quinta-feira, 17 de março de 2022

Muito e bom marketing, para o futuro do vinho de Portugal

© Manuel Cardoso

 

Quer seja no curto prazo, quer seja no médio prazo, o futuro do vinho de Portugal dependerá do aumento da sua procura.

Que queremos dizer com futuro do vinho? Queremos dizer aumento do seu consumo, com aumento do seu valor. Não será compreensível de outro modo.  


Isto irá depender das técnicas vitivinícolas, das embalagens, do transporte, da eficiência de qualquer destes processos, da sustentabilidade económica das empresas e das regiões produtoras, das preferências do público consumidor? Dependerá disso tudo, no todo ou em parte. Mas sem aumento do valor do vinho, sem aumento do valor das uvas, o vinho não terá futuro.

Não há falta de oferta de vinho no mundo. Com oscilações de ano para ano, com vindimas diferentes, com origens nos mercados do novo mundo ou do velho mundo, a quantidade de vinho produzido não só não tenderá a diminuir, como, com alguma variação, poderá mesmo aumentar ao longo das próximas décadas, basta lembrar as novas regiões produtoras na Ásia, na América, até na Europa e, muito provavelmente e num muito curto prazo, no Norte de África. Não será, por isso, pela escassez, que o vinho poderá aumentar de valor. Mesmo com a actual perturbação séria da Guerra da Rússia na Ucrânia, as dificuldades dalguns circuitos de abastecimento serão contornadas e o mercado encontrará formas de recuperar (outra coisa será a questão do álcool e das aguardentes, com uma previsão dum aumento brutal de preços a curto prazo, se durável ou não, não sabemos).

O valor do vinho também não dependerá inteiramente (embora seja um factor importante) da qualidade, que se tem mantido numa ascenção apreciável, com padrões de exigência dificilmente imagináveis há meio século, e que, hoje, se encontra em marcas de gama de preço baixo a surpreender em concursos e a deixar atónitos alguns apreciadores exigentes. Embora, claro está, haja uma relação directa na qualidade e no preço já praticado, há, também, muitas excepções à regra. E não é difícil encontrar vinhos de preço médio com qualidade ao nível dos de preços mais altos (e vice-versa, dir-me-ão).

O imprevisível é sempre o factor mais certo de ocorrer e, por isso, já vejo o sorriso de alguns meus amigos, ao ler estas linhas, de que, “assim, é fácil: afirmar algo e o seu contrário é ter a probabilidade de saírem certos os vaticínios…” mas há o do início destas linhas, que é unívoco: o de que, o futuro do vinho de Portugal, dependerá do aumento da sua procura.

Tem-se feito muito e bom marketing, é inegável, e os números de exportações e vendas têm-no demonstrado. Há empresas de marketing a trabalhar bem, e muito. Mas terá que se fazer mais. Com um pensamento sempre subjacente: se, antigamente, com os meios que havia, foi possível fazer chegar a muitos destinos, mercados, lugares públicos e casas de pessoas, quer a imagem, quer a fama, quer as recomendações para se consumir o vinho português, com os meios de hoje tal tarefa deveria ser omnipresente e constante. Não me levem a mal, mas não resisto a deixar uma pergunta para reflexão: a publicidade ao vinho não estará a funcionar demasiado em circuito quase fechado e voltada para dentro do próprio sector? Não fazia sentido fazer uma grande abertura como fazem, aliás, algumas das marcas que já o perceberam e passaram a promover, nas suas campanhas, em maior escala e em locais e canais não habituais?

Um bem aumenta de valor, pela sua escassez perante a procura. Como não será provável que venha a haver escassez na oferta de vinho, quer nas gamas de qualidade mais alta quer nas outras, há uma maneira de criar a escassez necessária no mercado, para que aumente o seu valor: pelo aumento da procura. Que pode ser induzida.

Daí que o foco da fileira do vinho tenha de estar na criação deste aumento da procura. Com marketing. Marketing moderno e criativo, que capte novos consumidores e que faça com que os que o já são, tenham mais disponibilidade para pagar mais, por melhores vinhos. Correspondência com exigências do público? Sim. Mas não só. Criação, inovação, publicidade informativa e associação do vinho à história do nosso país, do mundo, da felicidade das pessoas.

Todos os anos, milhões de pessoas atingem a idade de poder beber responsavelmente. A maioria delas nunca provou vinho, nunca lhe foi feito um apelo para tal, nunca viu uma publicidade acerca da mais antiga bebida culta da civilização. Todos os anos há um novo público disponível para beber um copo. Nesse, está o grande potencial para aumento da procura. É ao ir ter com públicos novos que estamos a aumentar a base do consumo, que podemos aumentar a procura.

Mas não se pense só nos jovens, nem só nos turistas, nem só no estrangeiro. 
Pense-se em público de todas as idades, geografias, restaurantes e bares.
Pense-se em eventos, na praia, nas piscinas, nos festivais, nos pic-nics. 
Pense-se em todas as horas.
Pense-se fora da caixa. 
Pense-se fora da garrafa! Porque, para se valorizar o que está dentro da garrafa, há imenso a fazer fora dela! 

As imagens deste artigo são da revista Ilustração, propriedade da Livraria Bertrand, precisamente do último número publicado em 1939, tinha começado a II Grande Guerra na Europa. A revista suspendeu, com este número, a sua publicação, por causa das restrições do conflito. Está disponível na net, nos sites de hemeroteca.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Joaquim Manuel de Barros Cardoso e a nossa família do Douro - 1

© Manuel Cardoso

Fevereiro 2022

 

 


