© Manuel Cardoso
Outubro 2020
(Nota prévia: as fotos deste post não fazem justiça nem aos locais nem às cenas a que se referem e não dão deles nem os cheiros, nem os sons, nem os sabores, por isso, será imprescindível que os leitores vão aos locais, demorem tempo a neles passear, a visitar e a provar um bom vinho e a trincar um cibo nas tascas e restaurantes da Estrela e da Lapa, a viver cada instante neste sítio notável que é todo o conjunto e, especialmente, a Basílica da Estrela).
Mudámo-nos recentemente para a Lapa,
em Lisboa, para um apartamento de recurso que arrendámos na Rua de São Ciro,
onde vivemos durante Junho, Julho e Agosto.
Desde Janeiro de 2019 e até aos inícios
de Março deste ano, a Mariana e eu estivéramos em Benfica, num andar que a
minha irmã Pilar deixou aos nossos filhos, então nele vivendo só nós e o Manuel,
porque o Vicente já há anos decidiu ficar autónomo e o Vasco zarpou para a
Alemanha há quase três, e foi daí que partimos para Trás-os-Montes, empurrados
pelas notícias da epidemia de SARS-COV-2 na iminência de ser decretado o Estado
de Emergência, nesse mesmo mês.
Na nossa casa de Latães ficáramos até
ao fim de Maio, tendo eu cumprido o meu teletrabalho, com uma ou outra vinda
entretanto ao IVV na Mouzinho da Silveira, e de lá arrendámos, pela net, este
apartamento à Estrela, percebendo que seria um dos de alojamento local para
turistas que há por Lisboa e que este ano têm estado com menos procura.
À chegada a São Ciro ainda houve
algumas peripécias que nos fizeram estar uns dias num T1 do primeiro andar que
não era o que víramos e combináramos pela net, em vez de no do terceiro, que
acabámos por escolher e como desejávamos. Foi tudo sendo ultrapassado e acabámos
por nos habituar à rua, apesar de suja e mal cuidada pela câmara, aos cinquenta
degraus das escadas exíguas do número 51, ao ar, ao vento e sol do sítio, à
luz, às pessoas raras que ali passam, aos pombos e à passarada que canta nas
árvores dos jardins desertos do fechado e vazio hospital militar. Nossas companheiras habituais as gaivotas,
uma colónia de gaivotas de patas amarelas (ditas argênteas, por causa do tom
luminoso do seu cinzento alar de prata) estridentes e curiosas, que esvoaçam e
habitam nos telhados, balaustradas e portadas de vidros partidos do grande
edifício do antigo Convento do Sagrado Coração de Jesus. Passaram a ser elas o nosso
despertador e não foram poucas as noites em que do nada, pelas nossas janelas
abertas, se ouviu o seu característico gritar que se nos tornou familiar.
A Mariana e eu escolhêramos o sítio
por causa de se poder ir e vir para o IVV a pé e sem se ter de apanhar
transportes públicos e, com isso, minimizarmos as probabilidades de contágio. E
gostámos de estar ali desde o primeiro dia porque houve uma coisa que nos
atingiu logo nesse primeiro dia – e que ainda não cessou de nos fascinar! – assim
que tivemos o carro estacionado na Rua de São Ciro para descarregarmos as
nossas coisas. Também a vimos logo a seguir ao assomo à janela do apartamento
do terceiro andar, esteve sempre presente quando passeávamos pelas redondezas e
ao irmos pela Bela Vista, espreitando-nos pelas travessas do Pinheiro ou da
Oliveira, ou por entre as árvores, ao descermos a Domingos Sequeira, ou ao
subirmos a Calçada ao dobrar a esquina com a João de Deus, aparecendo num
súbito, ou, sempre que nos aproximávamos, com a sua majestade e elegância
femininas, que se revelava ao atravessarmos o jardim e ao chegarmos aos portões:
a Basílica da Estrela. Não ficámos só fascinados: ficámos e estamos
completamente arrebatados por ela!
Ir e vir para o IVV, no trajecto mais
aprazível, atravessa-se o Jardim da Estrela. De manhã e à tarde. Passados os
portões, cápsula do tempo ante-covid! Sol baixo a despertar, temperatura ainda
a permitir orvalhos e humidades das regas e das mangueiradas de limpeza do
espaço, já as pessoas por ali fazem percursos a correr nos seus fatos de
treino, outras em turmas organizadas com treinador exercitam-se sobre tapetes
individuais em flexões e alongamentos, há quem passeie os cães, ouvem-se os
pássaros e os piriquitos-de-colar e da Guiné emprestam as notas exóticas que
ali combinam com o arvoredo também exótico. À tarde, em sentido inverso, calor num
Éden diário de descontracção e felicidade, autêntico parêntesis nestes tempos
de aflição e ansiedade, sensação tão boa de estar num espaço de aparente
liberdade e esperança, sol, relva e mantas no chão, com tanta gente de todas as
idades a aproveitar o bom tempo e o convívio, uns a fazer ginástica, outros na
conversa, bolos e bebidas, até livros e computadores, alguns a dançar – e a
fazê-lo primorosa e elegantemente! – não faltando olhares e movimentos de caça,
com sedução e erotismo. Passou a ser uma fase importante do nosso dia e, até, à
noite, a do tempo gasto no Jardim da Estrela, e com que prazer o fazemos!
