sexta-feira, 4 de abril de 2025

O vinho, o Douro e Trump

 



A hora de cada um

 

©Manuel Cardoso

 

Bolsas a descer, paralisia nalguns negócios, o dólar a perder, o ouro a subir: o palco destes dias parece ser todo dos líderes do medo e do pânico. E estes líderes dizem que é tudo por causa de Trump. E que as medidas de Trump se irão voltar contra os americanos. E estes líderes irão continuar a mais inventar a partir dos factos do dia a dia para nos meter medo, para criar cenários que nos causem espanto e desorientação e eles consigam manter-se… a continuar a ser os nossos líderes do pânico e do nosso dia a dia.

Ora, as medidas que Trump tomou iriam ser, mais dia ou menos dia, tomadas por outro líder americano cujo bom senso aconselhasse a mudar o rumo do seu país. E pena é que não tenha sido a Europa a dar início à mudança de rumo das coisas e a fazer sair dos discursos os absurdos que têm inquinado as nossas decisões políticas. A Europa é que criou o problema ao permitir o cocktail que nos trouxe aqui: a ilusão do comércio mundial sem limites, das migrações mundiais sem limites, do green deal (caríssimo green deal a troco de ilusões de pouca coisa), do tudo para todos e para já, gerando para tudo isto umas máquinas burocráticas que nos tiram para si, a cada consumidor europeu, mais de metade do que auferimos com o nosso trabalho, e nos impõem regras e normas de conduta contra as quais os nossos maiores pensadores, desde há séculos e até hoje, nos avisaram ser cerceadoras da liberdade.

Chegados aqui, devemos começar por fazer o nosso exame de consciência. É incrível como nós pudemos construir o embrulho absurdo de ideias e os labirintos legais com que nos oprimimos a nós próprios no dia a dia. Ao ponto de chegarmos a pôr em causa a nossa liberdade de expressão rotulando de desinformadores fascistas (pasme-se!) este e aquele, querendo calar os que pensem diferente!  

Toda a vida vi políticos e movimentos a agitarem papões para justificarem a sua razão de ser: o medo do desaparecimento da camada do ozono, o medo da bomba atómica, o medo das tempestades apocalípticas, o medo de que o petróleo está para acabar, o medo das epidemias de grande mortalidade, o medo do avanço rápido da desertificação, o medo da subida do nível do mar, o medo das pragas de gafanhotos, o medo das grandes invasões, o medo do dióxido de carbono, o medo do mar submergir a terra, o medo dos microplásticos, o medo das coisas que causam o cancro e as doenças. Sempre o medo. E agora, também, o medo de Trump e das medidas de Trump!

Não tenho nenhum medo de Trump, até sinto afinidades com ele: reza a Deus, ao mesmo Deus que eu, gosta de mulheres bonitas, gosta de proteger a sua família, gosta de ganhar dinheiro e de o dar a ganhar e distribuir pelos seus próximos, gosta de viajar, gosta do seu país. E gosta de premiar o mérito, não se poupa a elogios aos que se conseguem fazer triunfar dum objectivo na vida. Terá defeitos, como todos nós, mas não o de me querer meter medo, porque não mete. Conheço alguma coisa da história do mundo e dos Estados Unidos e de Portugal para compreender um pouco do que se passa. E o que se passa não é um momento para ter medo, de modo algum. É um momento para aproveitar a oportunidade. A oportunidade de haver um Trump com o qual se pode falar e a oportunidade de haver um país com regras claras para com ele se poder ganhar dinheiro. Vendendo coisas para lá. A começar pelo nosso vinho.

