CONCERTO EM ACORDES DE NONA
VAI COMEÇAR
Libreto na mão.
Vozes, tosses, cadeiras,
Anarquia de sons.
Batuta.
Breve silêncio.
Nota contínua, emoção.
Arrebatamento, sentimento.
Tristeza, alegria, as duas faces de um
poliedro feito de acordes.
Embarcar numa tormenta, sonhada, de
claves, de linhas, de notas,
Antecipar, já sentado,
Voar de olhos fechados,
Alado nas pautas.
Pautas que batem suavemente,
A planar para o horizonte.
Movimento de ritmos, de compassos, de
tempos.
Harmonia de sons.
Um imenso empolgar do coração.
Schiu…
Expectativa.
Braços abertos.
Vai começar.
PRIMEIRA PARTE
PRIMEIRO ANDAMENTO
Ouve-se música.
Nitidamente.
É música, de certeza!
Será jazz, atrás daquela porta?
(Dúvida:
De que foi feito esse som,
Que fez com que a terra não seja muda,
Vento, ondas, correntes, vulcões de
espanto,
Montanhas erguendo-se em convulsão,
- De que seria esse som?
Teria sido jazz?)
Rumor verde de folhas,
Rumor quente de folhas,
Rumor húmido de folhas na chuva intensa,
Rumor seco de folhas rubras em
torvelinho,
- De que seria esse som?
Teria sido jazz?
Zumbido de insecto,
Bater de casco,
Brama de macho a chamar por fêmea,
Berro de parto, vagido de leite,
-
De que seria esse som?
Teria sido jazz?
Talvez jazz não fosse, exactamente jazz…
Mas ao ouvir
Clic de ramo (um ramo a estalar),
Asa de ave, num roçar suave,
Voz de mulher, a cantar,
(que arrepio, tão suave, tão bom, tão
forte, tão tudo)
- e logo um chiar de melodia,
De porta a ranger… iiieeehhh,
Que ao abri-la se sente
Vento, ondas, correntes, vulcões de
espanto,
Montanhas erguendo-se em convulsão,
E uma emoção tão boa, tão suave, tão
forte, tão tudo
Que só pode ser jazz!
Só pode ter sido jazz!
Atrás desta porta
A fazer – a soar!
Com que a terra não só não seja muda
Mas que seja em si uma mulher,
Bonita de ver, de ouvir, de tudo.
Um arrepio,
Tão suave, tão forte, tão tudo…
Certeza:
Jazz, atrás daquela porta!
OS SONS DA NOITE
Acordei de noite
a ouvir os pingos no telhado.
Acordei de noite
A ouvir o vento nas paredes.
Acordei de noite
A ouvir a chuva a cair das telhas dos
beirados.
Acordei de noite
A ouvir o vento nas árvores do quintal.
Acordei de noite
A ouvir as frinchas a brincar com o ar.
Acordei de noite
a ouvir o som grave do temporal.
Acordei de noite.
Que é?
Quem é?
Anda aí alguém?
Não tenhas medo, meu amor:
São só pingos de água,
Fios de chuva no beiral,
O vento que hoje veio ao quintal.
Não tenhas medo, meu amor.
Eu tenho-o por ti.
Eu acordei para ouvir o telhado,
Acordei para ouvir as paredes,
Acordei para ouvir as telhas, os
beirados,
Acordei para ouvir as árvores sibilar,
Para ouvir o ar a passar nas frinchas,
Acordei para o temporal.
Para que tu durmas, meu amor, ao pé de
mim.
Para que tu durmas.
Dorme.
Não acordes de noite.
Eu acordo por ti,
Ouço por ti os primeiros pingos no
telhado,
O vento nas paredes,
A chuva nas telhas, nos beirados,
O vento nas árvores do quintal,
As frinchas a brincar com o ar,
O som grave do temporal.
Eu ouço por ti.
Dorme.
Como gosto de te ver dormir ao pé de
mim!
Enquanto tu ouves,
Num sono tão embalado,
A música de um anjo – de certeza o meu!
Que o teu está comigo,
A escutar comigo,
A velar por ti,
Desde que ambos ouvimos
No meio da noite,
Os primeiros pingos no telhado.