Havia quase três meses, desde 8 de
Março, que deixáramos de ir à missa presencialmente. As imposições sanitárias
fecharam as igrejas, como se sabe. Mas num dia em que regressei não tão tarde
do IVV, seriam cerca das seis e meia, reparei, ao começar a atravessar o largo,
que as grades dos arcos das portas da fachada da basílica estavam abertos e algumas
raparigas e rapazes entravam no grande templo. Aproximei-me. Ia haver missa a
que se poderia assistir! Telefonei à Mariana e fomos os dois! Cinco de Junho.
Metêmo-nos por uma porta exclusiva para a entrada, lemos os avisos para colocar
máscara obrigatoriamente, notámos um frasco com esguichador de álcool-gel numa
mesa e outros nas mãos de acólitos e de ajudantes voluntários que o iam
aplicando, vimos os dísticos amarelos colados nos bancos para estabelecer intervalos
entre as pessoas e que alguns destes estavam com as costas encostadas aos
assentos para que não se usassem e se cumprisse a distância de segurança. Foi
emocionante. Já tinha um significado especial para nós naquela igreja, em que
havia quase um ano que ali não entrávamos e onde então veláramos a minha irmã
Lígia, tendo sido o seu caixão conduzido desde o altar-mor até ao carro
funerário aos meus ombros e dos meus três sobrinhos seus filhos. Impossível não
o recordar.
E estar ali nestas circunstâncias
especiais, como tão especial e triste tinha sido essoutra, a participar numa
missa tão diferente e intemporal, com pessoas a assistir tão empenhadas, outras
a cantar tão bem, e todos envolvidos nessa atmosfera de um mundo que, de certo
modo, estará para nunca mais ser o mesmo, ficou-nos indelevelmente marcado. A
comunhão foi orientada pelos acólitos de modo a que estivéssemos sempre distantes uns dos outros e em silêncio, retirando-se as máscaras só quando na
iminência de colocar a hóstia na boca com a nossa própria mão, e a saída fez-se
ordeiramente, primeiro pelos que estavam mais próximos da porta e cumprindo
esse critério. Só no final e junto do guarda-vento foram recolhidas as esmolas
do ofício, por ajudantes que, silenciosos, seguravam nas mãos uns sacos de
veludo vermelho escuro, já abertos, em que se podiam deixar as moedas e notas.
Foi desde então, trocando umas
palavras no adro e ao vento, olhando de relance a conhecida fachada, que nos
demos conta de que quase nada sabíamos sobre esta tão magnífica igreja, a não
ser os lugares comuns, o de resultar dum voto da rainha para ter um filho
varão, de ser do barroco tardio, da escola de Machado de Castro, de que nela há
um incrível presépio de barro, madeira e cortiça,…, e dispusemo-nos a alterar
esse estado de coisas, procurando informação e passando a estar atentos, a ler e
a fazer pesquisas. O Guia de Portugal, edição da Gulbenkian, pois claro, a
Lisboa Desaparecida da Marina Tavares Dias, e muitos mais artigos e teses com
que não vamos maçar de títulos os leitores mas apenas citar com justiça alguns
nomes a quem estamos reconhecidos: Sandra Costa Saldanha, Mónica Ribeiro de
Queiroz, Simão de Xavier, Francisco Xavier Costa Henriques, César Chaparro
Gómez, Giuseppina Raggi, Manuel F.C. Pereira, Carla Carvalho Tavares, Paula
Noé, Teresa Vale, Carlos Gomes, Isabel Mendonça, Joana Fonseca, Paula Correia,
Paula Figueiredo, Rosário Gordalina, Júlio Grilo, Isabel Stillwel, o Padre
Gonçalo Portocarrero.
Uns mais e outros menos, todos foram fonte de informações e pistas. Disto trata
este post deste nosso blogue.
Há alguns mitos urbanos que circulam
sobre a igreja (e quando referimos a igreja, estamos a referir-nos ao seu
conjunto: a basílica, o convento e o palacete) sendo que um é o do seu custo
enorme e o de que a sua construção teria exaurido os cofres do Estado e
depauperara o País. Outro, é o de que a Rainha D. Maria, visitando as obras,
teria feito notar ao arquitecto
que não ficava bem que a porta do meio da fachada, afinal a de honra e festa,
fosse do mesmo tamanho que as outras, e este, triste com o reparo, se
suicidara! Quanto ao primeiro mito, há que esclarecer o seguinte: todo este
monumento é integralmente português, talvez como nenhum outro: a não ser sete
das telas dos retábulos dos altares – e que telas! – que foram adquiridas ao
atelier do celebérrimo e então na moda Pompeo Batoni, que residia em Roma, tudo
o mais, desde os autores do projecto de conceptualização e execução, materiais,
mão-de-obra de artesãos e artistas, escultores, pintores, mestres pedreiros,
organeiros, entalhadores, mobiliário, trabalhos em pedra, em madeira, em
metais, em vidro, alfaias do culto, tudo, tudo, foi de origem nacional. Por
isso todo o dinheiro gasto na sua construção ficou distribuído na economia
nacional, foi directo para as mãos de artistas portugueses, serviu para lhes
pagar o trabalho e estimular a expertise. Devem ser raríssimos, tanto nessa
época como hoje, os casos em que tal acontece. Quanto ao segundo mito, o
Arquitecto Mateus Vicente de Oliveira (foi o primeiro arquitecto, autor do
desenho original, depois seguiu-se-lhe Reinaldo Manuel dos Santos, tendo havido
também outros temporários ou com contributos menores, mas Mateus Vicente de
Oliveira foi, sem dúvida, “o arquitecto
da Estrela”: da igreja, do convento e do palácio) estaria descontente com
algumas críticas que se faziam sentir pelo estilo peculiar, mas a sua morte
veio a ocorrer após meses de debilidade na sequência duma queda numa outra obra.
