natal para a época dos folares na Páscoa, de todo o ano nos pães, biscoitos e pastéis de nata originais. Nos económicos. Nos cocos. Nos amendoados. Em todos os outros. Resistirá, por isso, sim. 

Mas também por uma razão simples e essencial: a de que é a partir de todos esses produtos, daquelas paredes, dos sacos de papel sobre o balcão, das folhas do vegetal de embrulho, daquelas máquinas e fornos, de todas as pessoas que os manobram, que se desprende e fica a pairar no ar e no tempo o intangível da alma especial das coisas. Intangível que chega até nós pelo cheiro inimitável duma padaria. Que nos arrebata. 

E bem-aventurados os que se deixam arrebatar pelo cheiro duma padaria!       

 

      

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Trás-os-Montes e Valle Pradinhos


Artigo republicado do EGGAS mas editado em Agosto 2025 para este blogue.


Manuel Cardoso

  

Os vinhos de Trás-os-Montes, eruditos pelo seu passado mais do que bimilenário, conjugam-se e declinam-se em diversos modos, tempos, pessoas e números. Têm um fundo comum, um étimo fundacional, uma raiz ancestral, um segredo de carácter: a sua honestidade. 

Nas Arribas do Douro e nas do Sabor, nas aldeias de Talhas e Talhinhas, em Valle Pradinhos, nas Arcas, em Montalegre, em Sobreiró, em Arcossó, em Sonim, em Parada de Infanções, no Lombo ou Jou ou Uva, no Planalto Mirandês ou de Carrazeda, nas encostas e recônditos de Rebordelo ou Sendim ou Valpaços, no Vidago ou em Anelhe, em Vale de Salgueiro ou noutros vales e veigas, como em Veiga de Lila a Quinta de Vale dos Montes, invocando os Távoras de Mirandela e Mogadouro, fazendo sentar à mesa o Palmeirim de Inglaterra ou nela pousando garrafas de Santa Valha, ou da Quinta de Valle Madruga, se pode estar, mesmo sem convite (entre quem é!) numa animada prova com produtores em que tudo se discute menos o seu carácter e genuinidade chãos. Porque todos os sabem.

Tal como todos sabem quando é chegado o momento: desconcertados que estão os nove meses de Inverno e três de Inferno, conhecidos como nunca os terroirs e climats dos diferentes microambientes de cada produtor, o comportamento das castas e a utilização judiciosa das leveduras indígenas e exóticas, está-se no limiar da grande fase, em que o interesse pelos vinhos produzidos na mais desconhecida região de Portugal despertou e valorizar-se-ão sem precedentes. Assim como, vir para os vales e serras e planaltos de Trás-os-Montes produzir, corresponderá à adaptação de muitas marcas aos tumultuosos solavancos do clima.

Normalmente, os vinhos são tecnológicos, com produção de uvas e elaboração científica em que intervêm terroir, climat, leveduras e savoir faire. Normalmente. Porque em Trás-os-Montes há, para além disso, que contar com a mitologia. Não só a dos trasgos na vinha e na adega com tropelias, mas aquela mitologia de que são feitos os sonhos e as memórias, a vontade visionária e o respeito pelo legado. Em que intervém, indissociável e finamente molecular, um herdado amor pela Arte.

De tudo isto há um perdurável e verdadeiro paradigma: os Vinhos de Valle Pradinhos. Tintos, brancos e rosés, ainda uma bagaceira velha que é uma poção mágica capaz de despertar todo o tipo de musas, já há mais de um século que se começaram a derramar neste recanto bucólico e inspirador, descoberto e adquirido por Manoel Pinto de Azevedo numa das suas deambulações à caça, no início do século XX, ainda antes da Primeira Grande Guerra. 

É o DO e IG que mais perto de nossa casa tem as vinhas, facilmente visíveis para quem viaje na A4 (a mais bonita autoestrada de Portugal) a subir do Romeu para a Amendoeira, aterro e viaduto compridos sobre Vale Pradinhos, onde crescem as Riesling, Gewürztraminer, Malvasia Fina, Pinot Noir, Cabernet Sauvignon, Touriga de Portugal, digo, Touriga Nacional, Tinta Amarela, Tinta Roriz, Tinta Gorda, todas parceladas e vindimadas com cuidado, segundo a sua evolução característica, objecto duma criteriosa gestão do calendário, dos tempos de vindima e da sequência de controlo de frio até às demais operações. 