LAUDES –
DOMINE, Imensa
Laudes.
Bronze.
Corredor imenso. Eco.
Ruído de chave na fechadura,
Passos de alguém,
Mais passos de alguém.
Ranger de porta de gonzos,
Trinco de madeira,
Deslizar de pedrês,
Roçar de tecidos,
Tilintar de chaveiro,
Respirar ofegante,
Ladrilho que bate sob um passo,
Afastar de vulto,
Suspiro,
Sineta que tine,
Apressar de sandálias.
Corredor imenso. Eco.
Ruídos de chaves em fechaduras,
Ranger de portas de gonzos,
Trincos de madeira,
Ladrilhos que batem sob os passos,
Corredor imenso. Eco.
Porta que bate.
Silêncio.
Corredor imenso. Eco.
Canto imenso.
Breve solitário.
Uníssono som, imenso,
Perfurando o tempo,
Imensidão:
Domine, labia mea aperies!
Eco.
ANDANTE
Andante presto.
Pressa de fuga,
Oboés em contraponto:
Notas cruzadas por toda a avenida,
Penduradas nas árvores, nos candeeiros,
nos néons.
- Quem se atreve a inverter o sentido,
Servir como herói numa terra tão árida,
Fazer música sobre os gemidos?
Andante presto.
Gemidos breves,
Breves da pressa,
Calcados sobre passeios
Por saltos altos,
Notas soltas,
Crescendo do chão,
Som de convite sob o tacão?
Presto, prestíssimo.
Pressa de fuga,
Oboés em contraponto,
Notas cantadas por toda a avenida,
Carros passando em baixo contínuo,
Estridências ferindo o ouvido
Onde ecoam gemidos
Breves,
Obsessivos,
Cruzados por toda a avenida
Em contraponto com passos
Que soltam,
Calcados sob tacões de pressa,
Saias de captar atenções,
Notas puras de oboé
Decantadas por clarinete.
Como herói em mar,
Contra o sentido,
Contra a corrente.
A lutar pela vida.
Invertendo o sentido,
Cheio de pressa,
De pressa de fuga.
Vamos?
DESTINO, Ludwig
I
De súbito, as madeiras:
Num sopro, o Destino!
(como se as madeiras pudessem ter dado
um sopro,
de vendaval,
dos de nos levar ao Destino…)
Mas nós ouvimos um sopro de vendaval!
Bater três vezes,
Acentuar ainda uma quarta,
Cadência em eco,
Cadência de terra em terra,
Pelos quatro cantos do mundo,
Pelos quatro cantos da desilusão.
Ó Heiligenstadt! Ó Viena! Ó Bona! Ó
Paris, maldita!
Tricolor esfarrapado, caixa de Pandora!
Porque não ouço aquele doce som?
Schiu!
Onde pára a Esperança?
Pandora, dá-me a Esperança, se também me
deste o resto!
De súbito, as madeiras, outra vez.
Bate três vezes, o Destino. Será o
quarto, o bater da Esperança?
Mais uma vez, outra e outra,
Contraponto feito de mim, de cordas, das
madeiras, dos metais…
Despejai-vos! Despejai-vos todos!
Timbales!
Oboé de encanto,
Que te mantiveste por mim
No silêncio dos outros…
Ah! Aí estão de novo…
Bate três vezes, o Destino.
II
Schiu! Deixem-me ouvir!
Olha como vem ao meu encontro,
Suavemente, tão manso,
Outra vez a bater à porta…
Destino, és tu?
Não pareces o de há pouco:
Trazes-me a Esperança?
Fagote, oboé, marcha de quem vai
cansado,
Agarrado à vida tão só porque a vida se
lhe agarrou,
- e porque eu quis! –
Assobio trauteado, iludir de Destino,
Baixos e contrabaixos
A esconderem as vezes que o Destino
bate.
III
Scherzo:
Caldeirão mágico!
Harpejo em Dó menor.
Mistura alquímica.
Que me pergunta, o Destino?
Eu não quero perguntas, quero respostas!