Na realidade, a fachada ficou a dever-se, na sua apresentação definitiva, a
Reinaldo Manuel dos Santos, sendo que a parede do interior da galilé com as
portas para a igreja tem o risco de Mateus Vicente, até com a porta nobre
central maior que as demais e encimada por uma das suas características
contracurvas (em contracurva seria o desenho original da fachada, que Reinaldo
Manuel veio a modificar para o neoclássico frontão triangular).
Não é por acaso que o conjunto do
edifício capta a nossa atenção, mesmo de longe. A cúpula, as torres, os sons
emitidos pelos sinos (quase 17 toneladas de sinos com um timbre característico
de bronze íntegro e potente) despertam mesmo um passeante desatento. Sobretudo
às 11.50h dos Domingos, campanadas graves dos grandes bronzes da torre nascente,
um deles um colosso de 4.320 quilos (o mais leve
tem 80)!
O edifício da basílica, convento e
palácio impõem-se na mole urbana e salientam-se na linha de cumeada dos
telhados e arvoredos pela sua majestade e beleza, sem arrogância, com um porte
adequado à circunstância do dia ou das estações, com uma distribuição das
sombras e dos reflexos que vai mudando com o dia, sobressaindo das suas
caneluras, curvaturas, entalhes e arestas, animando a pedra, fazendo com que a
consideremos como algo vivo e por isso nos não surpreenderia se alguma vez, ao voltarmos
para si o nosso olhar, a víssemos mais aconchegada para não apanhar tanta chuva
ou mais direita para espairecer ao sol. Elegante como uma Senhora. Mas sempre
com um ar donairoso e feliz, recatada se as cerimónias são de luto,
atrevidíssima se são de música e festa, provocando a vontade de lhe ser galante
com piropos nobres.
Se as torres e os sinos, que se
sobrepõem ao entorno, já por si suscitam interesse, e se a cúpula,
identificável a partir de tantos pontos da cidade, lhe dá uma distinção de
referência, é sobretudo a fachada, com toda a sua escultura significativa e
adornos simbólicos, que produz o maior efeito de íman e convite, de chamamento,
como de alguém que mete conversa connosco.
O adro lajeado e circunscrito por 22
frades de lioz faz manter à distância veículos e obriga a flectir as pernas e a
fazer o movimento de olhar para baixo para subir os primeiros quatro degraus a
partir do passeio e, logo a seguir, de olharmos então para cima, assumindo toda
a cantaria de pedra uma perspectiva singular que provoca a sensação feliz de
estarmos a caminhar – e quase a alcançar! – uma das dimensões do absoluto, logo
acentuada pela segunda vez em que, ao nos aproximarmos, temos de subir mais um
nível de cinco degraus e de novo fazermos o gesto de olhar para baixo e a seguir
para cima, focando-nos outra vez no edifício de que, agora sim, começamos a
ouvir também, a sentir próxima a grandeza e a majestade e a poder ver toda a
pedra a mover-se por nossa causa! Porque só agora, junto das portas, das
estátuas, quer ficando cá fora algo embasbacados a olhar para tudo, quer
entrando na galilé, nos
damos conta de que pequenos somos diante da escala dum monumento tão bem
conseguido para produzir tais efeitos.
Até o vento está quase sempre
presente a varrer o lajeado do adro como se chegasse ali o sopro bíblico que
agita a vida! Virá do mar, virá do deserto?
Ao flanquearmos a grade metálica e as
portas de vidrinhos de acesso ao interior teremos sempre a sensação, mesmo
quando ninguém vemos por ali, de que há mesmo alguém a receber-nos e a
cumprimentar-nos – e cremos que está! Um pouco como se aquelas estátuas, sendo
imagens de pessoas que existiram realmente, Maria e José na galilé, todas as
outras lá fora, ali posem, investidas da sua presença, em vez de meros inertes
de pedra na sua condição inanimada… e até podemos dar-lhes bons dias e boas
tardes que nos ouvem, de certeza! Prodigioso, esse efeito! De se fazerem mesmo
presentes a convidar-nos, a dar-nos o braço ou a distinguir-nos com a sua
inspiração sábia e intemporal, a sua eternidade enorme ao pé da nossa vida
humilde tão curta e carente! Apetece-nos logo pedir coisas. O que está certo. É
para isso que serve um templo. Para nos inspirar a pedirmos as coisas certas
para a nossa vida. Que é a melhor forma de louvar a Deus: pedir e agradecer as
coisas certas. É tão intensa e sensível a impressão que causam que o melhor é
sairmos para depois entrarmos de novo.