Queridos Mariana e filhotes, manos, sobrinhos e primos, ao escrever sobre este nosso antepassado, Joaquim Manuel de Barros Cardoso (Cotas, 14.12.1791-30.10.1848), faço-o com especiais motivos. Desde pequeno que me tinha habituado a olhar o quadro a óleo do seu retrato, pendurado com alguma ostentação mas também naturalidade na nossa sala de visitas da casa de Macedo, como alguém antigo – “é o seu trisavô, de Cotas, que casou com uma francesa” – que mereceria respeito e que teria tido uma vida interessante – “combateu nas lutas liberais” – mas do qual pouco ou nada eu sabia porque, facto que já mais vezes assinalei, o meu Pai morreu inesperadamente e antes de eu entrar na fase de me poderem ser confidenciadas as histórias de família com mais profundidade. Também soube, pela minha Mãe, que ele e um seu trisavô militar, o General Jacques Filipe Nogueira Mimoso, dos nossos antepassados algarvios, teriam estado em certa fase em campos contrários. Mas tudo vago, sem cronologia nem geografia, sem certezas, perdido na noite dos tempos. Ainda por cima, quando eu fazia alguma pergunta mais concreta, levava com a resposta repetidíssima “e tu para que queres saber isso?” que tanto podia esconder ignorância como o ocultar inconveniências tidas como tal à luz dos preconceitos familiares. O tempo veio a fazer-me ciente de que eram ambas. Nessa altura, ainda pela mão do Pai, eu tinha ido ao arquivo do Registo Civil consultar livros antigos sobre os antepassados de Macedo e pudera ler o assento de nascimento do trisavô Morgado de Macedo, o Bernardino José d’Oliveira, casado com a Josefa Rosa Pereira de Miranda. Aí despertou o meu interesse pela genealogia – que não mais desapareceu toda a vida! – e pela colecção de factos e anedotas familiares. Foi relativamente fácil desenhar um esquema sumário e primitivo com os Costa Borges Oliveira, os Sousa, os Falcões, os Pereiras. Contudo, saber coisas sobre “os de Cotas”, os Cardoso – que era o que mais me suscitava curiosidade! – era algo quase impossível de conseguir, tanto mais que nesse tempo nem havia as comunicações que há hoje, nem a facilidade de obter coisas com cliques, nem a possibilidade de ir ao Douro conhecer os locais de onde tinham vindo o Avô Amadeu e a Tia Eugénia, duas personalidades algo escandalosas para a família e demais parentela de Macedo (dele me ocupei n’ Um Tiro na Bruma, tentando ser-lhe fiel, e da Tia Eugénia basta dizer por agora que nessa viragem do século XIX para o XX, tinha estudado Farmácia na Academia Politécnica do Porto, o que fazia a uma rapariga ser olhada com desconfiança pela sociedade, e tinha sido a primeira diplomada, por ter estudos tinha vindo dar aulas de instrução primária para Vale da Porca e mais tarde casara com um homem uma dúzia de anos mais velho, o Tio José Caetano Ferreira Pinto dos Reis, abrindo a farmácia em Macedo e à porta da qual se sentava a apanhar sol e a fumar o seu cigarro – está-se a ver, anos 10, a reprovação da mentalidade arcaica e atávica daqui do pequeno burgo!). Ambos, Amadeu e Eugénia, eram filhos dum Padre, o bisavô José Étienne de Barros Cardoso (Cotas, 30.10.1846, Porto, 6.06.1905), filho mais novo do Joaquim Manuel. Mexer, por isso, nessas poeirentas memórias de família que tão quietas estavam em étagères escondidos seria o mesmo que levantar nuvens de pimenta que fariam espirrar e chorar. Havia muitas coisas, no entanto, que na casa de Macedo remetiam para o Joaquim Manuel: desde logo os quadros a óleo, pintados em Paris em 1834, o dele e o de sua filha Aspazie Clorinde (Toulouse, 12.07.1830, Cotas, 8.09.1886, solteira, sg), retratada com um colar que ainda me lembro de a Pilar usar, embora sem o crucifixo[1]; um mapa de parede do Douro, dos do Barão de Forrester; um relógio império em mármore e bronze que trabalhava dentro duma redoma de vidro e dava as horas com “plim”; uns quadros românticos com gravuras coloridas e molduras boas, douradas, sobre o amor, o desejo e o prazer, de há duzentos anos; bacias e jarros de faiança e porcelanas de Sèvres, umas peças de Limoges, serviços de chá já desirmanados; um florete de aparato com punho de prata com que às vezes brinquei no quintal como se fosse um dos três mosqueteiros; um óculo inglês que era óptimo para ver ao longe; fotografias, algumas com anotações no verso, felizmente, por exemplo uma do Victor Napoleão Cardoso (n. Cotas, 1.12.1855), mandada do rio Grande do Sul, para onde emigrara em 1869 e de quem descendem muitos primos Cardoso brasileiros e uruguaios; ignoro que mais bugigangas, mais seriam com certeza, e, ainda, livros: as “Lettres de Voltaire”, gramáticas e dicionários… Hoje penso que o Joaquim Manuel deve ter deixado um grande espólio escrito pelo seu punho e uma biblioteca razoável cujo destino não sei. A Macedo não chegou a não ser meia dúzia de volumes. Manuscritos, nada. E para tal deve ter concorrido, como se verá a seu tempo, o facto de, quando morreu, apenas com 56 anos, em Cotas, o seu filho José Étienne ter só 2 anos (o seu pai morreu neste seu aniversário) e, portanto, os seus bens mais pessoais deverão ter levado caminho para o filho mais velho, Joaquim Francisco Adolfo de Barros Cardoso (Escrivão da Comarca de Vila Real, n. Toulouse, 24.08.1832, Cotas, 4.01.1910), já com 16 anos, que mais tarde usou o nome de Joaquim Manuel de Barros Cardoso Falcão (vindo a deixar cair o Falcão, como explicaremos), e que, tendo este tido filhos de pelo menos quatro mulheres mas não tendo casado com nenhuma, facilmente tal terá contribuído para que algumas coisas pessoais tenham levado descaminho. E facilmente daqui se compreende também que a existência de todos esses primos, os “de Cotas”, como em Macedo se dizia, apesar de Joaquim Manuel de Barros Cardoso Falcão ter vivido uma boa parte da sua vida em