Quero misturar toda a poção,
Fazer magia,
Esconjurar sombras,
Fazer surgir uma nau que voe,
Desfraldar velas.
Onde está a Esperança?
Fecha-te, caixa!
Faz desaparecer Destinos não convidados!
Timbales, dai-me um som de mistério
Que convoque ondas
Que convoque o vento,
Dai-mo!
IV
Apoteose escondida em mim
Forçarei o Destino
A dar luz
A sufocar Pandora
A exultar de júbilo
- de júbilo de drama vencido!
Vem, Destino, vem passo a passo
Vem de mansinho ou de rompante
Despejar-te em mim, intenso, exultante,
Para que eu, armado de sonhos, de
visões, de compassos,
De claves e ritmos insuspeitos
Possa esperar-te,
Possa, ouse talvez!,
Sem serenidade
Com um gesto desgrenhado e de louca
visão,
Romântico devir!,
Subjugar-te de génio,
Subjugar-te de encanto.
E surpreender-te
Como se para o Destino eu surpreender
Baste um sopro.
Um sopro de madeiras,
Feitas de vendaval.
Dado de súbito.
De súbito final.
INTERMEZZO
A VIOLA DE EL-REI
(para ler duas vezes, moderato)
Com música espessa e voz pegajosa,
Se foi el-rei ao campo colher flores.
(Ao campo, ali, na Rua Augusta)
Deu com uma fada muito andrajosa
Por quem se derreteu cheio de amores.
– Bom dia, Senhor! – ela entoou.
(surgindo da esquina, a ver se assusta)
A um gesto dele, se calaram os
instrumentos,
Emudeceram as suas vozes os cantores,
E ficou-se a olhar para ela, esses
momentos,
Preso de voz tão mágica que o encantou.
“Como fazer pra não deixar tão doce
instante?”
(“Que olhos tão fortes, cintura tão
fina!”)
Num repente a el-rei lhe veio a
inspiração:
– Toda a vida me tereis ao lado, linda
senhora,
Se me derdes mercê de tal ventura,
Mas para tal haverá uma condição
Que será para os corações uma penhora,
Ser toda a noite, em serenata, minha
constante.
(“Que rei é este, que fala assim?
Dalgum teatro, isto só a mim!”)
– Convosco irei, senhor! – voz de
ternura…
Dizei-me, então, que devo fazer…
– Basta, apenas, prometerdes-me um
condão
De estar sempre pronta e disfarçada
Para ao meu lado como musa permanecer,
Para ao meu lado estardes sempre de
Inverno e Verão.
– Convosco irei, senhor! – voz de
certeza…
Dizei-me, então, vosso desejo.
– Sereis dama, princesa, o que
quiserdes,
Mas sereis também, nas outras horas,
(as dos meus fados, dos meus descantes),
Indo comigo sob o meu braço, serva fiel
e dedicada.
(Juntou-se gente, atiraram euros)
- Será assim, senhor meu rei, como em
vosso pensamento…
E nesse instante ela sumiu com grande
espanto.
Tomando ele, na mão, com que a afagava,
uma viola.
Nova, de som etéreo, de cordas de
firmamento.
A ARCA DE MÚSICA
Numa velha arca, no meio de papéis
ratados,
Apareceu uma folha de música.
Muito antiga, manchada dos anos, de
sangues, de tintas,
Com pautas de quatro linhas, vermelhas,
riscas à mão.
Só de se olhar nela se ouvia o
cantochão,
Forte, profundo, de lentos hinos
cantados,
Ecos nas pedras da abóbada, nas colunas
gémeas dos claustros.
Sons que iluminavam vitrais doutros
tempos de conversão.
Tapando a folha, parava o canto.
Seria feitiço ou coisa de santo,
Sortilégio assim?
Dizia-se que essa velha arca fora um dia,
Tirada do coro, (antes servia de baú de
pergaminhos de músicos),
Relegada para um canto, desprezada!,
Para um canto esquecido da abadia.
Dizia-se que nela um noviço se sentara,
Num ensaio de canto de horas esquecidas,
E se distraíra na surpresa de um perfil
De uma dama que a ouvi-lo se detera.