Já impressionados nos nossos
sentidos, despertos para experimentar coisas inesperadas, ficaria a faltar
referirmos aqui a sensação de voar que acontece indo ao terraço – e fizemo-lo
pelos 113 degraus da escada de caracol de acesso, passeando pelo lajeado da
cobertura ao mesmo tempo que observávamos a paisagem à volta,
desengraçadamente, sem a impressão de vastidão que nos deveria dar um lugar
alto… até chegarmos à porta que dá para o interior da cúpula, no interior da
igreja e, aí, sentir a coisa rara de nos encontrarmos num plano etéreo, vendo
de cima o nosso minúsculo ponto em que no dia-a-dia nos ajoelhamos, a nossa
vida pequena, dando-nos substância para meditarmos na escala tão relativa das
nossas confusões e medos, desejo de nos desembrulharmos do pesado para nos
dotarmos duma simplicidade leve…
Mas voltemos ao adro, recuemos e
olhemos para cima. Compreendamos a fachada. Recomecemos a partir do passeio,
com uma visão do conjunto.
Ao centro, sob a cruz, no frontão, o
triângulo de Deus, um só Deus em três pessoas da Santíssima Trindade, dos três
lados iguais, o do Pai, o do Filho e o do Espírito Santo, com o Alfa e o Ómega,
o Princípio e o Fim de todas as coisas, sobrepostos ao esplendor que irradia a
Luz de Deus. Sobre a moldura, feita de motivos enrolados e elementos
vegetalistas, um enorme girassol, simbolicamente a planta que olha para o astro
que é a nossa fonte de energia, luz e equilíbrio, ali inclinada sobre o centro
da vida.
Por baixo deste, o baixo-relevo da
Adoração ao Sagrado Coração de Jesus, o culto de base de todo o templo e
convento. Neste baixo-relevo estão três Anjos, sendo um deles o Anjo-custódio
ou Anjo da Guarda de Portugal e outro o Anjo Tutelar da Rainha. O culto tinha
sido aprovado para a Polónia e Roma em 1765, para Portugal e seus territórios e
domínios em 1777 (mas só viria a ser aprovado para todo o mundo em 1856)!
Nos nichos da fachada, o Profeta Elias,
em cima, à esquerda, e S. João da Cruz à direita. Em baixo, Santa Teresa de
Ávila
e Santa Maria Madalena de Pazzi, respectivamente. A relação destas pessoas
entre si tem a ver com o denominador comum dos Carmelitas Descalços, a Ordem do
Convento em que a basílica se integra.
As quatro Virtudes que encimam as
quatro colunas da fachada são, da esquerda para a direita: a Fé, a Devoção
(Adoração), a Gratidão e a Liberalidade (Generosidade).
Cada uma das esculturas da fachada
merece atenção, tal como todas as do interior, a da Virgem e a de S. José, na
galilé, as da Cruz e dos Anjos, Serafins e Querubins dos altares, as da Fé e
Esperança, sobre o altar do Santíssimo, da Caridade e da Fortaleza, na direita
do transepto sobre o
acesso ao coro baixo/capela do Senhor dos Passos, tal como a composição dos dois
anjos ajoelhados em oração de um lado e doutro do resplendor divino sobre o
alto da capela-mor. A elegância das formas, o rigor dos atributos, a perfeição
dos diferentes conjuntos remete-nos para um reconhecimento da superior
qualidade de todas as peças. Os seus escultores foram Alexandre Gomes, José
Patrício, José Joaquim Leitão, João José Elveni e Faustino José Rodrigues, sempre
sob a visão e a mão de Machado de Castro. Ao mestre se deve a imagem de S. João
Evangelista, de um dos altares. Quanto ao túmulo de D. Maria I, a Fama e o
Putto que o decoram dum lado e doutro do medalhão com a real efígie saíram da
maestria de Faustino José Rodrigues (1760-1829), o aluno predilecto de Machado
de Castro, tendo sido desenhado por Giovanni Chiari.