A Europa, a Península Ibérica, Portugal e o Douro estão com um problema enorme no vinho. Deixo para a Comissão Europeia a resolução do seu problema europeu (se a sua imaginação para o resolver se fica pelas podas em verde e pelo arranque de vinhas, deixa muito a desejar), deixo para os governos de Espanha e de Portugal a resolução do seu problema (se a sua imaginação para o resolver se fica pelas podas em verde, pelo arranque de vinhas e pela intervenção a destilar stocks, também deixa muito a desejar), deixo para o governo português a resolução do problema de Portugal (se a sua imaginação para o resolver se fica pelas podas em verde, pelo absurdo arranque de vinhas, pela intervenção a destilar stocks e pelas miragens de o venderem mais para o Oriente e para África, também deixa muito a desejar) mas já não deixo de querer escrever aqui algumas linhas gerais para discussão da resolução dos problemas (que são vários) do Douro.

Porque me têm chegado do Douro vários SOS aflitíssimos e sinto o dever de partilhar o que, em brainstorm, se pode e deve discutir para tentar chegar às soluções diferentes para os diferentes problemas colocados. Que têm uns sintomas, uma síndrome geral: há vinho a mais no Douro (Porto, Douro, duriense e sabe-se lá que mais…) e esse vinho, o autóctone, é proveniente de uvas mal pagas, no geral, e está na mão de grandes e pequenos produtores (que o não conseguiram vender aos grandes e, previsivelmente, continuarão a não conseguir na próxima ou nas próximas vindimas).

Os vários centros de discussão dos problemas relacionados deveriam, sem limites, saber conversar sobre cada um dos termos da sua equação, já que há séculos os andam a enunciar e de vez em quando têm sabido resolvê-los.

Compete ao Estado, IVV e IVDP, de forma proactiva e com urgência, começar por dar os passos necessários para, em tempo record, dar solução a todos os problemas administrativos eventualmente pendentes de empresas ou produtores, rever os que não tiveram solução até hoje e dar-lhes uma conclusão administrativamente possível. De forma expedita. Porque administrativamente, quando se quere, consegue-se dar solução a muitos processos aparentemente insolúveis, os juristas e advogados servem para isso. Compete aos fóruns interprofissionais a discussão e decisões sobre a produtividade por hectare; o número de pipas para benefício e se este deve ser fixado para uma vindima ou para um triénio ou um quinquénio de vindimas; se o caderno de especificações deve ser alterado e permitir o engarrafamento no destino fora da região quando se trate de destinos longínquos ou nas situações que o conselho interprofissional decidir; se a lei do terço deve ser mantida ou se deve ser modificada ou, até, abandonada pelas empresas que o queiram fazer, ficando de modo facultativo e podendo recorrer a financiamentos desenhados para o efeito com um calendário pré-estabelecido; deixar de discutir mitos e regressos a passados míticos que nunca existiram a não ser na imaginação de quem não estuda com atenção a história do Douro e da sua produção de vinho e de aguardente; fazer uma promoção moderna e inovadora dos vinhos que aumente o seu consumo e faça frente aos lóbis anti-vinho (porque os lóbis anti-álcool, com peles de cordeiro de salvaguarda da saúde pública, só o são em título, na realidade são lóbis anti-vinho que protegem os mercados da cerveja e das outras bebidas); discussão e acerto com o governo duma intervenção para destilação de vinhos em excesso mas que permita uma tábua rasa a empresas que o necessitem para relançamento da sua actividade e a um preço suficiente (os déficits ou recurso a montantes extraordinários devem ser criados quando servem para nos livrar de dificuldades e reerguer e não apenas para as maquilhagens das situações das TAP ou da banca!). Tempos extraordinários exigem medidas extraordinárias.

Os tempos não estão para demoras em decisões nem para lamúrias anti-Trump. Os tempos estão para negócios a sério de quem queira perfilar-se para continuar a mandar e vender vinho para o mercado mais promissor (o das Américas, incluindo os Estados Unidos da América), sem descurar o mercado nacional e o europeu, especialmente os nossos tradicionais ingleses cujos negócios, como numa música em baixo-contínuo, se têm mantido apesar de todas as vicissitudes ao longo dos séculos.