- De onde vem tão bela voz? Dissera ela.
- Da arca! Respondeu ele, emudecendo.
Ficando roxo de tal presença, preso de
tamanho encanto.
E aflito. Que dizer ou que fugir?!
Mas ficara. E ela, aproximando-se,
acreditando na palavra tonsurada,
Deu alguns passos, olhou para ele e a
abriu.
Um canto celeste então se ouviu,
Em latim, a voz dos anjos que há cá na
terra.
Fugindo, o noviço não mais parou até ao
pátio,
Deixando atrás de si caída a folha.
Ela a tomou, a enrolou e a guardou.
Que ali há bruxa, que ali há demo, que
ali há…
Sufocando, não mais atinou nem com o
canto nem com ela.
Para sempre gago.
Ninguém viu a senhora do perfil,
Nem então, nem nunca mais.
Diziam ao noviço que atarantava:
- Foi visão, foi das horas do jejum,
nada demais!
Mas ele teimava em que não, que em carne
e roupa a vira ali.
E apontava, olhando o coro, de cá de
baixo, com mui temor,
E mui tremor, no braço magro a sair da
estopa.
Levaram-no de braços até lá acima: lá
estava a arca.
Fechada e muda.
Levantaram a tampa pela dobradiça.
Silêncio e pó.
Cheiro de tinta, de ceras de pergaminho.
E então ele, pegando a folha, pautas
escarlates, ali pousada,
Depressa pensou, coisa tão louca!
Que alguém tivera que a trazer, que a
arrecadar.
Fez o gesto de a desenrolar - seria um
cabelo?!
Um hino celeste então se ouviu,
Em latim, a voz dos anjos que há cá na
terra, um canto belo.
Fugiram todos sem mais parar.
(É então que jogral ou bufo pega em
barrete,
Com ele na mão o estende à gente,
Muitos mirones ali à frente,
Sorriso franco e voz de falsete:
Uma moedinha, senhores, uma moedinha…)
E recomeça:
Numa velha arca, no meio de papéis
ratados…
SEGUNDA PARTE
ENTRADA
Ruídos sem forma.
Notas
súbitas no mesmo tom.
Tudo em láááááá.
Batuta na estante.
Breve silêncio.
Clap de palmas.
Vai-vém de maestro.
Suspense. Pausa.
Silêncio.
Uma última tosse.
Som contínuo, acompanhamento de cordas,
madeiras, metais.
Som mais cheio…
Recomeço.
SE EU FOSSE UMA NOTA DE MÚSICA
Se eu fosse uma nota de música
(e porque não hei-de ter sido?
Por que não hei-se ser?)
Gostaria de estar na abertura de
Tannhauser,
No sopro de um clarinete,
No gemido de um violino de Verdi,
Envolto em mistério nos primeiros
acordes da Traviatta,
Gota de água em Carlos Seixas
- de uma lágrima de dama, dançando na
corte!,
Intermmezzo da Rusticana,
Choro de Villa-Lobos,
Pausa antes de um dilúvio de Ludwig
- Ludwig todo ele é dilúvio!
Se eu fosse uma nota de música
(e porque não hei-de ser?)
De certeza estaria na guitarra de um fado,
Na voz de um coro antigo,
Na de uma carpideira sentida.
Se eu fosse uma nota de música
Não sei porque não seria tudo.
Poderia ser mesmo tudo e ao mesmo tempo.
E porque não hei-de ser, uma nota de
música?
GOSTAVA DE IR A MANHATTAN
Gostava de ir a Manhattan
Ouvir música e dançar.
Entrar e sair nas portas,
Das lojas, das galerias, dos museus,
Por onde sai todo o mundo,
Por onde entra toda a gente.
Ir aos prédios que são países,
Subir aos céus que há cá na terra
- Mais altos que a nossa serra.
Gostava de ir contigo,
Pra conversar de Deus, da vida e de
tudo.
Gostava de ir contigo,
Falar de coisas de todos os dias,
Fazê-las arte, sublimes, literatura:
Coisas inesgotáveis,
Apetecidas,
Como Manhattan.
Gostava de ir contigo.