O ambiente interior da basílica, se
nos deslumbra pelo cromatismo da pedra nos seus coloridos,
combinações e formas entalhadas no chão, nas paredes e nos tectos de abóbadas,
é tonalizado pela luz que de fora chega sem perturbar e nos faz querer perceber,
uma a uma, as cores das telas cheias de significados. Para quem entra, do lado
esquerdo temos, sucessivamente, de Batoni, a tela de S. João Evangelista a
escrever o Apocalipse no altar de Santa Teresa; a de Santa Teresa a receber as
ofertas da Rainha de Portugal na presença das Freiras Carmelitas no altar de Nossa Senhora
do Monte do Carmo; o
episódio da Incredulidade de S. Tomé no altar da Mater Dolorosa, hoje de Nossa
Senhora de Fátima. Do
lado direito, também de Batoni, uma tela com Santo António e S. Francisco no
altar de Santo António e uma
tela do Sonho de S. José no altar de Nossa Senhora da Conceição. Ainda deste lado e antes do
transepto, no altar do Sagrado Coração de Maria, a tela da Devoção ao Coração de
Maria, também chamada Alegoria ao Anjo-custódio do Reino, em que figuram os
três Arcanjos ou Anjos Custódios, Miguel, Gabriel e Rafael, que foi pintada
pelas Princesas Dona Maria Francisca Benedita e Dona Maria Ana Francisca
Josefa, irmãs mais novas da Rainha D. Maria I, alunas do pintor Joaquim
Carneiro da Silva. No altar do Santíssimo, lado esquerdo do transepto, está a
tela da Última Ceia, de Batoni.
Há outras telas doutros pintores,
nomeadamente de Pedro Alexandrino de Carvalho: a Ceia de Emaús, S. Paulo
Eremita recebendo o pão do seu sustento, Educação da Virgem por Santa Ana,
Calvário (na sacristia) e de Cirilo Wolkmar Machado.
No altar-mor, à esquerda (diz-se do
lado do Evangelho), Santo Agostinho e São Gregório e, à direita (diz-se
do lado da Epístola) Santo Ambrósio e São Jerónimo. Só que neste altar, aliás,
na basílica toda de onde se avista, é impossível não sermos inexoravelmente
atraídos para a grande tela que Pompeo Batoni pintou em Roma para o retábulo da
capela-mor: a Alegoria da Devoção
Universal ao Sagrado Coração de Jesus!
Foi pintada em
1781, transportada para Lisboa por mar. Nela figuram: o Coração de Jesus como
tema central, de acordo com a descrição da vidente Santa Maria Margarida
Alacoque nas aparições no Mosteiro de Paray le Monial em 1673-1675; o Papa Pio
VI, protagonista e interlocutor para este culto em Portugal e no mundo; o
altar, a hóstia e o cálice, como alusão directa à eucaristia e ao calvário; a
mulher e os filhos por si amamentados, símbolo da caridade (amor) e da nutrição
da vida sobrenatural da alma; anjos com o sacrário e um anjo apoiado no altar
com um livro aberto, alusão directa ao Evangelho de S. João, capítulo VI, à
instituição da eucaristia e à habitação de Deus entre nós nesta forma; por fim,
as quatro grandes figuras femininas que se encontram na base da tela,
personificando os quatro continentes reconhecidos no mundo cultural do século
XVIII: da esquerda para a direita, a Ásia, a América, a África e a Europa. A
Ásia, de turbante, pérolas, vaso de queimar incenso e outras essências, um
camelo; a América, emplumada, de arco e aljava, um jaguar e uma arara; a
África, com um elefante e um crocodilo, marfim; finalmente, a Europa, com a
coroa de quem domina o mundo, o ceptro do exercício do poder (mas inclinado
para o chão já que o seu poder se inclina perante o de Deus), a cornucópia de
quem por ele espalha a sua abundância e cultura. Mas há aqui um pormenor curioso…
é que na mitologia, a Europa era filha do rei da Fenícia, Agenor, filho de Poseidon, e foi raptada por Zeus, disfarçado de touro para
que a sua mulher, Hera, não ficasse ciumenta se o soubesse. Zeus levou Europa para a ilha de Creta onde teve três filhos: Minos, Radamanto e Sarpedão. Daí que a Europa seja
sempre representada montada num touro… excepto nesta tela, onde cavalga um
soberbo cavalo branco peninsular! A
razão para tal será porque a intenção de Batoni, interpretando a vontade do
encomendante, foi a de personificar Portugal como a Europa, daí o cavalo português em vez do touro, e cada um dos
continentes como os territórios que detínhamos nos quatro continentes. Batoni
terá, assim, querido transmitir o significado que lhe terá sido expresso de que
o culto do Sagrado Coração de Jesus se estenderia ao mundo todo por acção de
Portugal e com o beneplácito do Papa!
Não há uma parte da tela que seja mais importante do que outra para o
programa de catequese que encerra. O coração e o sangue, o esplendor divino, o
fogo, a cruz, a coroa de espinhos, a mesa eucarística, o pelicano eucarístico
no frontal de altar, a mãe que alimenta os filhos, o pontífice, a luz jorrando
das feridas do coração que ilumina os continentes do mundo.
O reconhecimento do culto ao Sagrado Coração de Jesus no século XVIII
tem de ser entendido dentro duma luta ideológica anti-Jansenista
na qual os Jesuítas estiveram particularmente envolvidos e activos e Batoni foi
o mais importante dos pintores a quem estes tinham já encomendado, em Roma,
telas para ser instaladas em duas das suas igrejas neste contexto: na de Santo
André do Quirinal e na de Jesus. Esta nossa da Estrela trata-se duma tela
composta num programa neoclássico que era natural em Batoni pelo seu estudo
atento e admiração da obra de Rafael, de que importou alguma da distribuição
das figuras e administração do espaço à semelhança da Transfiguração do Senhor e da Disputa
do Sacramento daquele pintor.
