terça-feira, 23 de novembro de 2021

AZEITE 3. Visitas aos lagares

Passar nos lagares, nessas noites frias ou de invernada que encharcavam de alpechim o empedrado e faziam poças com tonalidades à luz ténue da lâmpada da gordurosa e manchada porta de entrada, era bem mais do que um ritual de cumprimentos: dentro, estava-se num conforto húmido e quente, cheiro agradável a azeitona, azeite e lume. Logo à direita, a caldeira em que ardia baga continuamente e se aquecia a água que circulava pelas batedeiras e demais elementos, o barulho e o movimento encadeado de todos em grande azáfama, em contraste com a noite de fora, eram um pulsar de vida na estação mais fria do ano e às horas mais mortas da noite. Esses lagares, ainda de prensas, eram uma evolução tecnológica que já vinha do século XIX, accionados, primeiro, a vapor, depois, a diesel, finalmente, a electricidade, com um motor que gerava uma força rotativa comunicada a um veio de transmissão por uma correia e que deste, por mais outras, fazia funcionar todos os mecanismos que lavavam a azeitona, a moíam, batiam a massa e a espalhavam nos capachos, moviam os êmbolos da prensa de Pascal, bombavam os óleos e águas para o decantador e as centrífugas de onde, finalmente, escorria azeite para o depósito da balança. Nalguns, um dínamo, que também tomava a força duma correia a que se aplicava um giz para que o atrito se mantivesse, gerava electricidade que produzia a luz em grandes lâmpadas de incandescência, acesas sob reflectores de esmalte. Que os homens precisavam delas: para iluminar as pazadas de azeitona tiradas das tulhas e despejadas no tanque de as lavar, no sem-fim ou directamente na tina das galgas; para vigiar as massas e as espalhar nos capachos, sobrepor estes, levá-los de carrinho para as prensas onde ficavam a ser espremidos e a escorrer água e azeite. Quando chegava ao fim o aperto da pilha de capachos, e deles já não saía gota, o grande êmbolo descia, o carrinho era levado para ao pé duma porta e, um a um, como se fosse um separador de bolachas, um rapaz pegava, sacudia, com uma espátula soltava a baga para que o capacho voltasse a ir para mais uma pilha a que se punha a massa já batida. Era um movimento contínuo que durava todo o tempo, ininterrupto, apenas quebrado por uma avaria, por vezes mínima mas que fazia parar todo o lagar, suscitando urgência e, por isso, numa parede, em tábuas desenhadas com os seus perfis, as ferramentas de manutenções e consertos estavam bem visíveis como se fossem armas preparadas para acorrer a uma guerra. À esquerda da entrada, num compartimento com uma janela quadriculada de vidros manchados, uma escrivaninha de pé tinha um livro, blocos de guias e papéis, calendário na parede, untuoso e com rabiscos e notas, de cuja porta aberta se avistava, permanentemente, a balança do azeite. Ao lado desta, numa ardósia, riscos e traços deixavam contar ao longe a cadência dos quilos dourados e verdes passados ao longo da jornada. Durante o dia era frequente cirandarem por ali também os donos das azeitonas para azeite à maquia, tendo-as pesado na balança da entrada, ajudado a descarregar as sacas nas tulhas, deitando o olho como se fossem capazes, por misteriosa sagacidade, de impedir as flutuações de rendimento que todo o percurso entre as duas balanças, a das azeitonas e a do azeite, poderia permitir ao lagareiro menos escrupuloso ganhar mais do que a percentagem apalavrada. Que ganhava. Ou por uma fuga que ia parar aos infernos e cujos olhos de azeite seriam depois recolhidos, ou por uma partida de massa que ficara travada no meio da distração de reparar um desarranjo duma correia partida, ou pela água que correra quente demais e no decantador se tinham trocado no abrir das torneiras ou, grosseiramente, por uma saca de azeitona que ficara perdida no meio do monte de serapilheiras. Mas tudo de boa-fé. Porque ali no canto, à direita da porta de entrada, junto à caldeira onde ardia baga continuamente, torrava-se o pão para experimentar o azeite novo cujas qualidades se não poupavam a ser repetidas ao dono das azeitonas, comia-se em lascas ou assava-se o bacalhau, cozia-se o polvo, as batatas, a couve, regados duma almotolia de lata e decorados com muito alho, em pratos de esmalte, canecas de asa com vinho também novo, copos baços com aguardente que, naquela atmosfera, parecia nem ter álcool.

Muitos destes lagares têm-se modernizado, outros fecharam, a maioria evoluiu para lagares de ciclo contínuo. Quase todos eles com uma falha enorme: não têm um local, adequado aos tempos de hoje, cumprindo haccp e demais normas exigíveis, para que os visitantes possam disfrutar de provas de azeite como quem vai a uma adega disfrutar provas de mosto, possam adquirir conhecimento, possam apreciar e dar o devido valor a uma das mais antigas e tradicionais agro-indústrias de Portugal. Um local em que se possa, numa deslocação de fim de semana ou numa visita de trabalho, trincar uma inesquecível torrada com azeite novo!  

Sem dúvida alguma que uma das melhores torradas que comi na vida já há umas boas três décadas ou mais – que saudades e vontade de a repetir, mesmo que também repetisse ficar com uma das botas encharcadas por não termos visto bem a valeta, ao entrarmos! – foi uma de centeio, com azeite cru e alho, com uma lasca desfiada de bacalhau seco, com vinho do da Mina tirado dum garrafão, rescendente e escorregadio, num anoitecer frio e de vento agreste que batia muito naquele lagar de Castelãos, nesse ano trazido por conta do nosso amigo António Vila Franca!

 

domingo, 7 de novembro de 2021

AZEITE 2. O preço das azeitonas

Em Elvas, em Abrantes, em Torres Novas, em Montemor ou em Évora e noutras cidades e vilas do Sul, havia em cada uma um ponto fulcral de discussão e acerto. Em Trás-os-Montes, há meio século, era no círculo do Mira, do Paulino, da Caixa Geral de Depósitos e das esquinas do pequeno largo da Pensão Praia, em Mirandela, com um vai-e-vem de atravessar a rua no meio do trânsito (passavam ali mais de metade dos veículos do Distrito!), que entre lavradores, negociantes, informadores do Cachão, candongueiros, chapéus, apertos de mão e samarras, ao frio, vozes e olhares, sob sombreiros abertos se a chuva insistia, se fazia, nas últimas feiras do ano, definitivamente na de 23 de Dezembro, o preço da azeitona da Terra Quente. Os vidros embaciavam e o fumo do tabaco, misturado com o vapor das máquinas de café, davam uma atmosfera de lagar ao Mira e ao Paulino, a que as botas acrescentavam o cheiro. À mesa ou em pé, ao longo da manhã, fechavam-se negócios, com argumentos da funda que constava que já tinham dado os bagos dos olivais de S. Pedro ou dos do Cabral de Guribanes, que em Abreiro isto ou na Torre aquilo, ou com mitos de compradores fantasma. Havia alguns pequenos lagares que já moíam desde a Santa Catarina e as filas para descarregar nas Cooperativas e no Cachão já se iam formando no seu ritual anual (que com estas o preço era outro, o rendimento só no fim da safra se determinava por médias e os escudos e tostões só eram fixos quando o azeite saía, às vezes mêses após, podendo os lavradores por conta ir levantando produtos para grangeio ou alguma importância para despesas prementes).

Com os lagareiros, o dinheiro começava logo a girar. Em Macedo havia dois, três e quatro preços diferentes, conforme: o Cóque adiantava, às vezes ainda antes do Natal, simpático, em preços fixos por baixo, em notas, conversadas no Café Central, sobre olivais de que sabia os rendimentos de memória de campanhas passadas; o Artur Moreno era mais circunspecto e, até, quase secreto nos complexos negócios de acertos de contas para os quais a azeitona era apenas o lastro ou a garantia; os de Castelãos, de Chacim, dos Olmos, de Lagoa, de Vinhas, de Peredo, do Lombo, de Morais, de Talhas, dos Cortiços, tantos outros, valiam-se da premência dalguns proprietários em traduzir em metálico a sua melhor azeitona, levando a outra para as tulhas das Cooperativas ou do Cachão. E notava-se que o dinheiro já corria em sentido inverso ao do azeite quando a afluência e o tom ficava mais animado nas vozes no Germano, no Flórida ou no Tótó, no Campos de Vila Flor, no Saldanha de Peredo ou no Montemel em Macedo. Coisa algo diferente mas também parecida era o que se passava em Alfândega, em Moncorvo, em Freixo, em Mogadouro, onde os primeiros valores eram sempre díspares por causa dos negócios em grande de casas maiores mas, depois, ao terminar o ano, vinha o diapasão da feira de ano, fazendo eco no Montanha ou no Central de Moncorvo: em Mirandela corre a tanto! E, a partir daí, o valor da safra deixava a discussão dos lavradores e passava mais para a dos azeiteiros e negociantes de grosso trato. 

Passava para estes, com o lado divertido ou por vezes dramático que criava histórias e lendas de negócios, tão abundantemente bem sucedidos, que a euforia os levava a escoarem-se nos casinos de Espinho ou da Póvoa ou com pasodobles e tangos, dançados com espanholas em Verín, em Vigo… que não começavam ao acaso: havia anzóis com engodo para fisgar estes peixes mais graúdos quando em trânsito na ronceira Nacional 15, a caminho de Rio Tinto, colocados expressamente em restaurantes já para lá do Marão, em Amarante ou na Lixa, lábios pintados e olhar fulminante, amostras em que só um truta muito seguro de si não deixaria de trincar. E ainda os negócios mais discretos e rendosos dos carregamentos de bidons de 200 litros, às dezenas e centenas, que atravessavam a fronteira miraculosamente invisíveis, em camions que, jurados não ter saído de casa em Macedo nem de nenhum armazém de Mirandela ou de Rebordelo ou das Lamas, tinham feito meia dúzia de horas de quilómetros cobertos de oleados verdes, com as cargas saldadas em Benavente. O câmbio da peseta era estável e, por isso, a repercussão do preço da feira de Mirandela era verdadeiramente internacional. Não por acaso o velho Granjo, meu amigo, em Macedo, e outros em Mirandela, tinham sempre notas do Banco de España disponíveis para as passar, gordos maços nos bolsos de que as contavam, uma a uma, e no-las davam para a mão a troco de escudos, quando as precisávamos para ir a Zamora às tábuas ou aos caramelos. 

Estivesse a chover ou tivesse caído a mais severa geada, houvesse temporal ou fosse uma manhã de sol de Inverno, a feira de ano dos 23 de Dezembro em Mirandela era infalível para os lavradores, fossem eles de Vale de Asnes ou de Vale Benfeito, de Valbom ou da Bouça, de Grijó ou das Múrias, de Suçães ou de Alvites, de Abambres ou Lamalonga, de Ala ou Vila Flor, de todo o lado: a convergência unânime na vila do Tua, nesse dia, traduzia o tangível valor das azeitonas no seu preço em dinheiro,  escasso. 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

AZEITE 1. As lonas das azeitonas

Um dos cheiros guardados da minha infância nasceu no abrir da arca das lonas de serapilheira, um cheiro seco e doce que anunciava azáfama e trabalho heróico: iniciava-se a apanha da azeitona. Basta fechar os olhos e inspirar, perdura ainda. Estou a ver o senhor Maximino de Grijó, em pé, junto a meu Pai, a ouvir as últimas instruções, sob a varanda, e depois todo o rancho a partir para o Olival do Lameirão, olhando o céu, perscrutando as nuvens, carregado de varas de castanho e paus de varejo, sobressaindo o vareiro para as oliveiras mais altas, rolos de sacas e lonas, cestos de verga de pôr ao braço e canastras maiores, que uns levavam viradas sobre a cabeça. Muitas vezes fui com eles e experimentei o sentir os dedos hirtos no regelo dos dias de geada a pegar com esforço e dor em cada bago, o peso do balanço que dar à vara, certo, regulado e travado para não ferir demais a oliveira, o correr para baixo duma árvore maior se a bátega aumentava e alagava tudo, costas a gelar com a água. Parava-se para um pão com toucinho salgado e bolos de bacalhau, café de cevada quente ou vinho em caneca, tirado duma cabaça, acesa uma fogueira de guiços juntados, cujo fumo morno era um consolo e secava aventais e xailes. Que bem sabiam então uns figos secos, umas nozes ou umas rodelas da chouriça assada com pão de centeio! O orgulho do grupo e promessa de dia pago ia ficando aqui e ali, sacas cheias de madurais, verdeais, cobrançosas e santulhanas, entremeadas com as galegas das oliveiras grandes, com as negrinhas mais esmagáveis, mistura de cores e tamanhos, recolhidas ao longo do regresso num carro de bois que nos acompanhava. Seriam ainda descarregadas numa tarde de sol e vento frio, num monte, no qual se cravava uma pá de madeira que as atirava ao ar com exímia pontaria, indo cair adiante, sobre as lonas, deixando nesse voo ficar para trás as folhas, e sendo novamente ensacadas apenas as azeitonas, atadas com baraços de sisal por duas mulheres mais possantes que as passavam aos rapazes mais expeditos, a pô-las de novo no carro que as traria para o cabanal a aguardar a vez de as levar ao lagar. Bojudas, as sacas remendadas e manchadas tinham alguns dizeres: café de Angola, qualquer coisa Alcácer, qualquer coisa Brasil, uma delas a palavra Farinha já mal distinta num tom desvanecido.