Muitos estarão a sorrir destas linhas e das medidas propostas (haveria ainda outras, que tenho sugerido a empresas e que, por isso, não seria ético estar aqui a descrevê-las) ou a achá-las absurdas. Serão. Também vi esse sorriso e esse achar absurdo a muitos que imaginavam as medidas de Donald Trump – e o que é facto é que estão aí! Todas serão discutíveis, todas são discutíveis, umas terão mais bondade, outras exigem mais esforço, algumas nem serão de aprovar, eventualmente. Mas devem ser discutidas, analisadas, avaliadas. Ficar parado e não fazer nada, é que não.

As bolsas e o dólar vão voltar a subir, os Estados Unidos vão continuar a comprar. Saibamos vender. Saibamos exportar. Saibamos trabalhar bem para vender e exportar bem.

Começando por produzir melhor, vinho da melhor qualidade, arrumando a casa, premiando o mérito, não tendo medo. O medo nunca foi bom conselheiro. Agora é a hora de cada um!

Saúde.

Ah, já estou mesmo a ver o sorriso mordaz e de desprezo com que os do costume comentam o que eu digo ou escrevo – je m’en fous! 😊 😊 😊                      


terça-feira, 18 de março de 2025

Portugal, o vinho e Donald Trump

 Com as tarifas já anunciadas por Donald Trump, este artigo ficou ainda mais actual do que no dia em que foi publicado!!!!! Seria bom Portugal começar a mandar as naus desde já!!!!


©Manuel Cardoso

Giovanni Papini e O Relógio Parado às Sete, a nossa vida a sincronizar-se com o resto do mundo apenas quando este coincide com a nossa imobilidade, duas vezes por dia. Giovanni Guareshi com Don Camillo e Peppone,[1] metáfora sobre a impossibilidade de se mandar no tempo, quando ambos rivalizam para que o relógio se antecipe a dar as horas, ou, se quisermos, do que acontece quando nos alheamos da realidade para impor as nossas vontades sobre a verdade, neste caso o tempo. Tempo que vai ficando cada vez mais desfasado! Estes desfasamentos, literários, ganham outros contornos e significados quando aplicados à nossa vida real. Vivemos num mundo a ficar com horas desfasadas, muito desfasadas. O desfasamento não será nosso?

1.      Portugal é um país importante, entre outras coisas, pela produção de vinho. Tanto no presente como historicamente falando. Não se entende, por isso, o quase alheamento da população em geral para com o vinho, a timidez da promoção, quando não, mesmo, o combate interno que lhe é feito, o desprezo a que é votado em muitos ambientes, se o compararmos com a cerveja, por exemplo. Muito menos se entende a ignorância política sobre o vinho, quer em relação à produção quer ao comércio e, muito mais ainda, ao consumo. Não se entende mesmo! Será propositada? Deveria fazer parte do dia a dia o conhecimento do vinho nacional pela positiva, na economia de Portugal e na nossa cultura. Mas não. Não é compreensível nem é aceitável tanta ignorância – e este estado de coisas tem de mudar, a começar pelos políticos.

2.      Há três ou quatro dias que, mais uma vez, se foi sobressaltado por uma ameaça de Donald Trump, o Presidente dos Estados Unidos da América, que, desta vez, nos afectaria estrondosamente: 200% de aumento nas tarifas de importação de vinho. Logo começaram os megafones com as vozes contra Trump. Tem sido assim que o tempo vai correndo quando se trata de Trump em relação a seja o que for: talvez o pensamento de muitos esteja parado antes de Trump, quase como o relógio de Papini, ou o compasso das horas acicatado por Trump, como os ponteiros nas torres do pequeno mundo de Don Camillo, tenha dessincronizado as moléculas dos que não se deveriam deixar dessincronizar.