Vilarinho de São Romão, que hoje por esse mundo fora serão Sousa Botelho, Campos da Costa, Cardoso, Cardoso Calçada, Cardoso Medeiros, Cardoso Reis… , terão feito com que uma cortina de silêncio e de distanciamento os tenha ocultado do meu raio de conhecimento e investigação durante quase toda a vida! De facto, só recentemente, há uma década, consultando os inventários por morte desses Joaquim Manuel, pai e filho, no Arquivo Distrital de Vila Real, me pude dar conta da extensão do problema que teria levado a que a querida Avó Micas, tarde demais, tenha visto com tanto desgosto o seu casamento com o Avô Amadeu. Não terá sido só o ser filho de Padre, que o soube antes do dia de darem o nó, nem a sua vida aventurosa mas o facto, que não é de somenos, de haver uma necessidade permanente de cortar amarras ou nem as atirar, a uma boa parte dessa sua família do Douro. Que pena tenho de os não conhecer a todos pessoalmente, aos descendentes que nossos primos são! O relacionamento dos de Macedo manteve-se com alguns dos mais próximos, descendentes da Tia Eugénia, com um hiato depois da morte do meu Pai, e a quem pude visitar com os Pais da Mariana, meus futuros sogros, no Verão de 1984, quando, a partir da Pousada Barão de Forrester em Alijó, um dos locais onde ficáramos num raid de investigação genealógica que nos levara a vários pontos do País, fizemos uma incursão a Cotas. Nessa tarde conheci a prima Maria Natália e o marido, António Campos da Costa, que descobrimos ser primo também, ele dos descendentes de Vilarinho de São Romão. Mostraram-nos a casa , “a casa das francesas”, conversámos, indicaram-nos um quadro a óleo, da mesma série dos nossos de Macedo, moldura igual, com o retrato do Joaquim Francisco Adolfo em menino. Na igreja explicaram-nos o sítio onde estão enterrados o Joaquim Manuel e a sua mulher, Adélaïde Malenfant, no adro, do lado esquerdo de quem entra pela porta lateral. Numa consulta aos livros de assentos, que mais tarde o meu sogro e eu fizemos na sacristia, pudemos tomar apontamentos essenciais para o que se veio a descobrir e encontrámos, guardada no meio de papelada, uma caixinha ricamente pintada com as armas dos Barros na tampa e um escudo com as cinco chagas no interior. O Pai da Mariana, tendo nós sido mutuamente compagnons de route de investigação genealógica e heráldica, repetiu-me inúmeras vezes que “este seu ramo da família tem de estar ligado ao vinho do porto”, e tinha toda a razão. Vim a poder comprová-lo – e quanto! Com a sua morte, verificada muito cedo na Páscoa de 1993, as investigações ficaram interrompidas durante anos e só muito depois as retomei, numa época já de internet e recursos imensos comparados com o esforço que tivéramos de fazer nessa década de oitenta. A imagem que hoje é possível do trisavô Joaquim Manuel de Barros Cardoso é muito mais completa e nítida e deixa-nos estupefactos o quanto desconhecemos durante tanto tempo, o quanto nos terá sido ocultado pelas razões já expostas: nascido no século XVIII numa família com terras no Douro, produção de vinho de Feitoria e outros bens, sendo o mais novo de pelo menos quatro irmãos, criado, tal como estes, com educação e cultura, ficou órfão de pai aos 18 anos, estudou gramática, habilitou-se a Familiar do Santo Ofício, acompanhou a mãe (que deve ter sido uma senhora de fibra) nos negócios, foi feito Cavaleiro da Ordem de Cristo mas quando surgem os alinhamentos nas novas e velhas correntes políticas inscreve-se nas milícias com o liberalismo na cabeça, combate e é ferido em Coruche da Beira e acompanha a primeira tentativa liberal no Porto mas, doente, consegue embarcar e fugir a bordo do navio inglês Belfast com o então ainda Marquês de Palmela e restante comitiva, desembarcando em Plymouth e seguindo posteriormente para França, onde casa com uma rapariga dezassete anos mais nova do que ele, Marie Adélaïde Malenfant (Rambuillet, 23.02.1808, Cotas, 18.12.1882), tem os primeiros dois filhos em França, residindo em Saint-Étienne de Toulouse, chegando-lhe a notícia do assassinato de sua mãe pelos Miguelistas e do incêndio da sua casa e armazéns no Douro, dirigindo daí uma carta à Rainha D. Maria II a pedir meios de forma pungente porque o seu cabedal se tinha ido “na quebra do Van-Zeller” e nas despesas da sua emigração, regressando depois a Cotas onde reconstrói tudo o que pôde, refaz a sua produção de vinhos, se relaciona com o Barão de Forrester, escreve cartas, artigos e pelo menos um opúsculo e é eleito Presidente da Câmara de Favaios, cargo que desempenha até à sua morte precoce, tendo tido entretanto mais quatro filhos de sua mulher, já cá em Portugal. Numerosas publicações sobre vinhos e sobre o Barão de Forrester se lhe referem. Continuo a juntar materiais sobre este notável antepassado e creio bem que a Torre do Tombo ainda guarda alguns dados importantes que ainda não descobri. Mas, chegados aqui, acho que já é interessante dar a conhecer esta aventura no nosso passado familiar. Por isso, queridos filhos, sobrinhos e primos, estão a ver que especiais motivos há para escrever sobre Joaquim Manuel de Barros Cardoso e a sua família ascendente e descendente. Não por prosápia vã ou glória alheia ou snobismo, porque, como uma vez disse Paulo Portas e repetiu aquando da apresentação d’ Um Tiro na Bruma em Lisboa, o nascimento não se escolhe e na vida o que conta é o que se escolhe, mas para sentimento de satisfação íntima de que é de vidas reais como estas que são escritas as sagas familiares de grandes romances e filmes. A nossa dava para isso, aliás, é um exemplo disso. E lhe pertencemos. Conseguiram ler de um fôlego esta introdução num parágrafo propositadamente único? Então apertem os cintos porque a viagem, e que viagem, ainda só começou! Até breve!               