Esse cheiro guardado da infância das lonas e sacas da azeitona, quase todas de serapilheira marcada com AC ou MC (as letras das iniciais do meu Avô e do meu Pai), uma ou outra ainda, mais remendada, de estopa com S (de Sousa, da casa das minhas Tias e do meu Bisavô), esse cheiro, digo, chega até mim como um perfume dum tempo difícil e bom (porque os tempos podem ser difíceis mas bons), de ritmo marcado pelas culturas do ano em que a da azeitona era uma das nobres! Essas lonas e sacas saíam das arcas lavadas e secas, depressa se manchavam com o trabalho, a terra, a chuva, as azeitonas esmagadas. Rasgavam-se e eram logo remendadas com fio-de-norte e agulha grossa que também refazia bainhas nas pontas esfiapadas. Aguentavam todos os tratos durante a apanha da azeitona (e uma delas iria servir para cobertura duma tenda que eu montara no quintal, qual Baden-Powell, com uma armação de choupo e freixo de galhos tirados do sequeiro!). Aguentavam tudo e que pena tenho de as não ter com as suas histórias, remendos eloquentes, testemunhos de fabrico duma economia circular que já o era avant-la-lettre, memória de civilização e também duns namoros que se pressentiam quando ficavam a secar, já no fim, confortáveis sobre a palha e o feno guardados no palheiro. Logo que em Fevereiro ou Março vinham uns dias de sol firme com manhãs de geada, eram levadas para o tanque da horta de “lá-detrás” e lavadas com sabão, passadas por água, postas a escorrer, depois suspensas no longo arame de pendurar a roupa, esticado entre o freixo, olmo grande e a catalpa do quintal. Logo que secas, dobravam-se e ainda esperavam uns dias, ou na cozinha, ou já na despensa em cima da vasta arca do grão (centeio e trigo, que cheiro tão bom, também!) antes de irem para a sua. De onde voltavam a sair em dias quentes de Maio ou Junho, se lhes reavivavam as letras com tinta vermelha, se espairecia algum mofo de guardado, se preparavam, mas poucas, para quando surgisse terem de ir às nozes ou às amêndoas, também alguns dos seus dias de glória, completados pela honra destes frutos em cima de si secarem, ao sol no chão do quintal ou no telhado de zinco, aqui a acompanhar as ameixas.

Guardei sempre o cheiro das lonas como um dos cheiros da minha infância. Pelo seu carácter, pelo seu significado, por ser tão bom! Um cheiro de trabalho e dificuldade mas também um cheiro de satisfação e abundância. Um cheiro de alegria e felicidade. Um cheiro de vida. Um perfume.

Hoje o azeite já nada tem que ver com o cheiro destas lonas mas tem ainda muito de si: o de permanecer na memória com o brilho das coisas dignas de permanecer na memória. E se este cheiro vem de tão longe até ao teclado do meu computador, é porque dele também se faz a luz que o azeite, ao arder desde há milénios de civilização, tem espairado sobre nós. De forma doce e seca, brilhante, como quem abre as arcas de guardar lonas e sacas de apanhar azeitonas com o mesmo encanto e expectativa de quem puxa o lustro à lâmpada do génio de Bagdad. No dia de começar. Para a apanha das azeitonas da nossa vida. Doces, secas, cheias de luz.    

sábado, 18 de setembro de 2021

Vinhas Velhas

© Manuel Cardoso

 

Há vinhas velhas péssimas e há vinhas velhas óptimas! Tal como há vinhos péssimos, bons e óptimos, feitos de uvas de vinhas velhas! Então, valerá a pena a distinção dum vinho por ser duma vinha velha e mencioná-lo no rótulo? Vale.

Ter num copo um bom vinho duma vinha velha é ter uma combinação, única e irrepetível em cada vindima, em que a complexidade é o seu carácter distintivo. Complexidade que vem da diversidade e da heterogeneidade das uvas que estão na sua base, tanto de castas como de diferentes maturações. Vinhos que são produtos de um field blend que os faz ter estruturas e texturas que podem e devem surpreender pela positiva, sobretudo se o trabalho perito de enólogo na adega modelou os taninos e deixou bem espertos os espíritos e aromas para um prolongado fim de boca de grande prazer. Um bom vinho duma vinha velha deve ser um suprassumo – embora nem todos o consigam!


Tem havido uma grande disparidade de definição de critérios para “classificar” uma vinha velha, a começar pelo da sua idade. Uns advogam 35, outros 80, outros 100, outros um outro qualquer número de anos, ainda por cima variáveis conforme os países e regiões! Do que nos tem sido dado perceber, fruto de muitos anos a provar “vinhos de lavrador” em pequenas adegas recônditas abastecidas por uvas de vinhas de gerações, cuidadas apenas nas horas vagas dos outros trabalhos agrícolas, com uma mínima ou nenhuma intervenção química, de cepas retorcidas no chão sem aramados nem esteios, é possível ser-se surpreendido por autênticas grandes pingas aí geradas quase ao acaso. De que castas? Uma Babel de sinonímias! De quantos anos? “Já do tempo dos meus avós, fui repondo as que secaram…”

Ora, há um ou mais pontos em comum entre estas vinhas velhas e as que, um pouco por todo o lado, existem nas quintas familiares ou de empresas: são vinhas de fim de ciclo das videiras ou, pelo menos, em declínio da sua produção e da sua pujança vegetativa, plantas com grande maturidade e baixa produtividade, menos cachos e menores, habitualmente em grande densidade de plantação e com castas tão diversas que chegam a bem mais duma meia centena numa mesma parcela. Quase se adivinha o esforço da cepa para produzir exíguos números de bagos! Mesmo que (prática atenta, oportuna e louvável dalgumas quintas) se vão fazendo reposições da mesma videira cujo clone é conservado em vaso ou num campo de conservação ex-situ, para a eventualidade provável dela secar, a maioria das plantas da parcela estará nas condições descritas, pelo que as qualidades de cada bago multiplicada pela variedade de castas, dará um mosto forçosamente diferente do obtido numa vinha pujante, jovem ou adulta e em plena produção: daí resultarem os vinhos de grandes e surpreendentes aromas, profundidade, complexidade e magníficos fins de boca, que um enólogo com expertise consegue na adega a partir do mosto das uvas duma vinha velha. Um excelente enólogo me dizia um dia, provando nós uns “vinhas velhas” a que vigiava a evolução, que era o que lhe dava mais sentido de realização, o conseguir fazer, para a empresa para que trabalhava, um vinho digno desse nome no rótulo, honesto para o comprador, se possível inesquecível para quem o viesse a provar e a beber!

Por isso, a questão da qualidade dos bagos e da sua variedade e heterogeneidade, numa vinha cujo tempo áureo de produção já passou, é mais importante do que o valor absoluto de anos de idade das suas cepas. Poder-se-á arranjar uma fórmula fácil para classificar uma vinha de velha em que os factores idade média das cepas, número de plantas, número de castas, e o que mais se quiser pertinente seja tido em linha de conta. Mas haverá que complementar isso com outra coisa para que o vinho possa ser “vinhas velhas”: uma prova profissional do vinho, feita pelo próprio enólogo do produtor, que avalie e assegure as características expectáveis – e as surpreendentes – para quem o consumir. Porque assim se assegurará a sua excelência e o seu valor e se garantirá uma remuneração justa no seu preço ao produtor, essencial para que perdurem as vinhas velhas e não esmoreça a willing to pay de quem o quiser comprar.     

Nem todas as vinhas velhas darão para se fazerem bons vinhos nem são a condição suficiente para tal. Mas perder a oportunidade de os conseguir a partir duma vinha velha que tenha esse potencial, pode ser perder para sempre um valor cultural e intrínseco que não será repetível numa vinha nova a não ser passados muitos anos. Não ter essa atenção pode ser uma perda irreparável. Por outro lado, vulgarizar-se a designação de “vinhas velhas” num rótulo só porque dá um adorno, se não tiver fundamento no field blend, pode significar uma desvalorização irrecuperável desta designação feliz.

Vale a pena, por isso, que ao rótulo corresponda uma história e descrição da vinha velha de que saíram as uvas desse vinho, que poderão e deverão estar online no site da empresa ou do produtor e acessíveis com dois ou três clics. A boa ética fará o resto para que o consumidor possa compreender o valor do vinho que tem no copo e saber que o que paga a mais não tem só a ver com as uvas em si mas com toda a história da vinha e do vinho e consigo próprio, por ser um privilegiado e pertencer a uma minoria no mundo a poder contribuir para a preservação da biodiversidade e do património vitícola sempre que está a provar e a beber um produto de savoir faire e de civilização!

O estudo e conservação das vinhas velhas deveria merecer, numa check-list de avaliação de sustentabilidade duma exploração vitícola, uma consideração especial como menção na certificação dessa mesma sustentabilidade, na sua valência cultural.

Conservar uma vinha velha é salvaguardar a história viva e beber um copo dum vinho genuíno duma vinha velha, ainda por cima se for bom, é algo que harmoniza gastronomicamente com muita coisa e que a nós, felizes bebedores, harmoniza com a mais antiga e fantástica bebida de alegria.   

domingo, 5 de setembro de 2021

Os vinhos de Viana e o vinho do Porto - uma proposta de interpretação

© Manuel Cardoso, Setembro 2021

(actualizado em 5.09.2021)

 


1.       Desde a nossa Primeira Dinastia, quiçá antes, que os vinhos do Entre-Douro e Minho foram exportados pela barra de Caminha e, sobretudo, pela barra de Viana do Castelo, então Viana da Foz do Lima, de onde há mesmo a referência da expedição duma pipa para as cerimónias de entronização dum Bispo de Inglaterra em 1295! Já antes, 1261, está documentada a produção de vinhos de qualidade em Monção. Esses vinhos, que seriam predominantemente tintos, gozavam de sólida reputação e evoluíram até ao fim da Idade Média de tal modo que chegaram a ser considerados tão finos e apaladados como os de Borgonha, evolução essa a que não foi estranha a acção dos monges beneditinos e de Cister. A produção assegurava quantidades que satisfaziam o autoconsumo e o negócio local e sobravam para ser comercializadas para fora: para o Porto, para Lisboa, para o estrangeiro, sobretudo para Inglaterra, tendo-se estabelecido uma feitoria inglesa em Viana da Foz do Lima com actividade também em Monção, que comprava e fazia embarcar vinhos provenientes sobretudo desta última vila e da Ribeira Lima (Ponte de Lima, Arcos de Vale de Vez, Ponte da Barca). As zonas de produção foram-se estendendo e a acção de prospecção de fornecedores por parte dos negociantes foi-se especializando tendo chegado mesmo a haver vinhos de Basto e de Riba Douro a ser expedidos por aquela cidade costeira do Minho. Com a segunda metade do século XVII assistir-se-á ao declínio do movimento por Viana e suceder-lhe-á o Porto, sendo a data de ponto de não retorno a de 1677-78, tornando-se tal inevitável devido a políticas administrativas e fiscais que beneficiaram sobretudo os ingleses nesta última cidade, a tratados internacionais, à preferência dos exportadores por vinhos de outro perfil e ainda às dificuldades de acostagem e navegação no porto de Viana, cujo cais terá sido danificado por mau tempo várias vezes e as vias de navegação assoreadas também várias vezes, uma das quais em 1709 e após despesas e trabalhos de correcção anteriores. Apesar disto, os vinhos de Monção continuaram a ter procura e eram feitos transportar em lanchas de cabotagem de Caminha e Viana para o Porto, sendo apreciáveis as suas quantidades mesmo em 1730, já com um florescente movimento de vinhos do Cima Douro para a barra deste rio, com trato pelos mercadores e taberneiros do Porto e de Gaia aos estrangeiros que os exportavam. O que acabámos de escrever é consensual entre os autores António Barros Cardoso, Charles Sellers, Aurélio de Oliveira, Gonçalo Maia Marques, Anselmo Mendes e muitos outros que, mais profundamente do que eu, estudaram e publicaram trabalhos, teses, artigos e livros sobre o assunto dos Vinhos Verdes.