Um campo experimental, existente já há dezenas de anos, esteve na origem de algumas das decisões então tomadas para a plantação dos hectares mais modernos do Casal de Valle Pradinhos, cuja ciência de Bordéus foi infundida por João Nicolau de Almeida e cuja ciência actual, aproximando-se a uma trintena de vindimas, tem tido a vara de condão excepcional de Rui Cunha. Se dizemos vara de condão, é por uma razão de ser não só mitológica: é que há segredos só entendíveis por iniciados com poder para tal, tal como o que está contido nas garrafas The Lost Corner, ou nas Tinta Gorda - Vinhas Velhas, ou nas do rosé e dos brancos, dos mais raros e bem conseguidos vinhos de sempre. 

O fundo científico da operação de vinha e adega tem a marca desses dois protagonistas, mas só foi possível porque antes deles teve luz e orientação dadas pela constelação Pinto de Azevedo, que a si fez agregar muitos outros que ao longo do tempo foram operando as transformações com efeitos e matizes, os matizes das obras de Arte. 

Que não é palavra usada à toa: muitos escritores e artistas tiveram acolhimento nesta constelação nas páginas d’ O Primeiro de Janeiro, jornal portuense, puderam viajar a este interior, então tão longínquo, no já recuado século XX!, e ficar como convidados na extraordinária Estalagem do Caçador, vir a Vale Pradinhos viver na obra que se foi fazendo, comungando nas vidas que se foram cumprindo. 

Ferreira de Castro (que chamava de D.Maria I de Trás-os-Montes e III de Portugal à D. Maria Pinto de Azevedo!), Agustina Bessa-Luís, Jorge Barradas, Graça Morais (que teve por padrinhos de casamento a D. Maria e Júlio Resende, outro dos habitués…), …  todos beberam do Vinho de Vale Pradinhos, avant la lettre, mesmo sem a ciência enológica de hoje.

Assim, não é por acaso que numa das paredes do escritório do Casal de Vale Pradinhos, sob o retrato venerando de Manoel Pinto de Azevedo, está uma pequena, colorida e preciosa aguarela com a sua filha Maria, colocando manualmente rótulos em garrafas, pincel e legenda do genial Guilherme Camarinha: “Porto 20 de Out. de 1968 … como eu estou a ver! – o que se diz uma actividade! – Pudesse eu e aí ia já – a segurar o boião”

Hoje em dia, os rótulos trazem a assinatura da neta de Maria Pinto de Azevedo, a de Maria Antónia Pinto de Azevedo Mascarenhas, design significativo pela mesmíssima característica dos vinhos de Trás-os-Montes: todos os lotes são por si provados e aprovados, para merecerem, com justo orgulho, o seu atestado de honestidade! Santé!        

Muito em breve beberemos aqui, digo, conversaremos aqui, de vinhos ainda secretos ou quase e que irão trazer Trás-os-Montes no seu rótulo, feitos de uvas amadurecidas nas encostas do Sabor, numa aldeia justamente chamada Talhas, chão extraordinário para cepas, e cujo apuro tem sido feito na Adega SMC, Sá Morais Castro. Há escassas semanas foram provados num grupo em que estava uma dona de casa, uma proprietária no Alentejo, um administrador duma das mais importantes cadeias de hotéis em Portugal e eu. Estava calor, Montemor tinha anoitecido, ouviam-se ovelhas, trincávamos salada, moelas, queijos, coisas várias. Os vinhos, ainda de garrafas sem rótulo, ligavam com tudo. Sobretudo connosco. Quando se pensa que já tudo foi feito e inventado em vinhos, não é verdade. Trás-os-Montes tem e irá, cada vez mais, ter, vinhos espectaculares e cheios de carácter - e de novidade! A reservar!   


  

Interessante artigo de José Miguel Dentinho, porque se prende com este nosso, não resistimos a dar aqui o link:

   https://grandesescolhas.com/valle-pradinhos-estorias-e-vinhos-de-um-canto-perdido-em-portugal/?fbclid=IwY2xjawMXt2RleHRuA2FlbQIxMQBicmlkETBlN2laV0pRdFhSOGl0aFdhAR4b1AbuTiBKZPjRDoa4GV6r-3dct5Xn0iDejdCjM6U-oy0Hl2F7A5JEMlJ2Pw_aem_sHayF_ZXlkHgO1zEnjwQMw