Este post segue em: https://adriveinmycountry.blogspot.com/2022/05/joaquim-manuel-de-barros-cardoso-2-os.html   

[1] Estes dois quadros a óleo estavam em estado algo decrépito na tela e o Pai da Mariana ofereceu-nos como presente de casamento uma cópia de cada um para nós, executada pelo José Bénard Guedes e que desde então mantemos na nossa sala de estar, na que o foi em Macedo e na de Latães, já neste século. Os originais regressaram a Macedo onde estão, reentelados e restaurados respeitando o craquelé. A imagem acima é do original.  

sábado, 11 de dezembro de 2021

MIRANDA do DOURO e MOGADOURO no Castelo de BRAGANÇA

Que o castelo de Bragança tenha história, lendas antigas e ainda muito por descobrir nos seus muros, quintais e recônditos, é coisa esperada e de que todos nós estamos cientes. Que é um dos sítios menos conhecidos e mais extraordinários de Portugal, também alguns de nós o sabemos, sendo que a sua justa fama esteja apagada por um trabalho de sistemático silêncio de séculos. Mas que na sua cidadela, ontem, tenha decorrido um evento vínico singular e exclusivo, a trazer Miranda do Douro e Mogadouro até Bragança, e para o qual tive o excepcional privilégio de ser convidado, é coisa inesperada, que não pode passar em claro, sem umas linhas. Para os que participámos foram umas horas descontraídas e cultas, em que provámos vinhos, cozinha de fusão e mérito, e em que à mesa conversámos de coisas sérias e coisas leves, historietas e trocadilhos, e cumprimos de forma alegre e em companhia o lançamento do Projeto Belfo da Arribas Wine Company.



A manhã estava fria mas o sol emoldurado pelas ameias da muralha deixou-nos estar ali perfeitamente, no Largo do Duque D. Afonso, Rua Rainha Dona Amélia, na esplanada do Contradição (o Duque para os de Bragança), enquanto dentro se faziam os preparativos. Frederico Machado e Ricardo Alves, donos e autores do projecto, António Picotês, seu compagnon de route, William Wouters, sommelier em Óis-do-Bairro, João Oliveira, da All Comunicação, o Emanuel e o Luís, da AEPGA. Quando cheguei, o Frederico segurava em algo invejável: uma caixa de vinhos da Filipa Pato e do William. Cumprimentos e apresentações, entrámos.

António e Óscar Geadas de anfitriões, acabámos por ficar instalados na mesa da entrada onde logo apareceram copos com dois dedos de Belfo, vinho de que já falei num artigo https://www.agroportal.pt/das-arribas-do-rio-douro-manuel-cardoso/ , cestinhos de pão (farinha de trigo barbela do Planalto Mirandês, especial como conduto do mesmo projeto) e bola de carne, tacinhas de faiança com azeite novo de santulhana, da Arvólea de Macedo do Mato. Num flash, a Diana Baltazar gravou um vídeo para o Viver Aqui da Porto Canal e que está online. E ficámos depois nós os oito mais os nossos guias e autores do repasto, intérpretes do que se ia passando: croquete de rabo de boi com puré de maçã granny smith de Carrazeda e mostarda savora; uma taça mágica que continha alheira grelhada e pelada, pickle de maçã, croutons de trigo (outra vez barbela), batata palha-frita, gema inteira de ovo a presidir… e que, uma vez misturada, se trincava em garfadas que apeteciam rapar até ao fundo!; grão de bico com salpicão e samos com umas lascas de bacalhau de fazer esquecer o que já tínhamos provado; lombelo de porco bísaro em pequenas fatias e que era dispensável porque o arroz em que assentava era por si um superlativo: carolino do Pepe, José Mota Capitão, da Herdade do Portocarro, cozido com cogumelos silvestres de época, cantarelos, boletus, lactários… que arroz! Nesta fase já tínhamos quase tantos copos em cima da mesa como na do Jacinto no 202, acrescentados num ritual explicado e cheio de observações pelo Frederico e pelo Ricardo, sempre com o António e o Óscar a acrescentar mais curiosidades, o António Picotês também, João Oliveira a tomar notas, Emanuel a explicar o que faziam na AEPGA e a tirar fotos, William e eu a conversarmos sobre a excelência de Portugal! Garrafas várias foram fazendo história: o Saroto branco, o Saroto rosé (autêntico vinho de lavrador, 12%, uma pena que só tenham sido feitas 1200 garrafas!), o Manicómio e o Manicómio G, o Raiola tinto… com um denominador comum a todos estes vinhos: uvas de vinhas antigas das encostas do Douro Internacional da freguesia de Bemposta, pisa a pé, intervenção mínima, leveduras indígenas, manipulações restritas “escola do Dirk”, álcool abaixo de 13% o que, para quem sabe, aumenta a perigosidade do vinho e de que maneira 😊 😊 😊!!! O Manicómio tem a particularidade de em cada ano ser feito com cumplicidades diferentes: com o Dirk o de 2019, o João Tavares de Pina o de 2020, Carmelo Peña Santana o de 2021. E o Manicómio G é feito à parte, estagiado numa barrica escolhida a dedo, G de Geadas. Nos doces voltámos ao Belfo, pois claro: uvas vindas de Peredo de Bemposta duma vinha em que há granito e calcite, mistura rara, field blend de muitas castas mas em que a predominante é a posto-branco ou barranquesa… para eruditos a discussão de sinonímias e encaixe classificativo!, e voltámos ao Belfo muito bem casado: pera fusionada em moscatel com gelado de café, brioche de laranja com creme de queijo,… chocolate… gelado de côco… … … Ninguém estava com vontade de vir embora e à porta cá fora, já nas despedidas e fotos, agradecimentos também à Cíntia, ao Ruben e ao Igor que mantiveram a nossa mesa em ordem com grande profissionalismo.

Para mais sobre o projecto pode e deve ir-se ao site www.arribaswine.com mas não posso terminar este post sem dar um outro link americano porque estão lá referências e um mapa eloquente https://thesourceimports.com/newsletter-december-2021/?fbclid=IwAR2xsQYPENKc-VDH14BJ-XuErIvJCpZ8RxxCglTxts64ztbvlzTCV3KGP3o que foram publicados este mês. Vale muito a pena lê-lo e interpretá-lo com detalhe, até porque foi escrito por quem nos está a ver de longe e não distingue as diferenças entre nós e que tantas vezes nos tolhem por estarmos próximos – e não deviam!