3.      Há dias, também, estava na sala dos microfilmes da Biblioteca Nacional a desbobinar as páginas dos Diário de Notícias de há mais de cinquenta anos, e os meus olhos iam lendo títulos dos mais diversos, parando só aqui e ali para apontamentos que me interessavam para o tema de estudo, que nessa manhã não era o do vinho. Mas alguns dos títulos de primeira página eram inevitavelmente sobre o vinho, sobre as tarifas alfandegárias que pendiam sobre o Vinho do Porto, sobretudo, por políticas de diferentes países. Tarifas sempre houve. E haverá. Não é de agora. A ameaça de Trump em impor tarifas de 200% sobre o vinho e produtos alcoólicos europeus não partiu de Trump. Partiu dos europeus, ao considerar tarifas sobre o bourbon, o whiskie americano, em retaliação pelas de outros produtos, como metais, da ordem dos 50%. É incompreensível que não se antecipasse a reacção da Casa Branca às tarifas ameaçadas pela Europa! Por isso a minha estupefação perante a reacção dos europeus em relação à reacção de Trump. Não se mentalizaram ainda de que estamos numa guerra comercial de reciprocidade de medidas e de ricochetes constantes? Não compreenderam ainda os argumentos da nova Administração Americana? Não compreenderam ainda Trump?

4.      Presta-se um muito mau serviço à estratégia e tácticas comerciais das nossas empresas se um sentimento em relação ao Presidente do mais poderoso país do mundo antecipar uma análise fria e uma decisão informada – e precipitar reacções descabidas! Portugal exportou mais de 100 M€ de vinho para os Estados Unidos da América no último ano. É um número importante à nossa escala. E estão de parabéns as empresas que o têm feito. E está muitíssimo de parabéns a ViniPortugal pelas iniciativas perseverantes que tem desenvolvido, e em que tem sido exemplo e tem sido seguida, para que o potencialmente mais significativo destino de exportação dos nossos vinhos seja desbravado, e sejam estabelecidas redes de promoção e de comercialização perduráveis. A promoção dos vinhos nacionais no estrangeiro, e dentro de portas, deveria merecer muitíssimo mais atenção do que aquela que tem tido e é uma tristeza que não tenham sido esgotadas as verbas previstas no programa para o efeito. Sim, mudaram normas ou regulamentos, sim, em Espanha também isto ou aquilo, mas, desculpem lá!, em Portugal deveria ter havido capacidade de antecipação e manobra para que se fizesse doutra maneira. Quer por parte das empresas quer por parte das entidades. Ainda por cima o nosso orçamento é tão pequeno! Deveria ter havido imaginação e diligência da parte dos mentores e decisores. Poderei estar a ser um pouco injusto porque também não disponho de todos os dados sobre o assunto, mas quero com isto dizer que tem de haver proactividade, criatividade e inovação para que se possam ampliar e tornar muitíssimo mais eficazes as acções de promoção dos nossos vinhos!

5.      A existência de delegados comerciais residentes e itinerantes além-Atlântico, para os nossos vinhos, tanto na América do Norte como na América do Sul, com uma estratégia definida de promoção, uma carta de missão clara e de objectivos e metas mensuráveis e geríveis, estatuto e acção que fossem estabelecidos e protocolados pela ViniPortugal, pela ACIBEV, pela AEVP e por empresas que quisessem aderir independentemente, financiados pelos orçamentos dos IVV e IVDP, poderia e deveria ser uma resposta séria, para além duma manifestação de intenções, na tentativa de contrariar os efeitos prejudiciais que as tarifas, ou seja o que for, possam causar. Um menu de acções possíveis poderiam ser desenhadas a partir disto, com benefícios certos para as marcas e os vinhos nacionais, perduráveis, a dar sustentabilidade às transacções, continuidade no tempo a coisas que só se conseguem manter se tiverem essa continuidade no tempo. A boa política comercial só o será se for acompanhada dum claro movimento de impregnação da cultura do vinho de Portugal na cultura americana. Há tanto a fazer nessa perspectiva! Há tanto que se pode beneficiar duma política comercial bem conduzida!