Há duas grandes zonas no quadro, ligadas entre si pelo plano das nuvens
que, simultaneamente, são o céu material da terra, da sua realidade
personificada nos quatro continentes, e o apoio etéreo da parte superior,
gloriosa e espiritual. Tal como no primeiro daqueles quadros de Rafael em que
até os tons e a paleta de cores são distribuídos de modo análogo.
A figura de Pio VI está presente como se fosse a assinatura do pintor, o
mais célebre e requisitado retratista de Papas, Imperadores, Reis e notáveis da
sua época. O Papa visitara o estúdio em que o quadro estava a ser pintado em
Roma e admirara-o durante a sua execução e tal fora interpretado como um gesto
do seu empenho em apoiar um culto que era eminentemente anti jansenista. O
facto de Batoni respeitar as proporções e pontos de simetria faz da obra uma
obra neoclássica, e o de incluir e misturar símbolos e variedades de figuras
alegóricas tornam-no susceptível de ser lido de forma barroca. O que lhe
confere mais interesse.
O ponto central do tema do quadro é o sagrado coração com a sua ferida
produzida pela lança do soldado romano e que, ao mesmo tempo, é a fonte da água
e sangue dos Sacramentos. A cruz surge como um foco de esperança e o coração
produz raios luminosos de fogo, luz e calor que atingem toda a composição do
quadro. Há um coro de jovens alados, olímpicos, que simultaneamente adoram e
velam pelo sagrado coração, imbuídos do mesmo espírito mas com aspectos
diferentes quer em tamanho quer nas posições assumidas quer na claridade/obscuridade
que os torna semiocultos, escondidos ou evidentes, concordantes e discordantes
ao mesmo tempo. Mais abaixo o cálice de ouro e a hóstia de trigo: Deus tornado
comida e bebida para as gerações futuras poderem partilhar do seu coração e do
seu sangue. À esquerda do altar pintado (à direita para quem vê), está uma
mulher bonita e bem proporcionada dando de mamar a um menino e tendo à sua
volta outros a pedir também do seu leite, símbolo do coração vivo, alegoria da
caridade e do mistério da eucaristia e também referência directa ao amor
maternal. Curioso que a postura do Papa é a de estar a olhar para nós, o povo
de Deus, com a solene tiara, capa de púrpura, toga branca, sinalizando com o
seu braço levantado e a mão estendida o coração radiante de luz, enquanto dois
anjos, quase escondidos, sustêm a maqueta dum templo, símbolo da perenidade da
Igreja. Do coração se propagam os raios que vêm até ao plano de baixo, onde
estão as quatro partes do mundo. O anjo portador do livro seria o do decreto da
escolha deste lugar como o do culto ao Sagrado Coração. E dos quatro
continentes viriam e neles haveria gentes a venerá-lo, trazendo ouro, madeiras
preciosas, marfim, pérolas e pedras preciosas. A Europa, mulher vestida de
azul, cabelos apanhados, coroa, ceptro, montada num cavalo branco. África,
mulher de cara negra, olhos brancos, turbante agitado pelo vento, colar de
coral, marfim na mão. A América, estendendo a mão esquerda para apanhar os
raios e com a direita acaricia um jaguar, tem na cabeça uma coroa de plumas de
muitas cores, vestido às riscas e com pregas. A Ásia, de perfil sedutor, com
pérolas na cabeça e no pescoço, fumos de incenso e um camelo.
Quando entramos na basílica e vemos a tela a partir do fundo, em parte
oculta pelo metal trabalhado do suporte que desde a abóbada sustém dois
lampadários, a nossa atenção é captada pelas quatro mulheres da tela, aliás,
pelas cinco mulheres da tela: as que simbolizam os quatro continentes e a que
simboliza o amor da maternidade. Ora, são também cinco as principais mulheres
que aparecem nos Evangelhos: Maria de Nazaré, Mãe de Jesus; Maria Madalena,
apóstola entre os apóstolos, a primeira a anunciar a Ressurreição; Maria de
Betânia, irmã de Marta e Lázaro, discípula; a Samaritana, a quem Jesus pede
água e a quem, como judeu, nunca deveria dirigir palavra; a pecadora da
Betânia, por quem Jesus se deixa acariciar e perfumar. Se algo mais é possível
de ser lido nesta tela, que não sabemos se Batoni de tal teve intenção, é que
ela representa o carácter não misógino da Igreja Católica e a imagem primordial
que a mulher tem na visão religiosa do mundo. À medida que os nossos passos vão
na direcção do quadro começam a surgir e a ganhar vida os pormenores,
cruzamo-nos com o olhar expressivo e amigo do Papa, entramos a pouco e pouco
nessa atmosfera especial e tão longe dos nossos sistemas de referência modernos
mas, ao mesmo tempo, tão presente no que são as cores, a discussão e
contradições dos nossos desígnios actuais e das nossas vidas.