2.       Queremos pedir a atenção para que esta fase da história dos Vinhos Verdes, da Idade Média até aos setecentos, seja considerada em três períodos distintos: um que dura cerca de três séculos, XIII, XIV e XV, em que se estabelece de forma segura a produção de vinho do Entre Douro e Minho com exportação sobretudo por Viana, um vinho sobre o qual não há referência de defeitos; o dos séculos XVI e parte do XVII, ao longo dos quais a sua qualidade se terá pouco a pouco deteriorado, em que os comerciantes começam à procura de outras fontes de vinho tentando manter as que tradicionalmente são fornecedoras e demandando ainda a barra de Viana mas em que está já documentada a existência de diferentes tipos de vinho, denotando-se diferenciação entre vinhos de diferentes perfis; o do final do século XVII e do início do século XVIII, em que se assiste ao declínio da produção de vinho do Entre Douro e Minho para exportação e a sua “substituição” pelos vinhos do Cima Douro e do Porto, em rápida expansão, sendo que se estabelece a feitoria inglesa no Porto e passa a haver a presença dum Cônsul residente. Para tal declínio são apontadas guerras e devastações, fugas das populações e abandono dos campos e das vinhas, problemas de navegação na barra de Viana, medidas discricionárias que beneficiaram os ingleses no Porto e uma misteriosa e não identificada doença que teria afectado as vinhas do Minho. Charles Sellers no seu Oporto Old and New resume de forma eloquente mas redutora: “In course of years the exports of wine from the Province of Minho ceased because that from the Douro region was preferred; furthermore, many of the Minho wines succumbed to a disease of wich we have no details”.

3.       Os vinhos então conhecidos como “vinho de Viana” terão sido de muitos perfis. Para gozarem da fama de “comparáveis aos de Borgonha”, os “maduros de Monção” seriam  diferentes dos de hoje e, na sua maioria, tintos. Eram conhecidos, tal como os de Ribadavia, por serem “vinhos parduscos” isto é, feitos com uvas brancas e tintas. A sua qualidade fê-los ganhar distinção e notoriedade a ponto de terem valor de exportação para a Inglaterra, a Flandres (o flamengo Clenardo, no século XVI, a viver em Portugal, refere-se-lhes positivamente como “vinhos de estalo”!), a Alemanha, a Terra Nova e o Rio de Janeiro. Aguentaram-se em competição com os vinhos do Douro, tendo Thomas Woodmass, citado por Gonçalo Maia Marques, afirmado: “os vinhos de Monção e de Viana são muito judiciosamente tidos como muito similares aos da Borgonha (…) paguei muito mais caro por um pouco de Borgonha que não se igualava com o que, por muito menos dinheiro, bebi em Viana”.  É a partir dos finais do século XVI que surge a designação de vinho verde para outra categoria de vinhos, também exportada por Viana. Tinham baixo valor alcoólico, frescura natural, mas com sabor “um pouco ao agraço” por serem feitos de “uva mal sazonada”. Eram despachados em grande quantidade para as armadas e tabernas por serem mais baratos e comparáveis aos amarais (do latim amarus, amargo), sendo designados pelos ingleses de eager wine (in old English and old French the word eager – aigre – meant sour or sharp). Era o verde de ramo, dito azedo por Sá de Miranda, e que teve grande comercialização para marinheiros e trabalhadores rurais, a par dos de melhor qualidade para as classes mais abastadas. Nos conventos era o vinho dos trabalhadores rurais e que era vendido para fora. Quem negociou muito destes vinhos de Viana já na segunda metade do século XVII foram os Bearsley, estabelecidos primeiro em Viana e, depois, no Porto.

4.       Após alguns pioneiros, terá sido Job Bearsley a partir de 1659 quem se terá interessado em mais larga escala pelos vinhos durienses (“calibrados” com aguardente pelos mercadores e taberneiros do Porto pelo menos desde 1610, quando se deu um recrudescimento do seu comércio após anos de estagnação), com paladar mais ao gosto preferido pelos seus clientes ingleses. A pouco e pouco foram crescendo as quantidades de vinho preparado no Porto e em Gaia por si adquiridas e exportadas e cada vez mais decrescendo as de vinhos de Viana, com a excepção de se manter ininterrupto o interesse pelo de Monção. Os Bearsley percorreram bem o Minho, subindo o Lima nos barcos de água-arriba até Ponte de Lima e, depois, a cavalo ou noutro meio de transporte ficaram a conhecer bem os produtores da Ribeira Lima e de Monção. Empreenderam mesmo uma ou mais incursões ao Douro a partir de Viana e, tomando conhecimento da região, essa informação terá pesado nas decisões empresariais da família que chegou a adquirir, algumas décadas depois, uma quinta nesta região. As rotas comerciais de então estavam estabelecidas e a comunidade estrangeira de Viana tão bem implantada, com Vice-Cônsul residente, que durante anos houve várias tentativas e obras para o conserto dos cais e desassoreamento da barra mas a natureza terá repetido, em maus invernos quase sucessivos, os estragos que inviabilizaram a sua utilização segura por navios de maior porte. Pelo que a atractividade do Porto, para a qual contribuiu também a política fiscal, como dissemos, acabou por levar a melhor. Podemos resumir que a ascensão do vinho do Porto se dá com o declínio do vinho de Viana pela alteração verificada nos perfis destes vinhos, pelos benefícios fiscais dados no Porto e por uma questão de navegabilidade e comunicações. Os Bearsley, tal como outros, viveram nessas realidades e tiveram de tomar decisões.

5.       O primeiro dos três períodos a que nos referimos acima, em que o vinho verde, pardusco ou tinto, ganhou notoriedade e passou a ser exportado, coincide com o chamado óptimo climático medieval em que as temperaturas foram superiores à média e houve chuvas e estações amenas e regulares. Cremos que tal foi particularmente bom para a agricultura e, nomeadamente, a viticultura, excepto alguns anos pontualmente irregulares. A actividade agrícola e económica em geral ganhou um grande incremento durante o óptimo climático medieval e ainda se manteve durante quase um século após, beneficiando da experiência das culturas entretanto implantadas (houve entretanto a ocorrência calamitosa da peste negra em diversos surtos mas não nos vamos ocupar agora dessa perturbação). No segundo período, nos séculos XV e, sobretudo, XVI, o clima foi fortemente alterado, agravaram-se as condições da chamada Pequena Idade do Gelo sentida por toda a Europa e a que não escapou o Noroeste Peninsular, as temperaturas desceram e muito, as estações passaram a ser irregulares e com anomalias climáticas frequentes com chuvas a estender-se até Julho e anos de seca extrema em que as árvores secaram. A regra passou a ser uma grande imprevisibilidade devido a uma grande irregularidade e variabilidade térmica e pluviométrica. Houve muitos anos em que as chuvas prolongadas impediram trabalhos agrícolas em Maio, Junho e Julho! Os verões passaram a ser frescos com picos de temperaturas extremas, muitos anos chuvosos ou com falta de chuva a ponto de que “as viñas se secassem por el estio e falta de agua”. Ora, para a fotossíntese e para a maturação das uvas exige-se uma amplitude de temperaturas entre 10°C e 35°C, que os terrenos tenham boa drenagem e que o stress hídrico não ultrapasse a tolerância de cada casta. Por isso esse período terá feito com que as uvas não amadurecessem completamente em todos os locais e daí, cremos, não ser coincidência que a expressão vinho verde e eager wine e as suas características tenham surgido a partir do século XVI e tenham perdurado. Porque esses anos de temperaturas médias mais baixas e clima mais rigoroso e anómalo durou até meados do século XIX. Aliás, agravou-se especialmente no período em que estamos focados, que temporalmente ocorre de finais do século XVII e início do século XVIII, acima referido, conhecido na história do clima como o Mínimo de Maunder Tardio, de 1675 a 1715, em que as colheitas foram irregularíssimas, houve cheias frequentes, Primaveras e Outonos frios, Verões amenos ou mesmo frios, anos de secas estivais prolongadas em Setembro e Outubro e anos de chuvas persistentes que não deixaram amadurecer os frutos. O ano de 1694 ficou conhecido como o da grande seca e o de 1709 como o do grande Inverno. Tudo isto cremos que não será coincidência nem alheio às mudanças verificadas na produção e comércio de vinhos nos séculos XVII e XVIII. O declínio do vinho verde dessa época e a ascensão do vinho do Cima Douro, onde o clima é mais quente porque com maior influência continental e mediterrânica e onde as condições extremas terão tido menos impacto nas vinhas do que o do atlântico Entre Douro e Minho, foi em boa parte o produto de tais irregularidades climáticas que, vividas pelos comerciantes e repercutidas na qualidade dos vinhos, os obrigaram a decidir ano a ano em face das melhores ou piores, neste caso bem piores, vindimas no Entre Douro e Minho. Não terá sido uma disease a acontecer no Minho, como referia Charles Sellers, mas terá sido o clima, um clima que não terá devastado todas as vinhas mas terá comprometido muitas e sucessivas vindimas.

6.       Esta proposta de interpretação sobre o declínio do vinho de Viana e, como tal, dos Vinhos Verdes há quatro e três séculos é falível, evidentemente, mas merece alguma atenção e discussão para o presente já que, estando agora nós num período em que há um aquecimento global e as temperaturas voltam a ser da ordem das que ocorreram durante o óptimo climático medieval, surge uma oportunidade climática para tentar recuperar algumas das características que terão estado na base da fama antiga e internacional, que vem do tempo da nossa primeira dinastia!, dos vinhos tintos de Entre Douro e Minho. Em gabinetes de estudos das empresas deve ter havido esta consideração para alguns dos investimentos que têm estado, ultimamente, a ser feitos na região. Não será fruto do acaso que algumas castas em determinados terroirs e geografias apareçam a desafiar o status quo. O terroir é o mesmo de há quinhentos e de há mil anos, haverá que adequar a biologia ao climat que se adivinha para os próximos tempos. Numa leitura rápida poder-se-á logo questionar: então se a Pequena Idade do Gelo terminou em meados do século XIX, por que não recuperaram os vinhos verdes as suas características anteriores, entretanto? Não sabemos a resposta mas há desde logo variáveis em hipótese a considerar para discussão – e uma discussão interessante!: a implantação e tipo da vinha, os sistemas de condução e o facto, de suma importância, de que desde a segunda metade do século XIX as castas no Entre Douro e Minho obrigam a porta-enxertos para a sua sobrevivência e isso terá alterado, e muitas vezes de forma cega, tanto para o melhor como para o pior, a expressão fenológica e as características produtivas da videira… mas tal ficará para discussão de especialistas, que ouvirei ou lerei atentamente.  

7.       Bibliografia consultada para a redacção deste artigo:

-Francisco Girão, um inovador da vitivinicultura do Norte de Portugal, Vol. I e II, coordenação de Nuno Magalhães, edição da Fundação Francisco Girão, 2011;

-Vinhos Verdes, a região, a História e o Património, António Barros Cardoso, ed. Município de Ponte de Lima, 2016;

-La Pequeña Edad de Hielo en Galicia: Estado de la cuestión y Estudio Histórico, Camilo Fernández Cortizo, Universidad de Santiago de Compostela, in Obradoiro de Historia Moderna, n.º 25, 9-39, 2016;

-Alterações Climáticas e Agricultura, Dionísio Afonso Gonçalves, Tomás de Figueiredo e António Castro Ribeiro, in Revista da APH, n.º 110, 30-33, 2012;

-Do vinho de Deus ao vinho dos Homens: o vinho, os Mosteiros e o Entre Douro e Minho. Gonçalo Maia Marques. Dissertação de Doutoramento em História. Faculdade de Letras da Universidade do Porto. FCG. 2011;

-O Sector dos Vinhos no Entre Douro e Minho nos tempos do Antigo Regime, Aurélio de Oliveira, FLUP, 2012, disponível em pdf online;

-Os vinhos no Porto, Aurélio de Oliveira, in Douro, Estudos e Documentos, Vol. I (3), 1997 (2.º), 45-70;

-Os Vinhos em Portugal (1300-1820), Aurélio de Oliveira, comunicação apresentada no Congresso internacional VIII Seminario Iberoamericano. Viticultura e Ciencias Sociales, universidade de Talca, Janeiro 2006, disponível online;

-Estrangeiros, Vinhos de Viana e Vinhos do Porto (Séculos XVII - XVIII), António de Barros Cardoso, Revista Iberoamericana de Viticultura, Agroindustria y Ruralidad, vol. 4, núm. 12, septiembre-, 2017, pp. 163-179. Universidad de Santiago de Chile;

-Oporto Old and New, Charles Sellers, ed. Herbert E. Harper, London, 1899;

-Metz : une « ville du vin » confrontée au petit âge glaciaire à la fin du Moyen Âge (v. 1400-1540), Laurent Litzenburger, Extrait de : Patrick Demouy (dir.), Les Boissons, éd. électronique, Paris, Éd. du Comité des travaux historiques et scientifiques (Actes des congrès nationaux des sociétés historiques et scientifiques), 2014. Disponível online;

-Variações climáticas do passado: chave para o entendimento do presente? Exemplo referente a Portugal (1675-1715), Maria João Alcoforado, UL, in Territorium 6, 1999. Disponível online;

Agradeço à Doutora Anabela Ramos algumas pistas bibliográficas importantes que me indicou.