6.      Na circunstância actual de que só quem tenha unhas é que poderá tocar guitarra, ou seja, só quem tenha massa cinzenta e capacidade de conceptualização, é imprescindível estudar bem e conhecer bem os adversários, porque duma guerra comercial se trata. E conhecer muito melhor os aliados para que não se tornem nossos competidores sem darmos por isso. Há quem o faça, quem o esteja já a fazer. Por isso, no meio do coro, algo uníssono em volume mas cacofónico e desafinado por falta de maestro, ouvem-se algumas vozes – felizmente! – a encarar a realidade. A de que é necessário pensar o que e como o fazer perante tarifas impostas e conseguir sobreviver comercialmente, assim. A de que há que perceber como tirar partido de tarifas percentualmente iguais inter pares, a de ser engenhoso e ter a arte de o conseguirmos. Se os 200% se aplicarem igualmente ao champagne, ao cava e aos nossos espumantes, nós ficamos em vantagem competitiva? E os outros nossos vinhos, não podem tirar partido disso? Os americanos não vão deixar de beber vinho se estivermos presentes e atentos, poderão fazê-lo momentaneamente mas rapidamente recuperarão o seu poder de compra!... E dependerá de nós preferirem o nosso vinho e não outro. Não nos enganemos com argumentos fáceis de que o melhor será mudarmos de mercados e deixarmos livre para outrem o nosso espaço na América! Saibamos ver para lá das tarifas, saibamos penetrar no gigantesco mundo e futuro americanos!

Ao longo da História de Portugal houve sempre mitos a tolher-nos e a ensombrar o nosso horizonte mas para os quais houve sempre gente de categoria para os ultrapassar. Foi assim com o Bojador, com o das Tormentas, com o do Mostrengo que estava no Fim do Mar! Que não nos deixemos amedrontar por mitos, hoje. Que assumamos o nosso papel e esforço. E saibamos estudar e entender os novos tempos. Outrora soubemos estender a mão e fazer tratados com povos que desconhecíamos. Também hoje temos de o saber fazer. Compreender aqueles com quem nos queremos continuar a dar porque podem ser, serão, o nosso melhor cliente. Mesmo com tarifas.

Não nos intimidemos com estas tarifas nem com a perspectiva de que as vindimas serão em excesso, de que morreremos afogados em vinho! Não nos iludamos com a responsabilização de outros pelos nossos fracassos. Saibamos decompor os problemas nos seus diversos factores e resolver cada uma das suas equações. Com brio e com optimismo no futuro. Sem mitos, sem medos, com inteligência. Se outros são capazes, nós também somos.

Donald Trump está a querer fazer a América grande outra vez e está no seu direito. Teremos tudo a ganhar se pudermos continuar a vender o nosso vinho aos americanos: fazendo-o bom, vendendo-o bem, garantindo que continua a chegar aos seus destinos, a fazer parte da vida americana – e bebendo-o também! Saúde, aos nossos clientes!

Foto: composição livre com páginas em papel da Collier’s de 9 de Abril de 1949. Sobre a Collier’s:  https://en.wikipedia.org/wiki/Collier%27s                      

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Viver no Campo

 ©Manuel Cardoso

 


Tentávamos meter ordem, para fazer caber uma estante num vão de janela, e uma pilha de publicações deslizou como se fosse um glaciar que descongela, deixando ver de relance coloridas capas e títulos e trazendo, para este avançar para o segundo quartel do século XX em que estamos, inúmeras imagens e temas que nos fizeram viajar no tempo.

Acaso de arrumações, numa rima de antigas revistas Figaro Magazine e Madame Figaro, com outras de séries menores, que se acumulam no caos do meu escritório, apareceram mais de meia dúzia de números, que julgava perdidos, da “Viver no Campo”, publicação portuguesa dos anos 90 com existência fugaz, infelizmente fugaz.

Numa conversa de livraria em Lisboa, nesses anos, contaram-me que se tratava duma ideia da Isabel Stilwell levada à prática por um grupo de entusiastas da vida no campo, um certo sabor neo-rural. Não sei. Talvez isso fosse um resumo demasiado redutor mas significativo. Vivendo nós, a Mariana e eu e os nossos filhotes, no Portugal profundo, a revista foi, então, uma espécie de promoção e atestado de vida dos que, apesar da distância ao litoral e à Cidade, pelo menos tínhamos a audácia de viver nesse Portugal profundo. Fomos, por isso, leitores atentos. Ao rever e reler agora essas páginas, ilustradas com belíssimas fotografias, paginadas com arte e escritas com uma dose qb da paixão que costuma imbuir o ruralismo, fica-se com uma pena enorme de que não tenham continuado a ser publicadas.