Já deixámos a Rua de S. Ciro, desde o fim de Agosto que nos mudámos para
a Rua Braancamp. O apartamento fica mais perto ainda do IVV e isso será bom
para os dias de chuva e é um pouco mais confortável que o anterior. Mas, depois
de várias tentativas em igrejas circunvizinhas, temos voltado à Basílica da
Estrela. Parece que não custa nada subir até ao Rato e a Álvares Cabral, tem-se
logo um prémio pelo bom que é atravessar o Jardim da Estrela com toda a sua
vida colorida e lenitiva para os tempos sombrios e doentios desta pandemia, e
tem-se a seguir a sensação de replecção e completude quando começamos a
entrever o branco e cinza do lioz da fachada, se incendeia todo o edifício com
os contornos dos fogaréus e o efeito feminino da cúpula, às vezes se lhe ouve o
som do bronze percorrendo o espaço com magnetismo, galgamos o alcatrão e as
linhas dos eléctricos, chegamos aos frades, subimos os primeiros quatro degraus a partir do passeio e
olhamos para cima com a sensação feliz de estarmos a caminhar para outra dimensão,
subimos mais um nível de cinco degraus olhando para baixo para não tropeçarmos
e a flectir mais o pescoço para cima, para o alto, num relance a todos os que
nos cumprimentam familiarmente: Santo Elias com a sua espada flamejante e a
roda do carro de fogo, também com as tábuas da Lei de Moisés; São João da Cruz
com uma enorme cruz e uma caveira; Santa Madalena de Pazzi com os símbolos da
Paixão (que lhe foram entregues por Jesus numa das suas visões) e com um vaso
de perfume, aproximação à Maria Madalena (e também às senhoras do jardim e do
bairro por si observadas, já aqui as aguardando antes de haver jardim, então
aqui vindo nos rituais da corte!); Santa Teresa de Ávila, apoiada numa coluna e
representada com dois dos livros seus atributos de doutora e reformadora da
Igreja;
a Fé, a Devoção, a Gratidão e a Liberalidade, alusivas às virtudes mais
cultivadas pela Rainha no decurso da sua vida e exercício do seu governo; os
Anjos tutelares, defensores do Bem, executores da Vontade, implícitos e logo
ocultos aos nossos passos. Transpomos a grade metálica e as portas de vidrinhos
de acesso, Maria e José estão solenes mas também benevolentes para connosco a
entrarmos na casa de seu Filho.
Depois cá dentro estão todos, todos,
nos transmitindo a importância de, sendo tão pequeninos, aqui sermos
considerados inter pares,
com grande emoção, nós a dar-lhes a alegria de aqui virmos, com eles
partilharmos os nossos problemas, a nossa vida, a nossa esperança. Um pouco do
nosso tempo, da nossa pequena fracção já vivida da eternidade em que eles nos
esperam e que com eles partilharemos.
Há imensos recantos, pormenores,
peças de que haveria tanto a dizer, a explicar, sabedoria a extrair, não nos
atrevendo a dizer que o tema é inesgotável mas tendo a certeza de que
dificilmente será esgotável. Não conseguimos referir-nos nem a uma pequena
parte. Mas seria indesculpável não nos referirmos a outro dos dois túmulos notáveis
da basílica. O da Rainha, que já referimos, antes encontrava-se na capela-mor,
do lado do Evangelho (à esquerda do altar, será a direita para quem nele
estiver a olhar para a assembleia), separado por uma parede, que podemos dizer simbólica
do que seria a grade dum confessionário porque do outro lado dela, na
sacristia, se encontra, ainda hoje, o túmulo do Arcebispo de Tessalónica, o confessor
de sua Majestade D. Maria I. A arca tumular é da autoria de Machado de Castro.
Arcebispo de Tessalónica, que o foi e,
dito assim, parece-nos uma figura distante, personagem da constelação
intangível dos varões assinalados de que nos fala a História… só que não é o
caso. Trata-se dum trasmontano, de mais um dos trasmontanos ilustres que por
Lisboa têm conseguido singrar: Inácio Álvares Rodrigues. Seus pais eram
lavradores modestos mas com capacidade para pagar os estudos dos filhos. Teve
cinco irmãos, todos clérigos. Nasceu em 31 de Julho de 1718 em Chaves. Os pais
destinaram-no ao serviço militar, chegando a assentar praça em 1732 em Chaves
mas desiste e foi para Salamanca no ano seguinte, estudando Humanidades, regressando
a Chaves onde estudou Latim e, em 1735, entrou na clausura do convento
carmelita de Nossa Senhora dos Remédios, em Lisboa. Em 1736 terminou o
noviciado com o nome de Frei Inácio de S. Caetano: Inácio por ter nascido no
dia de Santo Inácio de Loyola, 31 de Julho; S.Caetano por ter sido baptizado no
dia deste santo, 7 de Agosto, em Chaves. Estudou Filosofia em Évora, Teologia
em Coimbra, foi ordenado presbítero com 25 anos. Inteligente, metódico,
aplicado, arguto e eficaz na realização de obras e concretização de decisões,
estas qualidades ultrapassaram alguns defeitos naturais como a rudeza de modos
e sua falta de verniz duma educação cortesã que não tinha tido e cujos