Escrever este post é um exercício de gratidão mas não só. A especialidade dos vinhos e do almoço já o mereceriam com justiça, mas há uma perspectiva mais importante, a meu ver, que tem a ver com todos nós. É que o realizar-se este evento significa que há esperança no desenvolvimento e na permanência de gente nova e empresas novas no interior. Cultivar vinhas nas Arribas do Douro, no Planalto Mirandês, em Montalegre, na Terra Quente ou seja onde for nestas bandas tão longe do mar, manter viva a agricultura com as Arribas Wine Company, com a Menina d’Uva, a Wine Indigenus, com todas as empresas de nome individual ou colectivo que têm surgido nas nossas aldeias, vilas e cidades de interior, é muito mais do que um negócio de vinho: é a sustentabilidade económica da região a afirmar-se, base fundamental para que a cultural, social e ambiental se possam afirmar e manter também. O próprio facto de ter decorrido em Bragança e não em Lisboa ou no Porto também é importante. Por tudo isso, na tarde de ontem, quando me dirigi à minha usada carrinha estacionada ao pé da igreja de Santa Maria no castelo, ao olhar para a torre de menagem (soberba e magnífica como nenhuma outra em Portugal!) pensei por momentos na transcendente importância dos copos que acabáramos de beber. Que também por ali já se bebiam no tempo dos Bragançãos, truculentos, feros e indómitos, teimosos em manter-se na sua terra! Ao arrancar e depois fazer a A4 (também lindíssima como nenhuma outra em Portugal!) senti-me sortudo e esperançoso. Frederico e Ricardo, Muito obrigado!!!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

A Alma dos Vinhos de LISBOA The Soul of Wines

Há tempos, em Setembro, comemorando o aniversário da Mãe da Mariana, com missa e cocktail, no Rodízio, o meu cunhado João Ary e eu estivemos a conversar por largos minutos sob uma ramada perfumada de uvas tintas, castelão algumas, talvez moscatel pelo meio de toda a folhagem, anoitecia com luz atlântica. No dia seguinte, a Mariana e eu deixámos o sítio partindo para o nosso destino de Trás-os-Montes mas sem rota prévia, confiados no nosso instinto de aventura e sabor das estradas (sim, as estradas têm sabores, cheiros e cores, despertam aventuras e vontades). Parámos em Mafra, parámos aqui e ali, parámos em frente ao mar na Praia do Ouro a comer croquetes e bifanas e a beber um copo. Depois fomos para o interior, a  caminho das nossas serras, olhos com vontade de voltar um dia ao Oeste de Portugal, por onde o Favónio sopra abundâncias e pólenes, enchendo as velas dos moinhos e rodando as pás das eólicas, ondulando o mar até muito para cá da orla, fazendo-o galgar o Montejunto e Sintra para lá do Tejo. Esse Setembro passou, já foi há três meses. Só que o mês de Setembro é um mês de sortilégio, vindimas e âncoras, não tivesse sido ele o sétimo do ano clássico, remetido para a nona posição (9, número a reter a quem ler o livro a que nos vamos referir) por decisão de imperadores, estando na letra de canções, sous la pluie ou a outra de Bécaud, inesquecível e intemporal… e, por isso, reapareceu como um boomerang saído da bagageira dum carro, há meia dúzia de dias, entregue que me foi pelo Francisco Toscano Rico: quase três quilos de ciência, história, arte, flavour, terroir e beleza, tudo em forma de livro, comestível e muito bebível, trezentas e trinta e cinco páginas em pés de areia, barro, calcário, aluviões e húmus, escritas – que digo eu?! – cantadas em coro de vários naipes mas em que só por si cada cantor, solista afinado, tem a maestria de o fazer a capela porque todos eles afinaram pelo tom fantástico dado pela A Alma dos Vinhos de Lisboa. [1]



Para se ler apropriadamente, tem de se abrir de início uma garrafa de vinho leve, pelo menos de Colares nas partes mais eruditas, apurando num copo o sentido das frases, em mais outro a qualidade das fotografias e ilustrações, noutro ainda – podemos já ir num Bucelas – para a surpresa do que se aprende, conduzidos pelo António Ventura, reconduzidos pelo Vasco d’Avillez no emocionante se non è vero, è ben trovato, a justificar um Premium duma das quintas ou herdades de Arruda, de Alenquer, de Ourém... Já com esse lastro e antes de irmos às aguardentes da Lourinhã, há que espairecer um pouco pelas praias, pelas salas de museus e pontos de interesse, dançar em arraiais e subir e descer as ruas de Lisboa, inspirar ar e luz e deixar actuar a absorção dos doces e receitas – uma completa folie! – para nos capacitar a não deixarmos nenhuma página por ver, digo, nenhuma DO por provar! Sim, que se é já uma verdade indesmentível, a de que em Portugal pode haver todo o Mundo em vinhos, na região de Lisboa, na alma dos vinhos da Região de Lisboa, há quase toda a História do vinho de Portugal! Não sou eu quem o diz, são as testemunhas convocadas, além dos que já mencionei: José Bento dos Santos, Patrícia Serrado, João Valente, João Pedro Rato, Ricardo Bravo, Ricardo Junqueira, André Teodoro, Andrea Ebert, Sara Quaresma Capitão, Florbela Baptista, António Alexandre, João Rodrigues, João Simões, José Avillez, Miguel Laffan, Paulo Morais, Pedro Mendes, Sancho Esteves, Tiago Velez.