De vez em quando há suplementos ou números dedicados à vida no campo compostos por jornais e revistas generalistas, bem sei, e há algumas publicações sectoriais que trazem uma ou outra reportagem… há-as, até, temáticas sobre agricultura e agroturismo, vinhos e produtos, mas numa perspectiva diferente daquela que começava a respirar-se na Viver no Campo. Às que se publicam falta-lhes autenticidade, um olhar de quem observa, vive e sente, e não apenas de quem vê e relata.

Se a Viver no Campo estivesse toda escrita em inglês, passaria por revista inglesa, se em castelhano, por espanhola. E existiria ainda. Mas em Portugal há esta pecha de estarmos sempre a mudar pela ilusão de tudo ter de estar sempre a recomeçar para se justificar existir! Quantos esforços, tantas vezes frustrados, para fazer perdurar uma ideia ou atingir um desígnio, entre nós!

Que bom seria se voltasse a existir uma Viver no Campo!

Bem sabemos que um certo mundo rural já desapareceu. Mas há outro, com o seu sabor, com a sua vida que vale a pena, com o entusiasmo e a perspectiva actual de se poder viver no Portugal profundo com muito mais facilidade do que nos anos 90. Também a exigir denodo para enfrentar dificuldades, que as há novas, a começar pela solidão e rarefação do tecido social da província, despovoada que está. Viver no campo e viver do campo são coisas diferentes, como bem explicava Tomaz Dentinho num dos artigos.[1]  


Reaparecidas ontem pelas arrumações no meu escritório do sótão, iremos fazer cá em casa algumas das receitas em memória desses anos 97, 98… e estamos a reler alguns desses artigos, tão actuais, tão intemporais nas suas observações! Num dos Editoriais, Carmo van Uden escreve “A Golegã, tal como muita coisa nesta vida, é muito difícil de explicar mas muito fácil de sentir”.[2] Em vez de Golegã, poderemos ler o monte alentejano, a quinta, o casal, ou Vale Pradinhos, o Romeu, Latães… os lugares longínquos e tão perto de nós. E, noutro Editorial: “Há sempre alguém ou alguma coisa que nos abre os olhos para aquilo que muitas vezes durante uma vida inteira nos esteve à mão sem termos sequer querido estender o braço para lhe tocar”[3]. Será que alguém com engenho e arte poderá voltar a pegar nesta ideia? Seremos assinantes!          



[1] Viver no Campo número 7, Dezembro 1997, pg.12.

[2] Viver no Campo número 6, Novembro 1997

 

[3] Viver no Campo número 9, Fevereiro 1998

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Casulas Secas

 


© Manuel Cardoso

 

Toda ela é rica ou, senão, especial, a gastronomia transmontana. Especialíssima nos pontos de transição entre a Terra Quente e a Terra Fria, que conseguem juntar o melhor dos dois mundos. Quer os produtos característicos duma e doutra das zonas neles confluem de forma feliz, quer os saberes, nalguns casos ancestrais, se apuram no resultado das receitas que, inspiradas das cozinhas, já de si saborosas, dos vales do Tua e do Sabor, sobem para o Planalto Mirandês e para as Terras de Bragança e de Vinhais, levadas pelos viajantes ao longo de milénios, que daqui foram fazendo descer outros tantos ingredientes, condimentos e fórmulas, ainda por cima coloridas com Castela e Leão, com a nossa querida vizinha Espanha.  