 


sábado, 7 de agosto de 2021

O Vinho de Portugal

 © Manuel Cardoso, Agosto 2021

O Vinho de Portugal está num bom momento. Cada vez melhor em qualidade, aumento das exportações, subida do preço médio pago por litro - subida essa espectacular nalgumas categorias de vinhos - o que, para além doutros indicadores, nos permite dizer que o valor global do negócio estará num dos seus mais altos momentos deste século. Para este bom momento têm contribuído os técnicos de excelente nível que nas empresas produtoras, transformadoras e de marketing, nas CVRs, nos organismos interprofissionais e nos Institutos Públicos têm assegurado trabalho, aplicado as verbas disponibilizadas para investimento pelos programas de apoio e desenvolvimento e garantido incrementos constantes de renovação, inovação, melhoria da qualidade e ganhos de notoriedade nos mercados. Desacelerou e está, até, num ponto de viragem, a diminuição de área de vinha existente. As empresas têm sido o grande motor de toda a torrente de lucro e excelência do negócio, a par de algumas cooperativas exemplares que, tendo aderido cada vez mais ao reconhecimento DO e IG dos seus vinhos, se têm juntado, a pouco e pouco, ao clube da qualidade. Podemos, pois, erguer os copos e fazer um brinde de congratulação! Em cujo brinde não podemos esquecer toda a investigação e formação académica que informou o renascimento e transformação do sector da vinha e do vinho nas últimas décadas e às boas decisões políticas (brindemos apenas às boas e esqueçamos as outras) que puseram em prática medidas pertinentes. Sentando-nos, de seguida, para alguma conversa de reflexão e discussão entre amigos. 


O Vinho de Portugal tem a sorte - que sai de muito e profissional trabalho - de além de ter excelentes produtores, ter muita gente a escrever e a opinar sobre a vinha e sobre o vinho de forma comprovada. A escrever e a opinar bem ou a dar espaço ao contraditório e com um grande entrosamento com a produção e com o público, de tal modo que quem ler, sejam as colunas da Revista de Vinhos, da Paixão pelo Vinho, da Grandes Escolhas, do Expresso, do Público, do JN, da Evasões e outras mais, além das páginas pessoais e empresariais que há nas redes, fica com uma visão multifacetada e abrangente da vinha ao copo. Quem ler os editoriais deste ano e a generalidade dessas publicações não pode deixar de constatar que o optimismo partilhado neste artigo teve o impulso não só nos números sobre o vinho que têm sido divulgados pelo IVV mas também nas entrevistas de responsáveis institucionais da ViniPortugal, da ACIBEV, da AEVP, em que se procurou corroborar e alinhar as opiniões aqui vertidas. E quanta e inestimável informação se pode tirar das páginas dalgumas CVRs, dos IVV, IVDP e IVBAM, disponível a todos e em tempo útil! O mesmo se passa com a investigação científica e tecnológica, quer a académica quer a aplicada, que além das universidades tem ainda protagonistas no INIAV, na PORVID, na ADVID, na ATEVA e que muitas empresas têm apoiado ou incentivado, quando não tomado mesmo a iniciativa, fazendo com que a utilização de drones, de robots na vinha e na adega, de ajustamento às práticas da vitivinicultura de precisão, estejam cada vez mais generalizadas. É claro que será redutor dizê-lo assim mas este século conta já com duas grandes publicações magistrais: Portugal Vitícola - O grande Livro das Castas, de Jorge Böhm, e o Tratado de Viticultura - A Videira, a Vinha e o Terroir, de Nuno Magalhães. Quem estiver atento sabe, por isso, que a sorte que faz com que possamos brindar com vinhos cada vez mais leves, elegantes e frescos - e poderosos! - é fruto do trabalho profícuo da vitivinicultura portuguesa na qual não podemos deixar de incluir os produtores, os cientistas, os críticos e os analistas!              

O Vinho de Portugal tem um desafio de curto prazo para algo que já deveria ter sido feito há anos e para o que agora não pode perder tempo: o de ter um normativo nacional de reconhecimento de sustentabilidade. Não vai ser difícil para muitas das nossas empresas e cooperativas cumpri-lo já que o cumprem de motu proprio na maioria dos requisitos, senão todos, que servirão de referência para esse reconhecimento. Tal sustentabilidade, a que as Resoluções OIV-VITI 641-2020 e OIV-CST 518-2016 dão a letra, tem que, da parte de Portugal, ter um foco especial na vertente cultural já que de tal podemos tirar partido uma vez que a RDD é a mais antiga região demarcada e regulamentada do mundo e, coincidentemente, o ADV é Património Mundial da Humanidade, Paisagem Cultural Viva e Evolutiva, reconhecida pela UNESCO. Além de que a especificidade de cada região e dos seus processos de vinificação tem de reflectir-se no carácter do vinho produzido e o torna especial e único e isso deve ser explicado ao consumidor e estimular a willing to pay por esse produto sustentadamente diferenciado. Assim, a sustentabilidade económica, social e ambiental deve articuladamente compreender a sustentabilidade cultural a que aludem aquelas Resoluções da OIV. Mas vai ser mais difícil, se bem que não é impossível, ao Vinho de Portugal, conseguir pôr-se à velocidade a que internacionalmente o sector tem incorporado a inovação relacionada com a sustentabilidade: novas embalagens e formas de transporte, novos perfis de vinho, novas atitudes comerciais perante as novas gerações. Não se fale só de substituir vidro pesado por vidro leve: falemos de alterar o formato das garrafas para melhor eficiência na ocupação do espaço de transporte; de substituir vidro por outros materiais; de diversificar as formas e tipos de bag-in-box, assim como formatos e capacidades de vinho em lata; de produzir vinho de categorias mais leves em grau alcoólico para competir com bebidas de graus congéneres etc. etc. É claro que irá sempre haver espaço para todos os que, como nós hoje aqui, queremos continuar a poder tirar ou fazer saltar a rolha a uma garrafa e bebê-la com estilo, apreciação e gosto com os nossos amigos mas a concorrência internacional neste campo é cada vez mais forte e será suicídio ignorá-la. De hoje para amanhã deveremos também poder entrar num restaurante ou numa tasca castiça, apontar o nosso iPhone ao QRcode e seleccionar de qual bag, da fila dos coloridos e impressos com imagens cativantes e sedutoras, pendurados em cima do balcão na caixa de acrílico em ambiente de temperaturas controladas, queremos preencher o nosso copo! Também vai ser mais difícil ao Vinho de Portugal - mas tem que ser capaz, chamando ao seu campo investigadores, académicos e opinion-makers que saibam argumentar contra a demagogia - resistir à onda anti-álcool que se aproxima e que o toma, ao vinho, como alvo principal, já que assim congrega na sua ofensiva interesses múltiplos a que se somam alguns do próprio sector do álcool e que beneficiarão se diminuir a quota de mercado do vinho relativamente à de outras bebidas alcoólicas. Saber argumentar defensiva e afirmativamente será cada vez mais importante em diferentes fóruns: no da saúde, no do marketing, nos do aprovisionamento de entidades e mercados.

O Vinho de Portugal tem um problema: o do Vinho do Porto. Que tem que resolver. Desde há anos que tem descido a exportação, desde há anos que tem descido o seu consumo. Esta descida é má para o Vinho do Porto e é muito má para o Vinho de Portugal. Se na sua esteira se fizeram outrora exportações de outros vinhos, nalguns casos o Porto hoje em dia segue à boleia de encomendas de outros. E isto não pode ser. Perdemos todos. No capítulo pósfacio 20 Anos Depois do seu DOURO, RIO, GENTE E VINHO, António Barreto já tocou de forma transparente este assunto, em 2014, chamando a atenção para algo que ele entendia que "O Douro parece estar a conseguir algum êxito num domínio de tradicional dificuldade: renovar, fazer evoluir e mudar, mas preservar o essencial." Todos nos convencemos que sim. O enoturismo, a Ribeira de Gaia, os investimentos no Douro, os novos produtos Portonic, o Pink. Claro que a pandemia fez um hiato. Claro que tudo pode e vai dar a volta. Wishfull thinking. Há que fazer muito mais. Como disse também António Barreto "A experiência e a cautela, bem doseadas, e a ousadia, são as receitas." E são. Por isso, há que resolver o problema, tomar decisões e partir para uma política comercial agressiva, ousada, moderna e mundial. Com um plano decidido interprofissionalmente. Não é compreensível que no país do Vinho do Porto folheemos revistas e jornais em que não haja artigos de informação e publicidade sobre Vinho do Porto. Está presente na nossa História, e de que maneira!, mas está ausente das nossas ementas de restaurantes! É inaceitável que haja bares em Portugal nas praias, nos hotéis, nos restaurantes, sem um cartaz moderno sobre Vinho do Porto! É inaceitável que os jornais e revistas de grande circulação internacional não tenham, de forma regular, propaganda e artigos e não só nas revistas sobre vinhos, também nas revistas de outros públicos porque é em públicos novos que devemos procurar novos consumidores. Se a população mundial aumenta, potencialmente aumenta o número de consumidores. Tudo isso custa caro? Muito mais caro a Portugal está a custar a diminuição das exportacões e de consumo de Vinho do Porto. Fizeram-se estudos sobre os porquês, façam-se mais estudos, como se queira, mas, por favor, passe-se à acção! Andar a rondar as 100 000 pipas anuais de benefício sem daí descolar será aceitar com resignação a decadência dum produto cujo potencial tem ainda muito para dar e por muitos e bons anos! Estabeleçam-se metas para a sua resolução mas não se perca mais tempo! 

O Vinho de Portugal tem um grande futuro! Em primeiro lugar, pelo seu grande passado. Dos três produtos alimentares portugueses emblemáticos, identitários e de distribuição em grande escala, as conservas, a cerveja e o vinho, este último é aquele que ainda antes da nossa nacionalidade já se encontrava no território, de norte a sul e do interior ao litoral, essencial à economia, como vinho, como vinagre e, mais tarde, também como destilado, mantido em utilização ininterrupta até hoje, presente na alimentação, na indústria, na medicina e na religião, nas nossas cidades e aldeias e nas nossas comunidades espalhadas pelo mundo, companheiro nas nossas viagens, factor de civilização e desenvolvimento dos nossos territórios, lastro seguro e essencial da nossa balança de pagamentos. Em segundo lugar, pela maleabilidade e tangibilidade do seu investimento, passível de rápidas transformações e convertibilidade, associação ao turismo e factor de percepção de valores associados à natureza, ao bem-estar, à saúde, com reconhecimento internacional e, como tal, elemento seguro para aplicações de capital. Em terceiro lugar, pela grande biodiversidade das castas que lhe dão origem, garantia de carácter e, ao mesmo tempo, de resiliência perante a evolução climática que se verifica, em que, fatalmente, algumas castas terão de mudar de localização para continuar produtivas e outras irão ocupar esses espaços para que a produção se possa manter nesses terroirs. A nossa grande biodiversidade é o grande trunfo para que não tenhamos que produzir vinhos iguais aos outros, de perfil de três ou quatro castas e que só com heterodoxos cruzamentos híbridos sobreviverão dentro de décadas. A nossa biodiversidade vitícola terá que ser mantida em investigação permanente e evolutiva como o tem feito a PORVID para detecção e multiplicação dos clones intravarietais que permitam fazer face aos desafios climáticos e exigências ambientais: será a grande chave para a manutenção saudável e produtiva dos nossos vinhedos. Finalmente, porque o Vinho de Portugal é feito com a nossa vontade, a de um povo que quis o mar e o teve, como nos sussurra Pessoa, e nos ensina a arte de ver a história de cada um, como dizia tão bem o argentino (também português pela sua costela duriense) Jorge Luís Borges. 





