quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Casulas Secas

 


© Manuel Cardoso

 

Toda ela é rica ou, senão, especial, a gastronomia transmontana. Especialíssima nos pontos de transição entre a Terra Quente e a Terra Fria, que conseguem juntar o melhor dos dois mundos. Quer os produtos característicos duma e doutra das zonas neles confluem de forma feliz, quer os saberes, nalguns casos ancestrais, se apuram no resultado das receitas que, inspiradas das cozinhas, já de si saborosas, dos vales do Tua e do Sabor, sobem para o Planalto Mirandês e para as Terras de Bragança e de Vinhais, levadas pelos viajantes ao longo de milénios, que daqui foram fazendo descer outros tantos ingredientes, condimentos e fórmulas, ainda por cima coloridas com Castela e Leão, com a nossa querida vizinha Espanha.  

As antiquíssimas vias de comunicação de Trás-os-Montes, que cruzavam os trajectos leste-oeste com os norte-sul, serviram para que os produtos e as receitas pudessem fluir e as necessidades desses viajantes pudessem ser satisfeitas nos seus pontos de paragem ao longo dos itinerários. As velhíssimas redes de circulação pré-históricas ao longo dos rios e das linhas dos vales vieram a ser sobrepostas pelas vias romanas, cuja principal, que daria características ao nosso território, foi a XVII Via, dita de Braga a Astorga, que antecipou a direcção de todas as outras que se lhe seguiram. Por isso as estradas reais lhes vieram a fazer o paralelismo, sobretudo a que depois o Estado Novo denominou Nacional 15, do Porto a Bragança, subindo do Romeu para o planalto da Serra de Ala por Gradíssimo, descendo a seguir para o Pontão de Lamas antes de seguir para Vale de Nogueira e Rossas, dali se avistando já Bragança.

A descrição duma viagem no A Arte e A Natureza em Portugal, há mais dum século, merece a nossa admiração perante as muitas horas do dia e de toda a noite num carro a cavalos, desde a estação de caminho de ferro de Mirandela até à cidade de Bragança.

Ao longo destes trajectos havia “estalagens”, onde umas carreiras se articulavam com outras, pessoas e cavalos retemperando-se, haveres à espera nos patamares das escadas por onde se carregavam para o estrado superior das carroças, dos carros-matos e das diligências. Todo um mundo que sumiu há muito, de que hoje restam algumas designações na região de Macedo de Cavaleiros, cruzamento de diversos corredores de passagem. O quiosque da diligência, a estação e barracões do Menezes Cordeiro, a Estalagem do Ruço, de Sesulfe, a taberna e muda de cavalos do Pontão de Lamas.

Hoje há a A4, que sucedeu à N 15, e esta à Estrada Real, e esta à XVII Via. E à Estação de Muda do Pontão de Lamas, onde se entroncava a estrada que vinha de Macedo de Cavaleiros e de Vale de Prados, sucedeu o Restaurante e Hotel Panorama, um ponto de passagem e paragem rés-vés à autoestrada. Há que tempos eu não parava ali! Mas o Filipe desafiou-me há dias a ir lá comer umas casulas secas – em boa hora lá fui, ao fim duma manhã de trabalho!

Uma forma antiga de conservar o feijão, na Terra Quente, era fazendo-o secar com a vagem, guardando-se em sacos de linho ou em arcas de madeira, depois de desidratar ao sol sobre uma lona durante uns dias, modo de ganhar a aparência conhecida de casulas secas. A forma antiga de conservar a orelha, os pezinhos, as costelas e as tiras de toucinho entremeadas com carne magra, era na salgadeira e num sítio escuro da despensa, às vezes numa mosqueira espetados nos ganchos de pendurar e onde se mantinham inalcançáveis aos ratos. Sobretudo na Terra Fria, todas estas vitualhas se aguentavam primorosamente semanas ou meses depois das matanças do porco.

Nesta época de frio e de mau tempo, o cinzentão dos dias faz apetecer mais um prato forte e original como o é o das casulas secas, bem quentes, com ou sem butelo. Por isso em Bragança, em Vinhais, no Planalto, sabem tão bem nesta altura. E muito melhor ainda se forem comidas em Macedo, onde o tempero e a textura do feijão, das batatas, das carnes gordas e dos enchidos ganham um sabor (será da altitude? Talvez da água…) especial. E muitíssimo melhor se forem cozinhadas com a receita cuidada da Dona Lúcia, a mãe do Filipe.

Ao ver a travessa que veio para a mesa, temi fazer má figura pela abundância da dose ser muito superior à minha avaliação do que comeria. Mas postos no prato os troços de entremeada, as costelas, as batatas, as casulas translúcidas com os feijões a escorregarem para fora, a orelha que se desfazia ao encostar o garfo, tudo regado abundantemente com azeite dos Olmos, da Casa Cordeiro, tudo a fumegar, tudo a rescender um cheiro antigo de recordações a que se misturou o do tinto colheita de 2008 da Duorum, ao olhar lá para fora pelo vidro até ao chão, de que avistava o Inverno, acabei com a travessa. As melhores casulas secas dos últimos anos. Seria por estar a pensar nas que terão sido servidas aos extenuados viajantes das diligências que por ali passavam há mais dum século?