terça-feira, 11 de novembro de 2025

Efeito das Alterações Climáticas na Agricultura em Trás-os-Montes

 


ACADEMIA PORTUGUESA DA ÁGUA

Manuel Cardoso

Novembro 2025

 Comunicação feita nas Jornadas da Academia Portuguesa da Água no dia 8 de Novembro de 2025, na Ecoteca de Mirandela, no âmbito da Comemoração do Dia Internacional Contra as Alterações Climáticas e Protecção dos Glaciares.

 

 

Boa tarde a todos. É tão bom estar aqui!

Muito obrigado pela consideração em me convidarem para vir falar sobre um tema tão interessante quanto desafiante, em que se pede que nos ocupemos, duma assentada, de cinco coisas: de Trás-os-Montes, de Agricultura, de Clima, da alteração deste e do efeito desta alteração precisamente sobre a Agricultura e em Trás-os-Montes. Convidaram a pessoa errada se o que tinham em ideia era sair daqui com certezas sobre o assunto!

A não ser quanto a, pelo menos, duas coisas: precisamos de água e de caminhos rurais!

Diz-se que a agricultura terá começado a ser praticada pelo Homem há pouco mais duma dezena de milhares de anos e há várias teorias fascinantes sobre o seu início, algures no Médio Oriente ou na Ásia Menor. Acreditamos que sim. E que estaria e estará ligada à sedentarização das populações, aos primórdios das cidades. Mas…

…Mas ninguém consegue afirmar se não terá havido uma agricultura anterior, entre períodos glaciares, num intervalo mais quente. Ou mesmo antes da última glaciação mais recente, cujo máximo de gelo, e, como tal, de frio, terá sido há cerca de vinte e seis ou vinte e sete mil anos. Ninguém sabe, porque ainda ninguém o estudou, se não terá havido agricultura em Trás-os-Montes antes dessa fase, e que tenha desaparecido pelas baixas temperaturas então ocorridas, só reaparecendo numa época muito mais recente, há meia dúzia de milhares de anos.

Uma coisa pensamos: poderá a existência dessa agricultura ancestral não passar duma mera hipótese absurda, como certamente dirão e até concordaremos, mas já quanto a existir pecuária, temos, para nós, que existiu já nesse tempo. As gravuras, não só do Coa mas do Sabor e tantas outras, são representações de caça, sem dúvida, com finalidades xamânicas, também não duvidamos, mas cremos bem que muitas delas são a expressão pura e simples de grupos humanos que se dedicavam à pecuária. Não serão apenas o fruto de elucubrações artísticas de caçadores!

Hoje, os pastores (hoje!...um hoje retórico que cobre gerações e que ainda conheci[1]) também as fazem nas cascas das árvores, nalguma rocha mais favorável, pelo que podemos, numa extensão de raciocínio antropológico, imaginar que também os pastores de então, de há muitos milénios.

As gravuras e petroglifos com figurações animais da nossa região não são apenas um documento relativo a caça e a actividades de recolectores-caçadores: são a expressão perdurável de grupos para os quais a actividade pecuária proporcionava o sedentarismo necessário para haver tempo para as deixar para a posteridade. Penso, por isso, que essa actividade pecuária terá sido influenciada pelos fortes efeitos não só dos frios que se fizeram sentir, como, depois, do aquecimento climático que, há mais duma dúzia de milhares de anos, permitiu uma mais exuberante produção de factores de sobrevivência das comunidades humanas e da complexidade ecológica que resultou dessa transformação, proporcionando as melhores condições ambientais para Gobekli-Tepe, para a agricultura da Anatólia e do Crescente Fértil – e da nossa!

Essa actividade pecuária, extensiva, lançaria mão de estratégias de produção que chegaram aos nossos dias, como, por exemplo, a do uso do fogo para renovação dos pastos. Ainda assisti muitas vezes, na minha actividade profissional, ao acto de pastores que, com um fósforo ou um isqueiro, faziam arder amontoados de folhas secas e espaços em que silvas, giestas, estevas, tojos e carquejas revestiam encostas mas, transformando-se em cinzas, permitiam fazer brotar mantos verdes que as ovelhas e as cabras tasquinhavam nos meses a seguir. Normalmente eram queimadas que ocorriam em Janeiro ou Fevereiro, mansamente, nos dias frios, antes que as chuvas de fim de Inverno e de início de Primavera viessem entumescer as sementes, sobreviventes às chamas e abrigadas no chão frio, das gramíneas, trevos e outras plantas selvagens.