Nota Final: estive em funções como Vice-Presidente do IVV desde 7 de Janeiro de 2019 até 20 de Julho de 2021. Foram dois anos e meio cheios, desafiantes e em que tive o privilégio de me integrar numa competentíssima equipa técnica e, com um acolhimento amável da parte do Presidente e total solidariedade, trabalharmos juntos de forma próxima para que uma série de diplomas pudessem ser finalmente publicados (o DL 61/2020 e a Portaria 142/2021, entre outros); alguns conceitos ser incluídos no Vitis (o das vinhas históricas, por exemplo, para o qual contámos com a colaboração sábia de Bianchi de Aguiar, de Jorge Dias e de técnicos da DRAPNorte); ser actualizada a lista de castas correspondendo a expectativas de CVRs, Institutos e operadores económicos; ser iniciado o desenho de novas DOP no futuro (por exemplo a das Arribas, incluída no leste da de Trás-os-Montes confinante com a das Arribes espanhola e que ainda carece de estudo e de aprovação do CG da CVRTM); terminadas portarias de regulamentos de DO e IG de algumas regiões que o aguardavam há anos; alterada a legislação do SVC que, finalmente, se pôde estender a todo o País; produzidos os projectos de medidas de emergência que no âmbito da Pandemia COVID19 foram assumidos pela Tutela e ainda uma série de outros trabalhos que seria fastidioso aqui trazer mas dos que, a seu tempo, a informação foi prestada aos conselheiros do Conselho Consultivo do IVV. Também acompanhei de forma permanente, mas sem intervenção directa, por desnecessária, toda a Presidência Portuguesa da União Europeia que decorreu entre 1 de Janeiro e 30 de Junho, tando tal sido uma experiência inesquecível da competência dos técnicos superiores portugueses que da parte do GPP e do IVV intervieram nos diferentes assuntos do dossier vinha, vinho e bebidas espirituosas, sem os quais seria impensável alcançar os bons resultados que tivemos. É espantosa a dedicação, trabalho e proficiência das escassas dezenas de funcionários do IVV que vi multiplicar por estes e muitíssimos outros assuntos que são competência deste Instituto e cumprir, perante os stakeholders, a Tutela, o IFAP e o GPP, com quem a articulação é forçosamente próxima tal como com  a ASAE e o IPAC, e ainda a IGAMAOT, o TContas e as DGAGRI e DGSANTÉ que nos auditam, sem esquecer os tribunais onde decorrem processos de contencioso. O conjunto de edifícios em que está a sede do IVV, património da Vitivinicultura Nacional, constituído pelo Palacete Amélia Leite Ferreira, pelo edifício Cassiano Branco e pelo Pavilhão Seabra (sobre o qual está a sede da ViniPortugal) cumprirá um século nestas funções no final da próxima década, dentro de dezena e meia de anos bem contados, dezasseis, precisamente. As vindimas daqui até lá produzirão muitos milhões de toneladas de uvas e estas muitos milhões de hectolitros de vinhos, aguardentes e brandies, álcool, portonics, pinks e outras novidades. Que esse centenário, quando chegar, signifique que o sector esteja mais rico, com mais qualidade e com cada vez mais orgulho no Vinho de Portugal!  

Para terminar, um brinde, com todos a acompanhar-me: viva o bom Vinho de Portugal!

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A BASÍLICA DA ESTRELA

 © Manuel Cardoso

Outubro 2020

 

 



(Nota prévia: as fotos deste post não fazem justiça nem aos locais nem às cenas a que se referem e não dão deles nem os cheiros, nem os sons, nem os sabores, por isso, será imprescindível que os leitores vão aos locais, demorem tempo a neles passear, a visitar e a provar um bom vinho e a trincar um cibo nas tascas e restaurantes da Estrela e da Lapa, a viver cada instante neste sítio notável que é todo o conjunto e, especialmente, a Basílica da Estrela).

Mudámo-nos recentemente para a Lapa, em Lisboa, para um apartamento de recurso que arrendámos na Rua de São Ciro, onde vivemos durante Junho, Julho e Agosto.

Desde Janeiro de 2019 e até aos inícios de Março deste ano, a Mariana e eu estivéramos em Benfica, num andar que a minha irmã Pilar deixou aos nossos filhos, então nele vivendo só nós e o Manuel, porque o Vicente já há anos decidiu ficar autónomo e o Vasco zarpou para a Alemanha há quase três, e foi daí que partimos para Trás-os-Montes, empurrados pelas notícias da epidemia de SARS-COV-2 na iminência de ser decretado o Estado de Emergência, nesse mesmo mês.

Na nossa casa de Latães ficáramos até ao fim de Maio, tendo eu cumprido o meu teletrabalho, com uma ou outra vinda entretanto ao IVV na Mouzinho da Silveira, e de lá arrendámos, pela net, este apartamento à Estrela, percebendo que seria um dos de alojamento local para turistas que há por Lisboa e que este ano têm estado com menos procura.

À chegada a São Ciro ainda houve algumas peripécias que nos fizeram estar uns dias num T1 do primeiro andar que não era o que víramos e combináramos pela net, em vez de no do terceiro, que acabámos por escolher e como desejávamos. Foi tudo sendo ultrapassado e acabámos por nos habituar à rua, apesar de suja e mal cuidada pela câmara, aos cinquenta degraus das escadas exíguas do número 51, ao ar, ao vento e sol do sítio, à luz, às pessoas raras que ali passam, aos pombos e à passarada que canta nas árvores dos jardins desertos do fechado e vazio hospital militar. Nossas companheiras habituais as gaivotas, uma colónia de gaivotas de patas amarelas (ditas argênteas, por causa do tom luminoso do seu cinzento alar de prata) estridentes e curiosas, que esvoaçam e habitam nos telhados, balaustradas e portadas de vidros partidos do grande edifício do antigo Convento do Sagrado Coração de Jesus. Passaram a ser elas o nosso despertador e não foram poucas as noites em que do nada, pelas nossas janelas abertas, se ouviu o seu característico gritar que se nos tornou familiar.


A Mariana e eu escolhêramos o sítio por causa de se poder ir e vir para o IVV a pé e sem se ter de apanhar transportes públicos e, com isso, minimizarmos as probabilidades de contágio. E gostámos de estar ali desde o primeiro dia porque houve uma coisa que nos atingiu logo nesse primeiro dia – e que ainda não cessou de nos fascinar! – assim que tivemos o carro estacionado na Rua de São Ciro para descarregarmos as nossas coisas. Também a vimos logo a seguir ao assomo à janela do apartamento do terceiro andar, esteve sempre presente quando passeávamos pelas redondezas e ao irmos pela Bela Vista, espreitando-nos pelas travessas do Pinheiro ou da Oliveira, ou por entre as árvores, ao descermos a Domingos Sequeira, ou ao subirmos a Calçada ao dobrar a esquina com a João de Deus, aparecendo num súbito, ou, sempre que nos aproximávamos, com a sua majestade e elegância femininas, que se revelava ao atravessarmos o jardim e ao chegarmos aos portões: a Basílica da Estrela. Não ficámos só fascinados: ficámos e estamos completamente arrebatados por ela!


Ir e vir para o IVV, no trajecto mais aprazível, atravessa-se o Jardim da Estrela. De manhã e à tarde. Passados os portões, cápsula do tempo ante-covid! Sol baixo a despertar, temperatura ainda a permitir orvalhos e humidades das regas e das mangueiradas de limpeza do espaço, já as pessoas por ali fazem percursos a correr nos seus fatos de treino, outras em turmas organizadas com treinador exercitam-se sobre tapetes individuais em flexões e alongamentos, há quem passeie os cães, ouvem-se os pássaros e os piriquitos-de-colar e da Guiné emprestam as notas exóticas que ali combinam com o arvoredo também exótico. À tarde, em sentido inverso, calor num Éden diário de descontracção e felicidade, autêntico parêntesis nestes tempos de aflição e ansiedade, sensação tão boa de estar num espaço de aparente liberdade e esperança, sol, relva e mantas no chão, com tanta gente de todas as idades a aproveitar o bom tempo e o convívio, uns a fazer ginástica, outros na conversa, bolos e bebidas, até livros e computadores, alguns a dançar – e a fazê-lo primorosa e elegantemente! – não faltando olhares e movimentos de caça, com sedução e erotismo. Passou a ser uma fase importante do nosso dia e, até, à noite, a do tempo gasto no Jardim da Estrela, e com que prazer o fazemos![1]   

Havia quase três meses, desde 8 de Março, que deixáramos de ir à missa presencialmente. As imposições sanitárias fecharam as igrejas, como se sabe. Mas num dia em que regressei não tão tarde do IVV, seriam cerca das seis e meia, reparei, ao começar a atravessar o largo, que as grades dos arcos das portas da fachada da basílica estavam abertos e algumas raparigas e rapazes entravam no grande templo. Aproximei-me. Ia haver missa a que se poderia assistir! Telefonei à Mariana e fomos os dois! Cinco de Junho. Metêmo-nos por uma porta exclusiva para a entrada, lemos os avisos para colocar máscara obrigatoriamente, notámos um frasco com esguichador de álcool-gel numa mesa e outros nas mãos de acólitos e de ajudantes voluntários que o iam aplicando, vimos os dísticos amarelos colados nos bancos para estabelecer intervalos entre as pessoas e que alguns destes estavam com as costas encostadas aos assentos para que não se usassem e se cumprisse a distância de segurança. Foi emocionante. Já tinha um significado especial para nós naquela igreja, em que havia quase um ano que ali não entrávamos e onde então veláramos a minha irmã Lígia, tendo sido o seu caixão conduzido desde o altar-mor até ao carro funerário aos meus ombros e dos meus três sobrinhos seus filhos. Impossível não o recordar.

E estar ali nestas circunstâncias especiais, como tão especial e triste tinha sido essoutra, a participar numa missa tão diferente e intemporal, com pessoas a assistir tão empenhadas, outras a cantar tão bem, e todos envolvidos nessa atmosfera de um mundo que, de certo modo, estará para nunca mais ser o mesmo, ficou-nos indelevelmente marcado. A comunhão foi orientada pelos acólitos de modo a que estivéssemos sempre distantes uns dos outros e em silêncio, retirando-se as máscaras só quando na iminência de colocar a hóstia na boca com a nossa própria mão, e a saída fez-se ordeiramente, primeiro pelos que estavam mais próximos da porta e cumprindo esse critério. Só no final e junto do guarda-vento foram recolhidas as esmolas do ofício, por ajudantes que, silenciosos, seguravam nas mãos uns sacos de veludo vermelho escuro, já abertos, em que se podiam deixar as moedas e notas.

Foi desde então, trocando umas palavras no adro e ao vento, olhando de relance a conhecida fachada, que nos demos conta de que quase nada sabíamos sobre esta tão magnífica igreja, a não ser os lugares comuns, o de resultar dum voto da rainha para ter um filho varão, de ser do barroco tardio, da escola de Machado de Castro, de que nela há um incrível presépio de barro, madeira e cortiça,…, e dispusemo-nos a alterar esse estado de coisas, procurando informação e passando a estar atentos, a ler e a fazer pesquisas. O Guia de Portugal, edição da Gulbenkian, pois claro, a Lisboa Desaparecida da Marina Tavares Dias, e muitos mais artigos e teses com que não vamos maçar de títulos os leitores mas apenas citar com justiça alguns nomes a quem estamos reconhecidos: Sandra Costa Saldanha, Mónica Ribeiro de Queiroz, Simão de Xavier, Francisco Xavier Costa Henriques, César Chaparro Gómez, Giuseppina Raggi, Manuel F.C. Pereira, Carla Carvalho Tavares, Paula Noé, Teresa Vale, Carlos Gomes, Isabel Mendonça, Joana Fonseca, Paula Correia, Paula Figueiredo, Rosário Gordalina, Júlio Grilo, Isabel Stillwel, o Padre Gonçalo Portocarrero[2]. Uns mais e outros menos, todos foram fonte de informações e pistas. Disto trata este post deste nosso blogue.[3]

Há alguns mitos urbanos que circulam sobre a igreja (e quando referimos a igreja, estamos a referir-nos ao seu conjunto: a basílica, o convento e o palacete) sendo que um é o do seu custo enorme e o de que a sua construção teria exaurido os cofres do Estado e depauperara o País. Outro, é o de que a Rainha D. Maria, visitando as obras[4], teria feito notar ao arquitecto[5] que não ficava bem que a porta do meio da fachada, afinal a de honra e festa, fosse do mesmo tamanho que as outras, e este, triste com o reparo, se suicidara! Quanto ao primeiro mito, há que esclarecer o seguinte: todo este monumento é integralmente português, talvez como nenhum outro: a não ser sete das telas dos retábulos dos altares – e que telas! – que foram adquiridas ao atelier do celebérrimo e então na moda Pompeo Batoni, que residia em Roma, tudo o mais, desde os autores do projecto de conceptualização e execução, materiais, mão-de-obra de artesãos e artistas, escultores, pintores, mestres pedreiros, organeiros, entalhadores, mobiliário, trabalhos em pedra, em madeira, em metais, em vidro, alfaias do culto, tudo, tudo, foi de origem nacional. Por isso todo o dinheiro gasto na sua construção ficou distribuído na economia nacional, foi directo para as mãos de artistas portugueses, serviu para lhes pagar o trabalho e estimular a expertise. Devem ser raríssimos, tanto nessa época como hoje, os casos em que tal acontece. Quanto ao segundo mito, o Arquitecto Mateus Vicente de Oliveira (foi o primeiro arquitecto, autor do desenho original, depois seguiu-se-lhe Reinaldo Manuel dos Santos, tendo havido também outros temporários ou com contributos menores, mas Mateus Vicente de Oliveira foi, sem dúvida, “o arquitecto da Estrela”: da igreja, do convento e do palácio) estaria descontente com algumas críticas que se faziam sentir pelo estilo peculiar, mas a sua morte veio a ocorrer após meses de debilidade na sequência duma queda numa outra obra.[6] Na realidade, a fachada ficou a dever-se, na sua apresentação definitiva, a Reinaldo Manuel dos Santos, sendo que a parede do interior da galilé com as portas para a igreja tem o risco de Mateus Vicente, até com a porta nobre central maior que as demais e encimada por uma das suas características contracurvas (em contracurva seria o desenho original da fachada, que Reinaldo Manuel veio a modificar para o neoclássico frontão triangular).    