protocolos só foi aprendendo ao longo da vida. Foi para Braga como docente de Teologia
e director espiritual do Arcebispo Primaz, D. José de Bragança. Fez entretanto
uma viagem a Espanha, a Pastrana. Em Lisboa ingressou no Convento de S. João da
Cruz, em Carnide, em 1757. Nesta fase, em pleno Governo de Pombal, terá tido a
confiança do déspota a ponto de ser nomeado Deputado da Real Mesa Censória o
que fez suscitar invejas e alguns o associarem ao cancelamento do nome e do
culto a Santo Inácio de Loyola. Mais deu nas vistas e concitou ciúmes ao ser
indicado para confessor da Princesa do Brasil, futura Rainha D. Maria I, e ser
indigitado para Bispo de Penafiel, bispado efémero que foi um mero joguete
político do Marquês. No entanto, a Rainha manteve-o como confessor após a
demissão deste último e as suas posições conservam-se com a Viradeira de 1777, o
que suscita e aumenta novas invejas e intrigas contra si da parte dos que
esperavam ver postergados todos os que tinham estado comprometidos com o
Pombal. Foi eleito Arcebispo Titular de Tessalónica em 1778 e, volvida uma
década, em 1787, Inquisidor Geral do Reino. Cresceu uma fronda fomentada
sobretudo pelo Visconde de Vila Nova de Cerveira que aspirava ao cargo de
Ministro Assistente do Despacho, cargo cuja nomeação viria a ser feita ao
Arcebispo de Tessalónica, Frei Inácio de São Caetano. Adoeceu inesperada e
gravemente no Palácio de Queluz onde morreu a 29 de Novembro de 1788, pelas
seis horas da tarde, oficialmente com uma hidropisia da cabeça. Correram várias
versões sobre esta sua morte, aos sessenta anos: a mais corrente foi a de que
fora assassinado à pancada com sacos de areia com que lhe terão batido nos
jardins de Queluz. O autor ou mentor do atentado terá sido alguém inspirado
pela inimizade que o príncipe D. João nutriria em relação a si ou por alguém a
mando do Visconde de Vila Nova de Cerveira… para outros teria sido resultado de
uma congestão já que os seus propalados hábitos de glutão a tal terão levado
mas esta versão poderá ter sido colocada a circular para mascarar a relacionada
com a primeira e encobrir a conspiração criada nalguns meios da corte contra
si. Foi primeiro sepultado na igreja de S. João da Cruz em Carnide, em 1 de
Dezembro, depois exumado e conservado em caixão na Capela do Sacramento que ele
próprio mandara construir no mesmo convento em Novembro de 1789.
Finalmente, trasladado para o
mausoléu magnífico em que se encontra, na sacristia da Basílica da Estrela, em
5 de Fevereiro de 1790. O texto para o primeiro epitáfio que teve incluía as
palavras “hujus Monasterii Promotor” que era absolutamente verdadeiro: a ele se
terá ficado a dever a inspiração, a influência nos pensamentos nos momentos
certos e as acções discretas mas decisivas naqueles de quem dependeu o avanço
para a execução da obra, ou seja a Rainha D. Maria I e D. Pedro III que,
consigo, constituíram o trio fundador do Convento e Basílica do Sagrado Coração
de Jesus, a Basílica da Estrela.
Como já dissemos, desde o fim de
Agosto que nos mudámos para um apartamento na Rua Braancamp e o estarmos mais
próximo do IVV foi determinante para a escolha. Só que desde logo ficámos com
uma sensação de ausência, de carência de qualquer coisa. E assim, estando a
apenas um quarteirão de distância do meu local de trabalho, como nos tínhamos
habituado a passear a pé por Lisboa como forma de nos mantermos fisicamente
bem, o certo é também que, para continuarmos o nosso salutar exercício físico e
para preenchermos esse sentimento de faltar qualquer coisa, sempre que temos
tempo subimos até ao Rato, dali pela Álvares Cabral até à estátua deste e é com
emoção e alegria que continuamos a entrar no Jardim da Estrela como quem passa
para lá do espelho de Alice, observamos, como se fosse uma novidade de todos os
dias, todas as pessoas e todos os seus hábitos, avançamos esperando ver dançar,
fazer ioga, seduzir e namorar, exercitar ginástica, passear carrinhos de bebés,
ver as expressões ocupadas dos que falam nos seus telemóveis, que ensaiam no
coreto ou nos espaços, que comem e bebem em piqueniques de festa ou de fruição
do tempo, que passeiam os cães ou que, por ser ou estar ali simplesmente,
cumprem o importante papel de elementos vivos da condição humana.
Tal como nós, avançando nas sombras
misteriosas das héveas e de todo o verde em direcção ao recorte das torres e da
cúpula, do som dos sinos, ouvidos e surgidos entre as ramagens dos pinheiros
chamando, deixando-nos conduzir fascinados e correndo para o nosso já
indispensável arrebatamento – atravessamos a rua, pisamos o lajeado do adro,
subimos os degraus cumprindo mais uns centímetros na direcção certa para o
infinito que, ali, tem uma das suas portas de pedra sinalizada por uma escolta
viva de arte!