O degelo, a subida das temperaturas médias e a sucessão anual da vida vegetal e animal, transformaram a paisagem, e a agricultura ter-se-á instalado e propagado aqui por Trás-os-Montes há meia dúzia de milhares de anos, no seu sentido mais convencional de haver plantações e multiplicação de espécies de cereais e de fruteiras, domesticadas. A agricultura terá brotado de forma autóctone (?) mas com forte influência dos povos que vinham chegando de leste e/ou do litoral mediterrâneo.

[Seria bom que as Câmaras Municipais, empresas e outras entidades oficiais dedicassem um pequeno orçamento dumas dezenas/centenas de milhares de euros a patrocinar estudos universitários e de investigação científica sobre estes assuntos, a fomentar a ciência pura e fundamental para o conhecimento da nossa terra. Arqueologia moderna. Há tão bons exemplos de trabalhos, de Senna-Martinez, de Maria de Jesus Sanches, de João Tereso, da ATQ-Associação Terras Quentes e de outros, que têm possibilitado vislumbres sobre essa vida de há milénios e de que Carlos Aguiar iniciou a sistematização em vários trabalhos e nos seus capítulos nos volumes Bragança[2] – e não me vou alongar… mas não posso deixar de frisar da necessidade desses estudos de ciência de investigação no terreno. Úteis para o conhecimento e para o desenvolvimento, para o Turismo!]

O clima veio sempre a evoluir nos últimos milénios e a registar uma gradual subida das temperaturas. Com flutuações. Algumas com registos históricos muito interessantes, como os dos anos horríveis de penúria e terror contados pelo Bispo Idácio, de Chaves, no ocaso do Império Romano do Ocidente e na entrada dos Suevos, ou os que Frei Luís de Sousa descreve na sua vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, para só citar estes dois autores e obras, distanciadas um milénio entre si! Haveria muitos outros.

Umas destas penúrias estão relacionadas com a “mini idade do gelo”, dos séculos XV-XVI até ao século XIX…[3] que teve consequências e dá explicações para coisas que sempre me intrigaram. [4]

Num dos trajectos Romeu-Vimieiro, aqui no concelho em que nos encontramos, atravessamos um olival de oliveiras históricas, algumas delas com o tronco aberto de alto a baixo. Hoje são da SMC, Sá Morais Castro, empresa para que trabalho. O quando e porquê desse olival original é o de que essas oliveiras foram submetidas a um stress terrível – um botânico disse-me que teriam estado com temperaturas de -16ºC (abaixo de zero) para que tal lhes tivesse acontecido. Elas seriam já adultas e centenárias, aquando desse gelo. A descrição desse fenómeno de stress, a que já assistimos algumas vezes na vida (a carambina transmontana, o sincelo...), mas não com tamanha intensidade, foi feita por António Maurício Pereira Cabral, residente no Vimieiro. Foi um fenómeno glacial ocorrido entre 18 e 31 de Dezembro de 1843, em vários locais da Terra Quente de Trás-os-Montes (as maiores geadas são sempre paradoxalmente na Terra Quente ou nas zonas de transição...) e que atingiu especialmente o Vimieiro (que na altura era do concelho dos Cortiços), ou, pelo menos, de que daqui foi reportado. Pereira Cabral refere-o numa comunicação à Academia das Ciências e fez publicar umas notícias na Revista Universal Lisbonense.[5]

 Ora, muito antes, no tempo dos romanos, por aqui pela Terra Quente, o clima terá tido períodos mais quentes que proporcionariam haver oliveiras (isso explicaria as milenares do Brinço[6]) e haver vinhos típicos da orla mediterrânica e, talvez, adriática, desde que por cá se instalaram  reformados das legiões, construindo as suas villae, de que há numerosos vestígios, entre os quais, precisamente, dezenas ou centenas de lagares escavados nas rochas, nos concelhos de Valpaços, Mirandela, Macedo, Vinhais, Murça, Alijó…