Não é por acaso que o conjunto do edifício capta a nossa atenção, mesmo de longe. A cúpula, as torres, os sons emitidos pelos sinos (quase 17 toneladas de sinos com um timbre característico de bronze íntegro e potente) despertam mesmo um passeante desatento. Sobretudo às 11.50h dos Domingos, campanadas graves dos grandes bronzes da torre nascente, um deles um colosso de 4.320 quilos (o mais leve tem 80)![7]

O edifício da basílica, convento e palácio impõem-se na mole urbana e salientam-se na linha de cumeada dos telhados e arvoredos pela sua majestade e beleza, sem arrogância, com um porte adequado à circunstância do dia ou das estações, com uma distribuição das sombras e dos reflexos que vai mudando com o dia, sobressaindo das suas caneluras, curvaturas, entalhes e arestas, animando a pedra, fazendo com que a consideremos como algo vivo e por isso nos não surpreenderia se alguma vez, ao voltarmos para si o nosso olhar, a víssemos mais aconchegada para não apanhar tanta chuva ou mais direita para espairecer ao sol. Elegante como uma Senhora. Mas sempre com um ar donairoso e feliz, recatada se as cerimónias são de luto, atrevidíssima se são de música e festa, provocando a vontade de lhe ser galante com piropos nobres. 

Se as torres e os sinos, que se sobrepõem ao entorno, já por si suscitam interesse, e se a cúpula, identificável a partir de tantos pontos da cidade, lhe dá uma distinção de referência, é sobretudo a fachada, com toda a sua escultura significativa e adornos simbólicos, que produz o maior efeito de íman e convite, de chamamento, como de alguém que mete conversa connosco.

O adro lajeado e circunscrito por 22 frades de lioz faz manter à distância veículos e obriga a flectir as pernas e a fazer o movimento de olhar para baixo para subir os primeiros quatro degraus a partir do passeio e, logo a seguir, de olharmos então para cima, assumindo toda a cantaria de pedra uma perspectiva singular que provoca a sensação feliz de estarmos a caminhar – e quase a alcançar! – uma das dimensões do absoluto, logo acentuada pela segunda vez em que, ao nos aproximarmos, temos de subir mais um nível de cinco degraus e de novo fazermos o gesto de olhar para baixo e a seguir para cima, focando-nos outra vez no edifício de que, agora sim, começamos a ouvir também, a sentir próxima a grandeza e a majestade e a poder ver toda a pedra a mover-se por nossa causa! Porque só agora, junto das portas, das estátuas, quer ficando cá fora algo embasbacados a olhar para tudo, quer entrando na galilé[8], nos damos conta de que pequenos somos diante da escala dum monumento tão bem conseguido para produzir tais efeitos.

Até o vento está quase sempre presente a varrer o lajeado do adro como se chegasse ali o sopro bíblico que agita a vida! Virá do mar, virá do deserto?

Ao flanquearmos a grade metálica e as portas de vidrinhos de acesso ao interior teremos sempre a sensação, mesmo quando ninguém vemos por ali, de que há mesmo alguém a receber-nos e a cumprimentar-nos – e cremos que está! Um pouco como se aquelas estátuas, sendo imagens de pessoas que existiram realmente, Maria e José na galilé, todas as outras lá fora, ali posem, investidas da sua presença, em vez de meros inertes de pedra na sua condição inanimada… e até podemos dar-lhes bons dias e boas tardes que nos ouvem, de certeza! Prodigioso, esse efeito! De se fazerem mesmo presentes a convidar-nos, a dar-nos o braço ou a distinguir-nos com a sua inspiração sábia e intemporal, a sua eternidade enorme ao pé da nossa vida humilde tão curta e carente! Apetece-nos logo pedir coisas. O que está certo. É para isso que serve um templo. Para nos inspirar a pedirmos as coisas certas para a nossa vida. Que é a melhor forma de louvar a Deus: pedir e agradecer as coisas certas. É tão intensa e sensível a impressão que causam que o melhor é sairmos para depois entrarmos de novo.

Já impressionados nos nossos sentidos, despertos para experimentar coisas inesperadas, ficaria a faltar referirmos aqui a sensação de voar que acontece indo ao terraço – e fizemo-lo pelos 113 degraus da escada de caracol de acesso, passeando pelo lajeado da cobertura ao mesmo tempo que observávamos a paisagem à volta, desengraçadamente, sem a impressão de vastidão que nos deveria dar um lugar alto… até chegarmos à porta que dá para o interior da cúpula, no interior da igreja e, aí, sentir a coisa rara de nos encontrarmos num plano etéreo, vendo de cima o nosso minúsculo ponto em que no dia-a-dia nos ajoelhamos, a nossa vida pequena, dando-nos substância para meditarmos na escala tão relativa das nossas confusões e medos, desejo de nos desembrulharmos do pesado para nos dotarmos duma simplicidade leve… 

Mas voltemos ao adro, recuemos e olhemos para cima. Compreendamos a fachada. Recomecemos a partir do passeio, com uma visão do conjunto.

Ao centro, sob a cruz, no frontão, o triângulo de Deus, um só Deus em três pessoas da Santíssima Trindade, dos três lados iguais, o do Pai, o do Filho e o do Espírito Santo, com o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim de todas as coisas, sobrepostos ao esplendor que irradia a Luz de Deus. Sobre a moldura, feita de motivos enrolados e elementos vegetalistas, um enorme girassol, simbolicamente a planta que olha para o astro que é a nossa fonte de energia, luz e equilíbrio, ali inclinada sobre o centro da vida.  

Por baixo deste, o baixo-relevo da Adoração ao Sagrado Coração de Jesus, o culto de base de todo o templo e convento. Neste baixo-relevo estão três Anjos, sendo um deles o Anjo-custódio ou Anjo da Guarda de Portugal e outro o Anjo Tutelar da Rainha. O culto tinha sido aprovado para a Polónia e Roma em 1765, para Portugal e seus territórios e domínios em 1777 (mas só viria a ser aprovado para todo o mundo em 1856)!   

Nos nichos da fachada, o Profeta Elias, em cima, à esquerda, e S. João da Cruz à direita. Em baixo, Santa Teresa de Ávila[9] e Santa Maria Madalena de Pazzi, respectivamente. A relação destas pessoas entre si tem a ver com o denominador comum dos Carmelitas Descalços, a Ordem do Convento em que a basílica se integra.

As quatro Virtudes que encimam as quatro colunas da fachada são, da esquerda para a direita: a Fé, a Devoção (Adoração), a Gratidão e a Liberalidade (Generosidade).[10]

Cada uma das esculturas da fachada merece atenção, tal como todas as do interior, a da Virgem e a de S. José, na galilé, as da Cruz e dos Anjos, Serafins e Querubins dos altares, as da Fé e Esperança, sobre o altar do Santíssimo, da Caridade e da Fortaleza, na direita do transepto[11] sobre o acesso ao coro baixo/capela do Senhor dos Passos, tal como a composição dos dois anjos ajoelhados em oração de um lado e doutro do resplendor divino sobre o alto da capela-mor. A elegância das formas, o rigor dos atributos, a perfeição dos diferentes conjuntos remete-nos para um reconhecimento da superior qualidade de todas as peças. Os seus escultores foram Alexandre Gomes, José Patrício, José Joaquim Leitão, João José Elveni e Faustino José Rodrigues, sempre sob a visão e a mão de Machado de Castro. Ao mestre se deve a imagem de S. João Evangelista, de um dos altares. Quanto ao túmulo de D. Maria I, a Fama e o Putto que o decoram dum lado e doutro do medalhão com a real efígie saíram da maestria de Faustino José Rodrigues (1760-1829), o aluno predilecto de Machado de Castro, tendo sido desenhado por Giovanni Chiari.[12]

O ambiente interior da basílica, se nos deslumbra pelo cromatismo da pedra nos seus coloridos,[13] combinações e formas entalhadas no chão, nas paredes e nos tectos de abóbadas, é tonalizado pela luz que de fora chega sem perturbar e nos faz querer perceber, uma a uma, as cores das telas cheias de significados. Para quem entra, do lado esquerdo temos, sucessivamente, de Batoni, a tela de S. João Evangelista a escrever o Apocalipse no altar de Santa Teresa; a de Santa Teresa a receber as ofertas da Rainha de Portugal na presença das Freiras Carmelitas no altar de Nossa Senhora do Monte do Carmo; o episódio da Incredulidade de S. Tomé no altar da Mater Dolorosa, hoje de Nossa Senhora de Fátima. Do lado direito, também de Batoni, uma tela com Santo António e S. Francisco no altar de Santo António e uma tela do Sonho de S. José no altar de Nossa Senhora da Conceição. Ainda deste lado e antes do transepto, no altar do Sagrado Coração de Maria, a tela da Devoção ao Coração de Maria, também chamada Alegoria ao Anjo-custódio do Reino, em que figuram os três Arcanjos ou Anjos Custódios, Miguel, Gabriel e Rafael, que foi pintada pelas Princesas Dona Maria Francisca Benedita e Dona Maria Ana Francisca Josefa, irmãs mais novas da Rainha D. Maria I, alunas do pintor Joaquim Carneiro da Silva. No altar do Santíssimo, lado esquerdo do transepto, está a tela da Última Ceia, de Batoni.

Há outras telas doutros pintores, nomeadamente de Pedro Alexandrino de Carvalho: a Ceia de Emaús, S. Paulo Eremita recebendo o pão do seu sustento, Educação da Virgem por Santa Ana, Calvário (na sacristia) e de Cirilo Wolkmar Machado.

No altar-mor, à esquerda (diz-se do lado do Evangelho), Santo Agostinho e São Gregório e, à direita (diz-se do lado da Epístola) Santo Ambrósio e São Jerónimo. Só que neste altar, aliás, na basílica toda de onde se avista, é impossível não sermos inexoravelmente atraídos para a grande tela que Pompeo Batoni pintou em Roma para o retábulo da capela-mor: a Alegoria da Devoção Universal ao Sagrado Coração de Jesus!

Foi pintada em 1781, transportada para Lisboa por mar. Nela figuram: o Coração de Jesus como tema central, de acordo com a descrição da vidente Santa Maria Margarida Alacoque nas aparições no Mosteiro de Paray le Monial em 1673-1675; o Papa Pio VI, protagonista e interlocutor para este culto em Portugal e no mundo; o altar, a hóstia e o cálice, como alusão directa à eucaristia e ao calvário; a mulher e os filhos por si amamentados, símbolo da caridade (amor) e da nutrição da vida sobrenatural da alma; anjos com o sacrário e um anjo apoiado no altar com um livro aberto, alusão directa ao Evangelho de S. João, capítulo VI, à instituição da eucaristia e à habitação de Deus entre nós nesta forma; por fim, as quatro grandes figuras femininas que se encontram na base da tela, personificando os quatro continentes reconhecidos no mundo cultural do século XVIII: da esquerda para a direita, a Ásia, a América, a África e a Europa. A Ásia, de turbante, pérolas, vaso de queimar incenso e outras essências, um camelo; a América, emplumada, de arco e aljava, um jaguar e uma arara; a África, com um elefante e um crocodilo, marfim; finalmente, a Europa, com a coroa de quem domina o mundo, o ceptro do exercício do poder (mas inclinado para o chão já que o seu poder se inclina perante o de Deus), a cornucópia de quem por ele espalha a sua abundância e cultura. Mas há aqui um pormenor curioso… é que na mitologia, a Europa era filha do rei da Fenícia, Agenor, filho de Poseidon, e foi raptada por Zeus, disfarçado de touro para que a sua mulher, Hera, não ficasse ciumenta se o soubesse. Zeus levou Europa para a ilha de Creta onde teve três filhos: Minos, Radamanto e Sarpedão. Daí que a Europa seja sempre representada montada num touro… excepto nesta tela, onde cavalga um soberbo cavalo branco peninsular![14] A razão para tal será porque a intenção de Batoni, interpretando a vontade do encomendante, foi a de personificar Portugal como a Europa, daí o cavalo português em vez do touro, e cada um dos continentes como os territórios que detínhamos nos quatro continentes. Batoni terá, assim, querido transmitir o significado que lhe terá sido expresso de que o culto do Sagrado Coração de Jesus se estenderia ao mundo todo por acção de Portugal e com o beneplácito do Papa!