O livro é um monumento esteticamente bem conseguido e testemunho justo da região: setenta produtores de vinho dão pretexto e vontade para umas centenas de copos ao longo do tempo que se quiser e pelo espaço que se preferir. E podemos revisitar todos, não nos ficarmos por uma primeira vez, já que o tema pode ser glosado em rimas várias e interpretado em tocata e fuga, sinfonicamente ou em música ligeira! Para se ser fiel à matéria e argumentar devidamente, teríamos de escrever um livro a propósito deste livro. Mais vale gastar o tempo a sorvê-lo! Seria tão bom que um dia a Família e Amigos pudessem experimentar dos vinhos de Lisboa em série e em festa, explicados e bebidos… pelo que seria interessante que a minha Prima Beni, na Picanceira, se lembrasse de organizar uma tremenda prova dançante, memorável mas que, ao mesmo tempo, nos fizesse esquecer, pelo menos por um instante, estes tempos complicados que vivemos! Não é por acaso que tal lembrança ocorre: é que o subtítulo deste tomo de enoturismo da Região de Lisboa exprime elegantemente que Entre o mar e as serras há um território vinhateiro a descobrir, a provar e a ficar.

Meu caro Francisco Toscano Rico, bem haja por nos recordar, quase nas festas de Dezembro e de Ano Novo, que a surpresa, a boa surpresa, pode sempre estar onde menos a suspeitamos! Parabéns!                        



[1] A Alma dos Vinhos de Lisboa The Soul of Wines, gestor de projecto André Teodoro e coordenação de Patrícia Serrado, textos de Francisco Toscano Rico, António Ventura, João Valente, João Bento dos Santos, Patrícia Serrado e Vasco d’Avillez, edição da CVR Lisboa, Julho 2021, ISBN 978-989-33-2080-8. 

terça-feira, 23 de novembro de 2021

AZEITE 3. Visitas aos lagares

Passar nos lagares, nessas noites frias ou de invernada que encharcavam de alpechim o empedrado e faziam poças com tonalidades à luz ténue da lâmpada da gordurosa e manchada porta de entrada, era bem mais do que um ritual de cumprimentos: dentro, estava-se num conforto húmido e quente, cheiro agradável a azeitona, azeite e lume. Logo à direita, a caldeira em que ardia baga continuamente e se aquecia a água que circulava pelas batedeiras e demais elementos, o barulho e o movimento encadeado de todos em grande azáfama, em contraste com a noite de fora, eram um pulsar de vida na estação mais fria do ano e às horas mais mortas da noite. Esses lagares, ainda de prensas, eram uma evolução tecnológica que já vinha do século XIX, accionados, primeiro, a vapor, depois, a diesel, finalmente, a electricidade, com um motor que gerava uma força rotativa comunicada a um veio de transmissão por uma correia e que deste, por mais outras, fazia funcionar todos os mecanismos que lavavam a azeitona, a moíam, batiam a massa e a espalhavam nos capachos, moviam os êmbolos da prensa de Pascal, bombavam os óleos e águas para o decantador e as centrífugas de onde, finalmente, escorria azeite para o depósito da balança. Nalguns, um dínamo, que também tomava a força duma correia a que se aplicava um giz para que o atrito se mantivesse, gerava electricidade que produzia a luz em grandes lâmpadas de incandescência, acesas sob reflectores de esmalte. Que os homens precisavam delas: para iluminar as pazadas de azeitona tiradas das tulhas e despejadas no tanque de as lavar, no sem-fim ou directamente na tina das galgas; para vigiar as massas e as espalhar nos capachos, sobrepor estes, levá-los de carrinho para as prensas onde ficavam a ser espremidos e a escorrer água e azeite. Quando chegava ao fim o aperto da pilha de capachos, e deles já não saía gota, o grande êmbolo descia, o carrinho era levado para ao pé duma porta e, um a um, como se fosse um separador de bolachas, um rapaz pegava, sacudia, com uma espátula soltava a baga para que o capacho voltasse a ir para mais uma pilha a que se punha a massa já batida. Era um movimento contínuo que durava todo o tempo, ininterrupto, apenas quebrado por uma avaria, por vezes mínima mas que fazia parar todo o lagar, suscitando urgência e, por isso, numa parede, em tábuas desenhadas com os seus perfis, as ferramentas de manutenções e consertos estavam bem visíveis como se fossem armas preparadas para acorrer a uma guerra. À esquerda da entrada, num compartimento com uma janela quadriculada de vidros manchados, uma escrivaninha de pé tinha um livro, blocos de guias e papéis, calendário na parede, untuoso e com rabiscos e notas, de cuja porta aberta se avistava, permanentemente, a balança do azeite. Ao lado desta, numa ardósia, riscos e traços deixavam contar ao longe a cadência dos quilos dourados e verdes passados ao longo da jornada. Durante o dia era frequente cirandarem por ali também os donos das azeitonas para azeite à maquia, tendo-as pesado na balança da entrada, ajudado a descarregar as sacas nas tulhas, deitando o olho como se fossem capazes, por misteriosa sagacidade, de impedir as flutuações de rendimento que todo o percurso entre as duas balanças, a das azeitonas e a do azeite, poderia permitir ao lagareiro menos escrupuloso ganhar mais do que a percentagem apalavrada. Que ganhava. Ou por uma fuga que ia parar aos infernos e cujos olhos de azeite seriam depois recolhidos, ou por uma partida de massa que ficara travada no meio da distração de reparar um desarranjo duma correia partida, ou pela água que correra quente demais e no decantador se tinham trocado no abrir das torneiras ou, grosseiramente, por uma saca de azeitona que ficara perdida no meio do monte de serapilheiras. Mas tudo de boa-fé. Porque ali no canto, à direita da porta de entrada, junto à caldeira onde ardia baga continuamente, torrava-se o pão para experimentar o azeite novo cujas qualidades se não poupavam a ser repetidas ao dono das azeitonas, comia-se em lascas ou assava-se o bacalhau, cozia-se o polvo, as batatas, a couve, regados duma almotolia de lata e decorados com muito alho, em pratos de esmalte, canecas de asa com vinho também novo, copos baços com aguardente que, naquela atmosfera, parecia nem ter álcool.

Muitos destes lagares têm-se modernizado, outros fecharam, a maioria evoluiu para lagares de ciclo contínuo. Quase todos eles com uma falha enorme: não têm um local, adequado aos tempos de hoje, cumprindo haccp e demais normas exigíveis, para que os visitantes possam disfrutar de provas de azeite como quem vai a uma adega disfrutar provas de mosto, possam adquirir conhecimento, possam apreciar e dar o devido valor a uma das mais antigas e tradicionais agro-indústrias de Portugal. Um local em que se possa, numa deslocação de fim de semana ou numa visita de trabalho, trincar uma inesquecível torrada com azeite novo!  