Um dia,
Uma hora,
Qualquer hora
E descobrir-te: ó Destino!
Aí,
Aqui,
Dentro de mim,
Na Broadway – numa cena na Broadway!
Com música,
Com orquestra,
Com saxofones,
Com cantoras, actrizes e bailarinas…
Gostava de ir. A Manhattan.
CORO
Retorno ao transe.
Som cheio, de uma vez.
Arrebatamento.
Vem do chão?
Do ar?
Destas paredes?
Do tecto?
Entrará pelos vitrais?
Por aquelas portas?
Virá daquelas arcadas?
Dos bancos?
Lá de cima, do coro?
Lá do fundo, do portal de entrada?
Serão as velas?
As imagens?
Os altares?
Os retábulos, as colunas, os caixotões
do tecto de masseira?
Derramar-se-á daquele zimbório, no alto
da abóbada?
São estas pessoas que cantam?
São estes acólitos?
São aqueles cantores?
São aqueles padres?
Será de hoje?
Será de dantes?
Será de sempre?
Vem do chão?
Do ar?
Destas paredes?
De lá de cima, do tecto?
Vem do passado?
Vem de dentro, das vozes?
De dentro, da alma?
Vem de Bach.
Virá sempre de Bach.
CONCERTO EM ROCK
Som baixo e pianíssimo.
Flat rock.
Frase de expectativa,
Transe de expectativa.
Adagio descendente.
Modo menor.
Emoção a crescer…
Tristeza a esconder.
Súbito: luzes fortes!
Cascata de acordes de todos os lados.
Electrónica em fluido,
Fogo,
Sons máscara,
Sons inundação.
Rasgam, queimam, partem-se no ar.
Evaporam-se na multidão.
Evapora-se a multidão,
Feita uma, émula de si própria.
De ritmo, de vibração,
Braços no ar, como a deixar escapar os
dedos.
Forças exorcisadas pela música.
Medos exorcisados pela música.
Uníssonos, explosões.
Gritos de euforia e espanto, saltos:
Mais! Mais!
FONTE
Gota a gota, numa velha fonte,
Vertia-se música por uma boca de
Anacreonte.
Raparigas que passavam,
Esvoaçavam!
Mais ágeis que os pássaros que dela
bebiam.
Dançavam de roda em passos pequenos de
pés descalços
- Tiravam os sapatos para se sentirem de
pés no chão –
Feitiço de música que caía, gota a gota,
daquela fonte,
Vertida da boca de bronze,
Inebriando mais que um vinho forte.
Um golo de água – um golo de música! –
que tinha virtudes:
Fazia voar!
Fazia sonhar!
Fazia-as viver, às raparigas que passavam,
A música vertida gota a gota,
Daquela boca,
Da velha fonte.
A UM SOM DESCONHECIDO
Eu pensei que sabia que som fosse este.
Mas não o identifico.
Sei que é de sempre,
Que já existia antes de o comporem,
De o escreverem,
De o orquestrarem.
Já existia, decerto. Muito ouvido,
decerto.
Estaria dentro do útero?
No mar antigo?
Nas tempestades?
Com violinos, sintetizadores e bateria?
Stevie, Stevie, tiraste-o da Bíblia,
corda a corda?
Já o tocariam nos jardins da Babilónia,
Nos palácios do Egipto?
Soprá-lo-iam com trombetas no Coliseu de
Roma?
Nos psaltérios de damas medievas,
Nos cravos barrocos,
Nos pianos românticos,
Nos cabarets de Paris,
No sapateado de Dublin,
Nas guitarras do Bairro Alto e da Alfama
de Lisboa?
Que som é este?
Não é o do mar, nem do vento, nem de
coisas vulgares.
(nem o mar nem o vento são vulgares,
entenda-se!)
Que som é este?
FINALE
Tudo ficou para trás, nada mais resta.
Plateia vazia, conversa breve de
despedida num camarote.
Ficamos as obras que conseguimos ser
Com destroços de tudo o que não fomos.
Há que arrumar, meter nos estojos,
guardar as pautas.
Oh, se houvesse outro sítio para te amar
sem ser no mundo,
Se houvesse uma outra vez!