Não há uma parte da tela que seja mais importante do que outra para o programa de catequese que encerra. O coração e o sangue, o esplendor divino, o fogo, a cruz, a coroa de espinhos, a mesa eucarística, o pelicano eucarístico[15] no frontal de altar, a mãe que alimenta os filhos, o pontífice, a luz jorrando das feridas do coração que ilumina os continentes do mundo.

O reconhecimento do culto ao Sagrado Coração de Jesus no século XVIII tem de ser entendido dentro duma luta ideológica anti-Jansenista[16] na qual os Jesuítas estiveram particularmente envolvidos e activos e Batoni foi o mais importante dos pintores a quem estes tinham já encomendado, em Roma, telas para ser instaladas em duas das suas igrejas neste contexto: na de Santo André do Quirinal e na de Jesus. Esta nossa da Estrela trata-se duma tela composta num programa neoclássico que era natural em Batoni pelo seu estudo atento e admiração da obra de Rafael, de que importou alguma da distribuição das figuras e administração do espaço à semelhança da Transfiguração do Senhor e da Disputa do Sacramento daquele pintor.

Há duas grandes zonas no quadro, ligadas entre si pelo plano das nuvens que, simultaneamente, são o céu material da terra, da sua realidade personificada nos quatro continentes, e o apoio etéreo da parte superior, gloriosa e espiritual. Tal como no primeiro daqueles quadros de Rafael em que até os tons e a paleta de cores são distribuídos de modo análogo.

A figura de Pio VI está presente como se fosse a assinatura do pintor, o mais célebre e requisitado retratista de Papas, Imperadores, Reis e notáveis da sua época. O Papa visitara o estúdio em que o quadro estava a ser pintado em Roma e admirara-o durante a sua execução e tal fora interpretado como um gesto do seu empenho em apoiar um culto que era eminentemente anti jansenista. O facto de Batoni respeitar as proporções e pontos de simetria faz da obra uma obra neoclássica, e o de incluir e misturar símbolos e variedades de figuras alegóricas tornam-no susceptível de ser lido de forma barroca. O que lhe confere mais interesse.[17]

O ponto central do tema do quadro é o sagrado coração com a sua ferida produzida pela lança do soldado romano e que, ao mesmo tempo, é a fonte da água e sangue dos Sacramentos. A cruz surge como um foco de esperança e o coração produz raios luminosos de fogo, luz e calor que atingem toda a composição do quadro. Há um coro de jovens alados, olímpicos, que simultaneamente adoram e velam pelo sagrado coração, imbuídos do mesmo espírito mas com aspectos diferentes quer em tamanho quer nas posições assumidas quer na claridade/obscuridade que os torna semiocultos, escondidos ou evidentes, concordantes e discordantes ao mesmo tempo. Mais abaixo o cálice de ouro e a hóstia de trigo: Deus tornado comida e bebida para as gerações futuras poderem partilhar do seu coração e do seu sangue. À esquerda do altar pintado (à direita para quem vê), está uma mulher bonita e bem proporcionada dando de mamar a um menino e tendo à sua volta outros a pedir também do seu leite, símbolo do coração vivo, alegoria da caridade e do mistério da eucaristia e também referência directa ao amor maternal. Curioso que a postura do Papa é a de estar a olhar para nós, o povo de Deus, com a solene tiara, capa de púrpura, toga branca, sinalizando com o seu braço levantado e a mão estendida o coração radiante de luz, enquanto dois anjos, quase escondidos, sustêm a maqueta dum templo, símbolo da perenidade da Igreja. Do coração se propagam os raios que vêm até ao plano de baixo, onde estão as quatro partes do mundo. O anjo portador do livro seria o do decreto da escolha deste lugar como o do culto ao Sagrado Coração. E dos quatro continentes viriam e neles haveria gentes a venerá-lo, trazendo ouro, madeiras preciosas, marfim, pérolas e pedras preciosas. A Europa, mulher vestida de azul, cabelos apanhados, coroa, ceptro, montada num cavalo branco. África, mulher de cara negra, olhos brancos, turbante agitado pelo vento, colar de coral, marfim na mão. A América, estendendo a mão esquerda para apanhar os raios e com a direita acaricia um jaguar, tem na cabeça uma coroa de plumas de muitas cores, vestido às riscas e com pregas. A Ásia, de perfil sedutor, com pérolas na cabeça e no pescoço, fumos de incenso e um camelo. 

Quando entramos na basílica e vemos a tela a partir do fundo, em parte oculta pelo metal trabalhado do suporte que desde a abóbada sustém dois lampadários, a nossa atenção é captada pelas quatro mulheres da tela, aliás, pelas cinco mulheres da tela: as que simbolizam os quatro continentes e a que simboliza o amor da maternidade. Ora, são também cinco as principais mulheres que aparecem nos Evangelhos: Maria de Nazaré, Mãe de Jesus; Maria Madalena, apóstola entre os apóstolos, a primeira a anunciar a Ressurreição; Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro, discípula; a Samaritana, a quem Jesus pede água e a quem, como judeu, nunca deveria dirigir palavra; a pecadora da Betânia, por quem Jesus se deixa acariciar e perfumar. Se algo mais é possível de ser lido nesta tela, que não sabemos se Batoni de tal teve intenção, é que ela representa o carácter não misógino da Igreja Católica e a imagem primordial que a mulher tem na visão religiosa do mundo. À medida que os nossos passos vão na direcção do quadro começam a surgir e a ganhar vida os pormenores, cruzamo-nos com o olhar expressivo e amigo do Papa, entramos a pouco e pouco nessa atmosfera especial e tão longe dos nossos sistemas de referência modernos mas, ao mesmo tempo, tão presente no que são as cores, a discussão e contradições dos nossos desígnios actuais e das nossas vidas.     

Já deixámos a Rua de S. Ciro, desde o fim de Agosto que nos mudámos para a Rua Braancamp. O apartamento fica mais perto ainda do IVV e isso será bom para os dias de chuva e é um pouco mais confortável que o anterior. Mas, depois de várias tentativas em igrejas circunvizinhas, temos voltado à Basílica da Estrela. Parece que não custa nada subir até ao Rato e a Álvares Cabral, tem-se logo um prémio pelo bom que é atravessar o Jardim da Estrela com toda a sua vida colorida e lenitiva para os tempos sombrios e doentios desta pandemia, e tem-se a seguir a sensação de replecção e completude quando começamos a entrever o branco e cinza do lioz da fachada, se incendeia todo o edifício com os contornos dos fogaréus e o efeito feminino da cúpula, às vezes se lhe ouve o som do bronze percorrendo o espaço com magnetismo, galgamos o alcatrão e as linhas dos eléctricos, chegamos aos frades, subimos os primeiros quatro degraus a partir do passeio e olhamos para cima com a sensação feliz de estarmos a caminhar para outra dimensão, subimos mais um nível de cinco degraus olhando para baixo para não tropeçarmos e a flectir mais o pescoço para cima, para o alto, num relance a todos os que nos cumprimentam familiarmente: Santo Elias com a sua espada flamejante e a roda do carro de fogo, também com as tábuas da Lei de Moisés; São João da Cruz com uma enorme cruz e uma caveira; Santa Madalena de Pazzi com os símbolos da Paixão (que lhe foram entregues por Jesus numa das suas visões) e com um vaso de perfume, aproximação à Maria Madalena (e também às senhoras do jardim e do bairro por si observadas, já aqui as aguardando antes de haver jardim, então aqui vindo nos rituais da corte!); Santa Teresa de Ávila, apoiada numa coluna e representada com dois dos livros seus atributos de doutora e reformadora da Igreja[18]; a Fé, a Devoção, a Gratidão e a Liberalidade, alusivas às virtudes mais cultivadas pela Rainha no decurso da sua vida e exercício do seu governo; os Anjos tutelares, defensores do Bem, executores da Vontade, implícitos e logo ocultos aos nossos passos. Transpomos a grade metálica e as portas de vidrinhos de acesso, Maria e José estão solenes mas também benevolentes para connosco a entrarmos na casa de seu Filho.

Depois cá dentro estão todos, todos, nos transmitindo a importância de, sendo tão pequeninos, aqui sermos considerados inter pares,[19] com grande emoção, nós a dar-lhes a alegria de aqui virmos, com eles partilharmos os nossos problemas, a nossa vida, a nossa esperança. Um pouco do nosso tempo, da nossa pequena fracção já vivida da eternidade em que eles nos esperam e que com eles partilharemos.

Há imensos recantos, pormenores, peças de que haveria tanto a dizer, a explicar, sabedoria a extrair, não nos atrevendo a dizer que o tema é inesgotável mas tendo a certeza de que dificilmente será esgotável. Não conseguimos referir-nos nem a uma pequena parte. Mas seria indesculpável não nos referirmos a outro dos dois túmulos notáveis da basílica. O da Rainha, que já referimos, antes encontrava-se na capela-mor, do lado do Evangelho (à esquerda do altar, será a direita para quem nele estiver a olhar para a assembleia), separado por uma parede, que podemos dizer simbólica do que seria a grade dum confessionário porque do outro lado dela, na sacristia, se encontra, ainda hoje, o túmulo do Arcebispo de Tessalónica, o confessor de sua Majestade D. Maria I. A arca tumular é da autoria de Machado de Castro.

Arcebispo de Tessalónica, que o foi e, dito assim, parece-nos uma figura distante, personagem da constelação intangível dos varões assinalados de que nos fala a História… só que não é o caso. Trata-se dum trasmontano, de mais um dos trasmontanos ilustres que por Lisboa têm conseguido singrar: Inácio Álvares Rodrigues. Seus pais eram lavradores modestos mas com capacidade para pagar os estudos dos filhos. Teve cinco irmãos, todos clérigos. Nasceu em 31 de Julho de 1718 em Chaves. Os pais destinaram-no ao serviço militar, chegando a assentar praça em 1732 em Chaves mas desiste e foi para Salamanca no ano seguinte, estudando Humanidades, regressando a Chaves onde estudou Latim e, em 1735, entrou na clausura do convento carmelita de Nossa Senhora dos Remédios, em Lisboa. Em 1736 terminou o noviciado com o nome de Frei Inácio de S. Caetano: Inácio por ter nascido no dia de Santo Inácio de Loyola, 31 de Julho; S.Caetano por ter sido baptizado no dia deste santo, 7 de Agosto, em Chaves. Estudou Filosofia em Évora, Teologia em Coimbra, foi ordenado presbítero com 25 anos. Inteligente, metódico, aplicado, arguto e eficaz na realização de obras e concretização de decisões, estas qualidades ultrapassaram alguns defeitos naturais como a rudeza de modos e sua falta de verniz duma educação cortesã que não tinha tido e cujos protocolos só foi aprendendo ao longo da vida. Foi para Braga como docente de Teologia e director espiritual do Arcebispo Primaz, D. José de Bragança. Fez entretanto uma viagem a Espanha, a Pastrana. Em Lisboa ingressou no Convento de S. João da Cruz, em Carnide, em 1757. Nesta fase, em pleno Governo de Pombal, terá tido a confiança do déspota a ponto de ser nomeado Deputado da Real Mesa Censória o que fez suscitar invejas e alguns o associarem ao cancelamento do nome e do culto a Santo Inácio de Loyola. Mais deu nas vistas e concitou ciúmes ao ser indicado para confessor da Princesa do Brasil, futura Rainha D. Maria I, e ser indigitado para Bispo de Penafiel, bispado efémero que foi um mero joguete político do Marquês. No entanto, a Rainha manteve-o como confessor após a demissão deste último e as suas posições conservam-se com a Viradeira de 1777, o que suscita e aumenta novas invejas e intrigas contra si da parte dos que esperavam ver postergados todos os que tinham estado comprometidos com o Pombal. Foi eleito Arcebispo Titular de Tessalónica em 1778 e, volvida uma década, em 1787, Inquisidor Geral do Reino. Cresceu uma fronda fomentada sobretudo pelo Visconde de Vila Nova de Cerveira que aspirava ao cargo de Ministro Assistente do Despacho, cargo cuja nomeação viria a ser feita ao Arcebispo de Tessalónica, Frei Inácio de São Caetano. Adoeceu inesperada e gravemente no Palácio de Queluz onde morreu a 29 de Novembro de 1788, pelas seis horas da tarde, oficialmente com uma hidropisia da cabeça. Correram várias versões sobre esta sua morte, aos sessenta anos: a mais corrente foi a de que fora assassinado à pancada com sacos de areia com que lhe terão batido nos jardins de Queluz. O autor ou mentor do atentado terá sido alguém inspirado pela inimizade que o príncipe D. João nutriria em relação a si ou por alguém a mando do Visconde de Vila Nova de Cerveira… para outros teria sido resultado de uma congestão já que os seus propalados hábitos de glutão a tal terão levado mas esta versão poderá ter sido colocada a circular para mascarar a relacionada com a primeira e encobrir a conspiração criada nalguns meios da corte contra si. Foi primeiro sepultado na igreja de S. João da Cruz em Carnide, em 1 de Dezembro, depois exumado e conservado em caixão na Capela do Sacramento que ele próprio mandara construir no mesmo convento em Novembro de 1789.