Sem dúvida alguma que uma das melhores torradas que comi na vida já há umas boas três décadas ou mais – que saudades e vontade de a repetir, mesmo que também repetisse ficar com uma das botas encharcadas por não termos visto bem a valeta, ao entrarmos! – foi uma de centeio, com azeite cru e alho, com uma lasca desfiada de bacalhau seco, com vinho do da Mina tirado dum garrafão, rescendente e escorregadio, num anoitecer frio e de vento agreste que batia muito naquele lagar de Castelãos, nesse ano trazido por conta do nosso amigo António Vila Franca!

 

domingo, 7 de novembro de 2021

AZEITE 2. O preço das azeitonas

Em Elvas, em Abrantes, em Torres Novas, em Montemor ou em Évora e noutras cidades e vilas do Sul, havia em cada uma um ponto fulcral de discussão e acerto. Em Trás-os-Montes, há meio século, era no círculo do Mira, do Paulino, da Caixa Geral de Depósitos e das esquinas do pequeno largo da Pensão Praia, em Mirandela, com um vai-e-vem de atravessar a rua no meio do trânsito (passavam ali mais de metade dos veículos do Distrito!), que entre lavradores, negociantes, informadores do Cachão, candongueiros, chapéus, apertos de mão e samarras, ao frio, vozes e olhares, sob sombreiros abertos se a chuva insistia, se fazia, nas últimas feiras do ano, definitivamente na de 23 de Dezembro, o preço da azeitona da Terra Quente. Os vidros embaciavam e o fumo do tabaco, misturado com o vapor das máquinas de café, davam uma atmosfera de lagar ao Mira e ao Paulino, a que as botas acrescentavam o cheiro. À mesa ou em pé, ao longo da manhã, fechavam-se negócios, com argumentos da funda que constava que já tinham dado os bagos dos olivais de S. Pedro ou dos do Cabral de Guribanes, que em Abreiro isto ou na Torre aquilo, ou com mitos de compradores fantasma. Havia alguns pequenos lagares que já moíam desde a Santa Catarina e as filas para descarregar nas Cooperativas e no Cachão já se iam formando no seu ritual anual (que com estas o preço era outro, o rendimento só no fim da safra se determinava por médias e os escudos e tostões só eram fixos quando o azeite saía, às vezes mêses após, podendo os lavradores por conta ir levantando produtos para grangeio ou alguma importância para despesas prementes).

Com os lagareiros, o dinheiro começava logo a girar. Em Macedo havia dois, três e quatro preços diferentes, conforme: o Cóque adiantava, às vezes ainda antes do Natal, simpático, em preços fixos por baixo, em notas, conversadas no Café Central, sobre olivais de que sabia os rendimentos de memória de campanhas passadas; o Artur Moreno era mais circunspecto e, até, quase secreto nos complexos negócios de acertos de contas para os quais a azeitona era apenas o lastro ou a garantia; os de Castelãos, de Chacim, dos Olmos, de Lagoa, de Vinhas, de Peredo, do Lombo, de Morais, de Talhas, dos Cortiços, tantos outros, valiam-se da premência dalguns proprietários em traduzir em metálico a sua melhor azeitona, levando a outra para as tulhas das Cooperativas ou do Cachão. E notava-se que o dinheiro já corria em sentido inverso ao do azeite quando a afluência e o tom ficava mais animado nas vozes no Germano, no Flórida ou no Tótó, no Campos de Vila Flor, no Saldanha de Peredo ou no Montemel em Macedo. Coisa algo diferente mas também parecida era o que se passava em Alfândega, em Moncorvo, em Freixo, em Mogadouro, onde os primeiros valores eram sempre díspares por causa dos negócios em grande de casas maiores mas, depois, ao terminar o ano, vinha o diapasão da feira de ano, fazendo eco no Montanha ou no Central de Moncorvo: em Mirandela corre a tanto! E, a partir daí, o valor da safra deixava a discussão dos lavradores e passava mais para a dos azeiteiros e negociantes de grosso trato. 

Passava para estes, com o lado divertido ou por vezes dramático que criava histórias e lendas de negócios, tão abundantemente bem sucedidos, que a euforia os levava a escoarem-se nos casinos de Espinho ou da Póvoa ou com pasodobles e tangos, dançados com espanholas em Verín, em Vigo… que não começavam ao acaso: havia anzóis com engodo para fisgar estes peixes mais graúdos quando em trânsito na ronceira Nacional 15, a caminho de Rio Tinto, colocados expressamente em restaurantes já para lá do Marão, em Amarante ou na Lixa, lábios pintados e olhar fulminante, amostras em que só um truta muito seguro de si não deixaria de trincar. E ainda os negócios mais discretos e rendosos dos carregamentos de bidons de 200 litros, às dezenas e centenas, que atravessavam a fronteira miraculosamente invisíveis, em camions que, jurados não ter saído de casa em Macedo nem de nenhum armazém de Mirandela ou de Rebordelo ou das Lamas, tinham feito meia dúzia de horas de quilómetros cobertos de oleados verdes, com as cargas saldadas em Benavente. O câmbio da peseta era estável e, por isso, a repercussão do preço da feira de Mirandela era verdadeiramente internacional. Não por acaso o velho Granjo, meu amigo, em Macedo, e outros em Mirandela, tinham sempre notas do Banco de España disponíveis para as passar, gordos maços nos bolsos de que as contavam, uma a uma, e no-las davam para a mão a troco de escudos, quando as precisávamos para ir a Zamora às tábuas ou aos caramelos. 