No Verão passado, um incêndio alastrou por São Salvados, por muitas mais localidades de Mirandela, Vila Flor, Alfândega da Fé, pela Vilariça, é fácil reconhecê-lo por quem percorra as estradas com que confinou. Os bombeiros posicionaram-se a defender casas e lugares. Temos que nos  lembrar de que só há bombeiros, organizados como tal, há cerca de cem, cento e tal anos, e com recursos técnicos avançados, só mais recentemente… então, porque não havia dantes tantos incêndios? Em parte, em boa parte, por causa do que contei dos pastores. O tipo de vida mudou. As aldeias já não são o que foram antes. As orlas das povoações, as culturas, os animais, os gados, os usos da vegetação como fonte de energia, os carros carregados de matos para as lareiras e fornos, matéria combustível que não ficava nos montes. A rarefação dos habitantes. O mosaico de culturas que se transformava numa barreira impeditiva de que houvesse propagação e alastramento de fogos. Tudo acabou. Porque “tudo é feito de mudança”, até o clima, até as gentes.

Refiro este incêndio, entre outros, como um exemplo.

Em Trás-os-Montes (como um pouco por todo o interior de Portugal), as Alterações Climáticas, ou seja, a evolução de aquecimento global do clima, são muito perceptíveis, sobretudo: pelo aumento da temperatura média e frequência de extremos e ondas de calor, pela diminuição e irregularidade da pluviosidade, pela agricultura mais difícil e incerta (pragas, secas), pela colonização por espécies exóticas dos campos e das massas de água, e pelos incêndios.

Mas a contribuição dos transmontanos para as alterações climáticas, mesmo na interpretação que lhe é dada internacionalmente, é mínima e não nos devem ser assacados custos por causa disso, para lá dos que já pagamos em taxas e impostos gerais. O que nos devem é ser dadas condições para podermos resistir e minimizar os seus efeitos.

E isto deve levar-nos a umas reflexões, ainda que breves, mas essenciais, sobre o despovoamento dos campos / desertificação geográfica.

Uma das consequências do despovoamento dos campos é a desertificação geográfica. Para a ultrapassar, no que depende à subida das temperaturas, tem-se assistido à táctica de fazer subir as culturas em altitude (olivais, soutos, vinhas) e têm-se adoptado as boas práticas agrícolas, havendo já há uma muito menor mobilização do solo do que a que era feita há duas ou três décadas (desde então exagerada pela facilidade trazida com a generalização da tracção a motor de charruas e outras alfaias). Há, também, uma muito mais judiciosa utilização da água, mas aqui bate um dos nossos pontos principais: a água é fundamental para conseguirmos resistir às alterações climáticas.

E há outra coisa ainda: para uma maior eficiência dos trabalhos agrícolas e diminuição de emissões, há que melhorar dramaticamente, imenso, mesmo imenso, a nossa rede de caminhos rurais.

Ambas as coisas, água e caminhos rurais viáveis, são factores de estabilização e de estabilidade, são factores de desenvolvimento e de aumento de resiliência do campo face ao despovoamento, à desertificação geográfica e às alterações climáticas!

Estas não nos devem meter medo, o medo não é bom conselheiro, mas  devem servir para repensarmos os nossos valores, os valores do campo, do respeito pela natureza, respeito pelo Homem, respeito por nós próprios.

Trás-os-Montes saberá ultrapassar o desafio das alterações climáticas, por que sempre o soube fazer. Embora submersos pelo pensar global, devemos saber agir local. A gestão dos investimentos. Em Trás-os-Montes não há falta de terra: há falta de gente e a falta de gente só se poderá compensar se tivermos água! Mais uma dúzia de pequenas barragens para possibilitarem um aumento da área regada – não precisamos dum Alqueva! – , alteração da legislação para passarem a ser de usos múltiplos as albufeiras que só o são para a hidroelectricidade, e uma boa gestão, redefinição e interligação com os perímetros de rega existentes e a fazer. Temos muita expectativa e esperança no Água Que Une!