As antiquíssimas vias de comunicação de Trás-os-Montes, que cruzavam os trajectos leste-oeste com os norte-sul, serviram para que os produtos e as receitas pudessem fluir e as necessidades desses viajantes pudessem ser satisfeitas nos seus pontos de paragem ao longo dos itinerários. As velhíssimas redes de circulação pré-históricas ao longo dos rios e das linhas dos vales vieram a ser sobrepostas pelas vias romanas, cuja principal, que daria características ao nosso território, foi a XVII Via, dita de Braga a Astorga, que antecipou a direcção de todas as outras que se lhe seguiram. Por isso as estradas reais lhes vieram a fazer o paralelismo, sobretudo a que depois o Estado Novo denominou Nacional 15, do Porto a Bragança, subindo do Romeu para o planalto da Serra de Ala por Gradíssimo, descendo a seguir para o Pontão de Lamas antes de seguir para Vale de Nogueira e Rossas, dali se avistando já Bragança.

A descrição duma viagem no A Arte e A Natureza em Portugal, há mais dum século, merece a nossa admiração perante as muitas horas do dia e de toda a noite num carro a cavalos, desde a estação de caminho de ferro de Mirandela até à cidade de Bragança.

Ao longo destes trajectos havia “estalagens”, onde umas carreiras se articulavam com outras, pessoas e cavalos retemperando-se, haveres à espera nos patamares das escadas por onde se carregavam para o estrado superior das carroças, dos carros-matos e das diligências. Todo um mundo que sumiu há muito, de que hoje restam algumas designações na região de Macedo de Cavaleiros, cruzamento de diversos corredores de passagem. O quiosque da diligência, a estação e barracões do Menezes Cordeiro, a Estalagem do Ruço, de Sesulfe, a taberna e muda de cavalos do Pontão de Lamas.

Hoje há a A4, que sucedeu à N 15, e esta à Estrada Real, e esta à XVII Via. E à Estação de Muda do Pontão de Lamas, onde se entroncava a estrada que vinha de Macedo de Cavaleiros e de Vale de Prados, sucedeu o Restaurante e Hotel Panorama, um ponto de passagem e paragem rés-vés à autoestrada. Há que tempos eu não parava ali! Mas o Filipe desafiou-me há dias a ir lá comer umas casulas secas – em boa hora lá fui, ao fim duma manhã de trabalho!

Uma forma antiga de conservar o feijão, na Terra Quente, era fazendo-o secar com a vagem, guardando-se em sacos de linho ou em arcas de madeira, depois de desidratar ao sol sobre uma lona durante uns dias, modo de ganhar a aparência conhecida de casulas secas. A forma antiga de conservar a orelha, os pezinhos, as costelas e as tiras de toucinho entremeadas com carne magra, era na salgadeira e num sítio escuro da despensa, às vezes numa mosqueira espetados nos ganchos de pendurar e onde se mantinham inalcançáveis aos ratos. Sobretudo na Terra Fria, todas estas vitualhas se aguentavam primorosamente semanas ou meses depois das matanças do porco.

Nesta época de frio e de mau tempo, o cinzentão dos dias faz apetecer mais um prato forte e original como o é o das casulas secas, bem quentes, com ou sem butelo. Por isso em Bragança, em Vinhais, no Planalto, sabem tão bem nesta altura. E muito melhor ainda se forem comidas em Macedo, onde o tempero e a textura do feijão, das batatas, das carnes gordas e dos enchidos ganham um sabor (será da altitude? Talvez da água…) especial. E muitíssimo melhor se forem cozinhadas com a receita cuidada da Dona Lúcia, a mãe do Filipe.

Ao ver a travessa que veio para a mesa, temi fazer má figura pela abundância da dose ser muito superior à minha avaliação do que comeria. Mas postos no prato os troços de entremeada, as costelas, as batatas, as casulas translúcidas com os feijões a escorregarem para fora, a orelha que se desfazia ao encostar o garfo, tudo regado abundantemente com azeite dos Olmos, da Casa Cordeiro, tudo a fumegar, tudo a rescender um cheiro antigo de recordações a que se misturou o do tinto colheita de 2008 da Duorum, ao olhar lá para fora pelo vidro até ao chão, de que avistava o Inverno, acabei com a travessa. As melhores casulas secas dos últimos anos. Seria por estar a pensar nas que terão sido servidas aos extenuados viajantes das diligências que por ali passavam há mais dum século?