Estivesse a chover ou tivesse caído a mais severa geada, houvesse temporal ou fosse uma manhã de sol de Inverno, a feira de ano dos 23 de Dezembro em Mirandela era infalível para os lavradores, fossem eles de Vale de Asnes ou de Vale Benfeito, de Valbom ou da Bouça, de Grijó ou das Múrias, de Suçães ou de Alvites, de Abambres ou Lamalonga, de Ala ou Vila Flor, de todo o lado: a convergência unânime na vila do Tua, nesse dia, traduzia o tangível valor das azeitonas no seu preço em dinheiro,  escasso. 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

AZEITE 1. As lonas das azeitonas

Um dos cheiros guardados da minha infância nasceu no abrir da arca das lonas de serapilheira, um cheiro seco e doce que anunciava azáfama e trabalho heróico: iniciava-se a apanha da azeitona. Basta fechar os olhos e inspirar, perdura ainda. Estou a ver o senhor Maximino de Grijó, em pé, junto a meu Pai, a ouvir as últimas instruções, sob a varanda, e depois todo o rancho a partir para o Olival do Lameirão, olhando o céu, perscrutando as nuvens, carregado de varas de castanho e paus de varejo, sobressaindo o vareiro para as oliveiras mais altas, rolos de sacas e lonas, cestos de verga de pôr ao braço e canastras maiores, que uns levavam viradas sobre a cabeça. Muitas vezes fui com eles e experimentei o sentir os dedos hirtos no regelo dos dias de geada a pegar com esforço e dor em cada bago, o peso do balanço que dar à vara, certo, regulado e travado para não ferir demais a oliveira, o correr para baixo duma árvore maior se a bátega aumentava e alagava tudo, costas a gelar com a água. Parava-se para um pão com toucinho salgado e bolos de bacalhau, café de cevada quente ou vinho em caneca, tirado duma cabaça, acesa uma fogueira de guiços juntados, cujo fumo morno era um consolo e secava aventais e xailes. Que bem sabiam então uns figos secos, umas nozes ou umas rodelas da chouriça assada com pão de centeio! O orgulho do grupo e promessa de dia pago ia ficando aqui e ali, sacas cheias de madurais, verdeais, cobrançosas e santulhanas, entremeadas com as galegas das oliveiras grandes, com as negrinhas mais esmagáveis, mistura de cores e tamanhos, recolhidas ao longo do regresso num carro de bois que nos acompanhava. Seriam ainda descarregadas numa tarde de sol e vento frio, num monte, no qual se cravava uma pá de madeira que as atirava ao ar com exímia pontaria, indo cair adiante, sobre as lonas, deixando nesse voo ficar para trás as folhas, e sendo novamente ensacadas apenas as azeitonas, atadas com baraços de sisal por duas mulheres mais possantes que as passavam aos rapazes mais expeditos, a pô-las de novo no carro que as traria para o cabanal a aguardar a vez de as levar ao lagar. Bojudas, as sacas remendadas e manchadas tinham alguns dizeres: café de Angola, qualquer coisa Alcácer, qualquer coisa Brasil, uma delas a palavra Farinha já mal distinta num tom desvanecido.


Esse cheiro guardado da infância das lonas e sacas da azeitona, quase todas de serapilheira marcada com AC ou MC (as letras das iniciais do meu Avô e do meu Pai), uma ou outra ainda, mais remendada, de estopa com S (de Sousa, da casa das minhas Tias e do meu Bisavô), esse cheiro, digo, chega até mim como um perfume dum tempo difícil e bom (porque os tempos podem ser difíceis mas bons), de ritmo marcado pelas culturas do ano em que a da azeitona era uma das nobres! Essas lonas e sacas saíam das arcas lavadas e secas, depressa se manchavam com o trabalho, a terra, a chuva, as azeitonas esmagadas. Rasgavam-se e eram logo remendadas com fio-de-norte e agulha grossa que também refazia bainhas nas pontas esfiapadas. Aguentavam todos os tratos durante a apanha da azeitona (e uma delas iria servir para cobertura duma tenda que eu montara no quintal, qual Baden-Powell, com uma armação de choupo e freixo de galhos tirados do sequeiro!). Aguentavam tudo e que pena tenho de as não ter com as suas histórias, remendos eloquentes, testemunhos de fabrico duma economia circular que já o era avant-la-lettre, memória de civilização e também duns namoros que se pressentiam quando ficavam a secar, já no fim, confortáveis sobre a palha e o feno guardados no palheiro. Logo que em Fevereiro ou Março vinham uns dias de sol firme com manhãs de geada, eram levadas para o tanque da horta de “lá-detrás” e lavadas com sabão, passadas por água, postas a escorrer, depois suspensas no longo arame de pendurar a roupa, esticado entre o freixo, olmo grande e a catalpa do quintal. Logo que secas, dobravam-se e ainda esperavam uns dias, ou na cozinha, ou já na despensa em cima da vasta arca do grão (centeio e trigo, que cheiro tão bom, também!) antes de irem para a sua. De onde voltavam a sair em dias quentes de Maio ou Junho, se lhes reavivavam as letras com tinta vermelha, se espairecia algum mofo de guardado, se preparavam, mas poucas, para quando surgisse terem de ir às nozes ou às amêndoas, também alguns dos seus dias de glória, completados pela honra destes frutos em cima de si secarem, ao sol no chão do quintal ou no telhado de zinco, aqui a acompanhar as ameixas.

Guardei sempre o cheiro das lonas como um dos cheiros da minha infância. Pelo seu carácter, pelo seu significado, por ser tão bom! Um cheiro de trabalho e dificuldade mas também um cheiro de satisfação e abundância. Um cheiro de alegria e felicidade. Um cheiro de vida. Um perfume.

Hoje o azeite já nada tem que ver com o cheiro destas lonas mas tem ainda muito de si: o de permanecer na memória com o brilho das coisas dignas de permanecer na memória. E se este cheiro vem de tão longe até ao teclado do meu computador, é porque dele também se faz a luz que o azeite, ao arder desde há milénios de civilização, tem espairado sobre nós. De forma doce e seca, brilhante, como quem abre as arcas de guardar lonas e sacas de apanhar azeitonas com o mesmo encanto e expectativa de quem puxa o lustro à lâmpada do génio de Bagdad. No dia de começar. Para a apanha das azeitonas da nossa vida. Doces, secas, cheias de luz.