Tudo ficou para trás, agora.
Já nada mais.
Nada mais.
A não ser esse outro som que nos
acompanha,
Fiel na sua nota muda e presente,
A teimar lembrar-nos – coisa estranha!
Que ele está também aqui…
Que não ficou perdido, razão da
existência,
Que teima uma e ainda outra vez
Como se houvesse outro lugar para o
nosso amor
Sem ser tão imperfeito o deste mundo,
Como se houvesse outra maneira de amar,
Com a mesma orquestra, a mesma pauta, o
mesmo empenho.
Talvez nem tudo, assim, tenha ficado
para trás…
Dá-me a tua mão!
Vamos os dois, certos de termos chegado
aqui,
Nessa outra existência de dimensão
estranha,
Arrebatados por acordes, compassos,
notas stacatto.
Pedir a Deus que foi nosso e será
depois,
Que nos dê uma hora breve, breve que
seja
Junto da sua Eternidade!
Podermos uma outra vez.
Poderemos, nesse tempo sem idade?
Glória de acordes, de sons inauditos!
Porventura não ver, não palpar, não
respirar doces aromas
Mas ouviremos o tempo, o escoar eterno
do tempo.
O que foi nosso, mais urgente.
O que é dos astros, sempre presente.
O que está aqui e não se repete,
O que está nas estrelas, nas galáxias,
nos intermináveis confins.
Suave e forte murmúrio existente no
instante,
Estampido de princípio,
Música que não se faz de espaço,
Que é passado de onde vimos, presente em
que somos, futuro que nos espera.
Música que é só tempo.
Tempo e som.
Escuta! Dá cá a tua mão! Não ouves?!
Esse som, esse som…
ENCORE
HORA
Hora de ir para casa.
Ou para um pub ou um bar.
Trautear a memória, talvez cear.
Por em palavras as emoções,
Discutir frases, discutir sentimentos:
O pós-concerto é sempre de uma euforia íntima,
Depois da música fica sempre uma doce náusea,
O mundo vestido de caleidoscópio.
Ah! Um encore!
Sentamo-nos outra vez.
A orquestra toca solta, palmas mais fáceis.
Acordes familiares de Vivaldi e Strauss.
Público em pé.
Aplausos.
Aplausos ao maestro,
Aplausos aos músicos,
Aplausos à música,
Aplausos ao público?
Aplausos, viagem no tempo,
Dia longínquo em que um compositor escreveu,
Nota a nota, frase a frase,
O motivo destes aplausos.
A música é tempo,
Metrónomo constante,
Pedaço de eternidade,
Forma de se estar em qualquer sítio e em qualquer
idade.
Vamos, vamos! Flores no palco,
Todos em pé com sorrisos e vénias.
Vamos. Sair para o trânsito.
Para a noite, as luzes, os semáforos.
Conquilhas numa esplanada de turistas.
Hora de cear.
Por em palavras as emoções,
Que o pós-concerto é sempre uma euforia íntima,
Uma doce náusea com cerveja ou champagne,
O mundo vestido de caleidoscópio.
Vamos!
Mais tarde
PREMIR DE UM BOTÃO
Primo o botão – e desaba-me uma torrente
de música!
Ar comprimido em frequências,
Desperta paixões de alma, dormentes,
Exaltação íntima pelo som.
Tudo desaba em mim.
Que vibrações misteriosas
De um clic ao cérebro,
De um tempo a outro,
De vidas alheias até à minha,
De vidas passadas até às de agora!
Som de sempre,
Percorre o mundo como se fosse um
fractal,
Senhor do tempo,
Senhor de uma imortalidade,
Senhor do caos.
Som.
Onde dorme quando o não escutamos?
Em que confins se esconde para que não
se perturbe?
Porque surge, intempestivo,
indomesticado, do nada?
Onde está, antes de ser trovão,
Sibilo de vento ou sopro de tubo de
órgão?
Torrente de música,
Paixão da alma,
Pesadelo de Brahms,
Tormento e doçura de Schuman
Mecânico,
Eléctrico,
Natural,
Artificial,
Cerebral…