Finalmente, trasladado para o mausoléu magnífico em que se encontra, na sacristia da Basílica da Estrela, em 5 de Fevereiro de 1790. O texto para o primeiro epitáfio que teve incluía as palavras “hujus Monasterii Promotor” que era absolutamente verdadeiro: a ele se terá ficado a dever a inspiração, a influência nos pensamentos nos momentos certos e as acções discretas mas decisivas naqueles de quem dependeu o avanço para a execução da obra, ou seja a Rainha D. Maria I e D. Pedro III que, consigo, constituíram o trio fundador do Convento e Basílica do Sagrado Coração de Jesus, a Basílica da Estrela.[20]

Como já dissemos, desde o fim de Agosto que nos mudámos para um apartamento na Rua Braancamp e o estarmos mais próximo do IVV foi determinante para a escolha. Só que desde logo ficámos com uma sensação de ausência, de carência de qualquer coisa. E assim, estando a apenas um quarteirão de distância do meu local de trabalho, como nos tínhamos habituado a passear a pé por Lisboa como forma de nos mantermos fisicamente bem, o certo é também que, para continuarmos o nosso salutar exercício físico e para preenchermos esse sentimento de faltar qualquer coisa, sempre que temos tempo subimos até ao Rato, dali pela Álvares Cabral até à estátua deste e é com emoção e alegria que continuamos a entrar no Jardim da Estrela como quem passa para lá do espelho de Alice, observamos, como se fosse uma novidade de todos os dias, todas as pessoas e todos os seus hábitos, avançamos esperando ver dançar, fazer ioga, seduzir e namorar, exercitar ginástica, passear carrinhos de bebés, ver as expressões ocupadas dos que falam nos seus telemóveis, que ensaiam no coreto ou nos espaços, que comem e bebem em piqueniques de festa ou de fruição do tempo, que passeiam os cães ou que, por ser ou estar ali simplesmente, cumprem o importante papel de elementos vivos da condição humana.

Tal como nós, avançando nas sombras misteriosas das héveas e de todo o verde em direcção ao recorte das torres e da cúpula, do som dos sinos, ouvidos e surgidos entre as ramagens dos pinheiros chamando, deixando-nos conduzir fascinados e correndo para o nosso já indispensável arrebatamento – atravessamos a rua, pisamos o lajeado do adro, subimos os degraus cumprindo mais uns centímetros na direcção certa para o infinito que, ali, tem uma das suas portas de pedra sinalizada por uma escolta viva de arte!                   



[1] O Jardim da Estrela foi inaugurado em 1852 e teve estufas e um pavilhão chinês que já não existem, tal como uma jaula com um leão, tendo este último servido de mote ao título do filme de Artur Duarte “O Leão da Estrela”, de 1947, em que um fã do Sporting vai ao Porto assistir ao clássico desafio de futebol fazendo-se passar por rico… É uma conhecida e divertida comédia com António Silva, Milú, Curado Ribeiro, Laura Alves, Artur Agostinho, Pedro Moutinho, além de outros excelentes actores! Formalmente o Jardim tem o nome de Guerra Junqueiro (1850-1923), escritor português, trasmontano, autor de A Pátria, entre outros, que nos dá a deixa para lembrar que ao seu lado, no Cemitério Inglês, está o túmulo de Henry Fielding, escritor inglês que morreu em Lisboa com 47 anos em 1754, autor de Tom Jones, entre outros. No jardim também há um busto de Antero de Quental e é curioso que uma das entradas tem os portões voltados para o Museu-Jardim-Escola João de Deus e outra os tem do lado perto da rua deste nome onde está a casa onde viveu e morreu este poeta e pedagogo. O jardim tem cerca de quatro hectares e meio com estátuas significativas, lago, fauna e flora interessantes, recantos, mesas e bancos, um miradouro, esplanadas (uma delas muito interessante, ainda com as cadeiras modernistas da época do Estado Novo) e um bonito coreto que para aqui foi transferido na década de trinta do século XX e que inicialmente estava no Jardim Público (ao fundo da Avenida da Liberdade).  

[2] Que, sobre símbolos e representações, foi essencial na sua informação.

[3] Há, devemos dizê-lo, no entanto, alguns autores e obras que queremos salientar entre os demais porque este apontamento a eles fica a dever-se em boa parte:

Sandra Costa Saldanha, A Basílica da Estrela, Real Fábrica do Santíssimo Coração de Jesus, Livros Horizonte 2007; Sandra Costa Saldanha, A Escultura da Basílica da Estrela, in O Virtuoso Criador, Joaquim Machado de Castro, MNAA Maio-Setembro 2012; Sandra Costa Saldanha e Quadros, Alessandro Giusti (1715-1799) e a Aula de Escultura de Mafra, Tese de Doutoramento, 2012, Universidade de Coimbra; Manuel F.C. Pereira, História da Pedra ou Pedra com História, artigo disponível on-line, indispensável para se compreenderem os materiais pétreos de construção da basílica; Mónica Ribas Marques Ribeiro de Queiroz, O Arquitecto Mateus Vicente de Oliveira (1706-1785) Uma Práxis Original na Arquitectura Portuguesa Setecentista, Tese de Doutoramento, 2013, Universidade de Lisboa; César Chaparro Gómez, imagen y palabra en la devoción al sagrado corazón de jesús: un cuadro de P. Battoni y un poema de F. Arévalo, in IMAGO, Revista de Emblemática e Cultura Visual, Núm.7, 2015, pgs. 59-68. Houve outras obras que lemos com gosto mas estas acima foram as que de algum modo contribuíram mais para o conteúdo deste pequeno texto.    

[4] As obras decorreram a partir de 1778. A sagração da basílica foi em 15 de Novembro de 1789. Para uma cronologia geral veja-se Sandra Costa Saldanha, op. cit.

[5] Mateus Vicente de Oliveira, 1706-1785. Um dos mais competentes arquitectos portugueses que já existiram, uma figura ímpar e injustamente pouco lembrado mas autor dum vastíssimo trabalho e obras.  Sobre ele veja-se a tese já referida: Mónica Ribas Marques Ribeiro de Queiroz, O Arquitecto Mateus Vicente de Oliveira (1706-1785) Uma Práxis Original na Arquitectura Portuguesa Setecentista, Tese de Doutoramento, 2013, Universidade de Lisboa, disponível on-line.

[6] Tipicamente português ser-se alvo de críticas dos demais quando se demonstra competência, trabalho e excelência, qualidades de que Mateus Vicente deu abundantes provas ao longo da vida. O arquitecto encontrava-se debilitado na sua saúde pela fadiga do seu trabalho, viagens incessantes pelo país, idade e desilusão por ver modificados alguns dos seus planos para a Estrela. A queda deu-se no estaleiro das obras da igreja de Santa Quitéria, em Meca, Alenquer. Convalesceu em casa duma filha, em Arruda dos Vinhos, continuando a trabalhar. Viria a morrer no Paço da Rainha, Lisboa, onde residia, em 16 de Março de 1785. Vide Mónica Ribas Marques Ribeiro de Queiroz, op. cit. Págs. 35 e 36. A obra foi orientada financeiramente pelo Presidente do Real Erário e Inspector-Geral de Obras Públicas, D. Pedro José de Noronha e Camões de Albuquerque Moniz e Souza, 3.º Marquês de Angeja, substituído com a sua morte, em 1788, pelo Visconde de Vila Nova de Cerveira. Fica a dever-se ao zelo de Anselmo José da Cruz Sobral “a brevidade com que se fez esta obra e a sua perfeição” (palavras de Manuel Pereira Cidade, citado por Sandra da Costa Saldanha, op. Cit. que seguimos nesta nota) o que, em português actual quer dizer que os prazos foram cumpridos e não houve fugas aos cadernos de encargos. Cruz Sobral, Inspector e Fiscal de Obras Públicas desde 1778, recompensava generosamente os trabalhadores, comparecia na obra antes do amanhecer e colocou grande zelo e eficiência no cargo de que estava incumbido, o que lhe granjeou uma excelente reputação na corte e fez com que a Rainha, como reconhecimento, lhe tenha feito mercê do lugar de ministro honorário do Conselho da Real Fazenda, de uma comenda da Ordem de Cristo e dos moinhos de Soure. Curioso que a Rainha ainda lhe fez mercê de poder ficar com as madeiras que serviram de andaimes, com as quais construiu os seus prédios do quarteirão do Chiado entre as Ruas de S. Francisco e Nova do Almada. O Príncipe Regente veio a renovar esta comenda no seu sobrinho Anselmo José da Cruz Sobral de Almeida Castelo Branco Bramcamp, o que não deixa de ser um facto curioso já que é na Rua Braancamp que agora temos o nosso galho!

[7] Os onze sinos da basílica foram examinados e restaurados em 2003-2004 e quando repostos foi acrescentado um décimo segundo com uma nota nova no conjunto para permitir a execução de melodias mais complexas.

[8] Alguns livros e publicações se lhe referem como nártex. Simplificando, trata-se do átrio ou espaço de entrada, entre a fachada exterior e a interior da igreja.

[9] Santa Teresa de Ávila, também chamada de Santa Teresa de Jesus, é uma figura de primeiro plano para a Ordem dos Carmelitas. Esta escultura da fachada é de Alexandre Gomes e João José Elveni, dois dos ajudantes de Joaquim Machado de Castro (1731-1822). Sobre o assunto, é indispensável ler-se o artigo de Sandra Costa Saldanha, Fontes para a Iconografia Teresiana no convento do Santíssimo Coração de Jesus à Estrela, in CULTURA, vol.21, 2005.

[10] Se se reparar com atenção, notar-se-á que estas quatro colunas com as quatro virtudes foram acrescentadas no que seria a fachada inicialmente pensada e, por isso, vieram criar mais um plano de transição intencional por parte do arquitecto Reinaldo dos Santos àquele que seria o plano mais austero do arquitecto Mateus Vicente de Oliveira.

[11] Transepto: parte do edifício que, em relação ao seu eixo principal, lhe é perpendicular: neste caso a parte da capela do Santíssimo e a parte da direita onde se encontra o órgão e o túmulo da Rainha, o Candeeiro das Trevas e a porta para o coro baixo – Capela de Nossa Senhora do Carmo e do Senhor dos Passos, com um envidraçado. 

[12] O túmulo da Rainha apenas foi construído décadas após a basílica já que a Rainha morreu no Brasil em 1816 e foi aqui depositada em 1822.

[13] A pedra é o calcário e o principal é o liós, branco e cinzento claro. Também há o encarnadão, o amarelo e o rosa de Negrais (também denominado de Salema por aqui haver uma pedreira do mesmo tipo e tom de pedra), o negro de Mem Martins e o azul de Sintra. O mármore branco das estátuas poderá ser português e italiano. As grandes colunas das capelas Mor e do Santíssimo são de mármore de Negrais.   

[14] A Maria do Mar Oom disse-me tratar-se dum Peninsular.

[15] Símbolo católico em relação com a eucaristia já que Cristo deu o seu sangue por nós. A lenda do pelicano é a de que bica no seu próprio peito para que jorra sangue para alimentar os seus filhos.

[16] Jansenismo: nome por que ficou conhecida a doutrina propalada por um bispo de Ypres, Cornellius Otto Jansenius, que sobrepõe a importância da predestinação ao livre-arbítrio, condenada pela Igreja Católica.  

[17] A descrição e significado da tela seguem o artigo “O Painel do Altar-mor da Basílica da Estrela” in O Monumento, 28 de Maio de 1939, e, de forma indispensável, o poema de Arévalo no artigo de César Chaparro Gómez atrás citado. Damos por bem empregues as muitas dezenas de horas que já temos de observação e admiração por este quadro notável! E inesgotável!

[18] Segundo Sandra da Costa Saldanha, op. cit., no modelo original Santa teresa surgia com três livros, símbolos da sua condição de escritora, reformadora e doutora da Igreja.

[19] Inter pares = entre iguais.

[20] Aqui, como em quase tudo o que escrevemos, seguimos o pensamento de Sandra Costa Saldanha e de  Mónica Ribas Marques Ribeiro de Queiroz, expresso nas obras citadas em nota anterior, com que concordamos.