O investir em água é investir nas pessoas. Na construção de infraestruturas. Nas empresas que promoverão o seu uso. Na sua transformação em alimentos. Na sua transformação em Turismo.

Água = agricultura, turismo, desenvolvimento. Com água, a agricultura saberá adaptar-se às alterações climáticas, o turismo crescerá e haverá desenvolvimento apesar das alterações climáticas, da evolução do clima.

Não pode pedir-se aos trasmontanos que minimizem os efeitos das emissões de gases de efeito estufa ou que adoptem comportamentos consentâneos com esta onda geral para a qual parece que o Mundo acordou nas últimas décadas. Porque isso não é pedir nada de novo aos trasmontanos, desde sempre comedidos, desde sempre tendo uma agricultura respeitadora do meio ambiente – e o resultado está à vista! Não somos nós os responsáveis por emissões significativas de gases deletérios!

Aos trasmontanos deve proporcionar-se investimento para o desenvolvimento. Desde logo em água e em vias de comunicação para a agricultura.

Os empresários privados estão a fazer investimentos em montantes de dezenas e centenas de milhões de euros por todo o Trás-os-Montes como há décadas não se via – o Estado (Governo, CCDRN, CIMs, Autarquias Locais) tem a obrigação de acompanhar e complementar estes investimentos com os necessários em água e em vias e caminhos rurais – e em pressão sobre as operadoras para uma boa cobertura de internet!

E o investir na comunidade e em tudo o que favoreça os laços de comunidade. Não para voltarmos à vida de antigamente – mas para assegurarmos a excelente vida do futuro. Que teremos. Porque nos espera. Uma vida extraordinária, a de podermos viver numa região extraordinária e em condições extraordinárias, porque excelentes, porque merecemos. Com um extraordinário futuro Transmontano. Em Trás-os-Montes!  



[1] Pode ser lido este “hoje” no livro publicado online em https://adriveinmycountry.blogspot.com/2020/03/quartzo-feldspato-e-mica.html

[2] A Paisagem Rural de Bragança (Séculos XIX e XX) in BRAGANÇA na Época Contemporânea, 2 volumes, ed. Câmara Municipal de Bragança, Julho 2013.

[3] Há abundante bibliografia e informação sobre esta tão interessante ocorrência na net! Mas despertámos para o assunto muito antes de haver net, um dia, ao considerarmos o extraordinário das pinturas a óleo de Bruegel com as paisagens tão frias como se do frio de Trás-os-Montes se tratasse, a mesma temperatura ao vê-las em livros e calendários!

[4] Sobre a mini idade do gelo no noroeste de Portugal: https://adriveinmycountry.blogspot.com/2021/09/os-vinhos-de-viana-e-o-vinho-do-porto.html em que indico alguma bibliografia mais focada.

[5] Também Francisco António Carneiro de Magalhães e Vasconcellos descreve fenómeno contemporâneo ocorrido em Moncorvo, em cartas de 28 de Dezembro de 1843 e de 4 de Janeiro de 1844, para a Revista Universal Lisbonense, e J.L.Rodrigues Cardoso, em carta de Mirandela de 1 de Janeiro de 1844. Mas a carta de António Maurício Pereira Cabral é notável pela erudição e pormenores e é a que se refere às oliveiras que descrevo entre o Romeu e o Vimieiro! Data de 5 de Janeiro de 1844 e foi publicada na Revista Universal Lisbonense com o título Bella Descripção da Nivosa Praga de Traz-os-Montes, a páginas 271 e seguintes, do Tomo III, anno de 1843 e 1844. Revista Universal Lisbonense, Jornal dos Interesses Physicos, Moraes e Litterarios. Collaborado por muitos sábios e literatos, e redigido por António Feliciano de Castilho, Lisboa, Imprensa da Gazeta dos Tribunaes, Rua dos Fanqueiros, n.º 82. 1844.

[6] Oliveiras monumentais que se encontram nos terrenos do Engenheiro Francisco Lopes e que, por estimativa, serão multiseculares, bastante anteriores ao que é normalmente referido como época de início de existência de oliveiras em Trás-os-Montes, a partir da nossa Primeira Dinastia…

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