©Manuel Cardoso
A minha década de todos os possíveis foi a dos anos setenta.
Na faixa de aceleração para a faculdade lia um livro por dia, dos da Colecção Vampiro
ou da Argonauta, e lembro-me de, numa tarde de calor, acompanhando o Carlos
Cordeiro Ferreira aos Vilares da Vilariça, eu ficar nos degraus de cantaria da
casa, à sombra, vale desenrolando-se ao fundo com o bafo quente de Verão,
retirar o livro do bolso das blue-jeans, e começar a lê-lo, enquanto ele foi
com um caseiro dar uma volta às propriedades. Acabei-o já à noite, em casa,
idealizando o seu final como se pudesse ter sido no mesmíssimo vale: A
Última Fome, de John Christopher, numa edição mole da Europa-América,
versão portuguesa de The Death of Grass. A partir desse dia passei a
considerar as batatas num patamar bem acima daquele em que as tinha.
Anos antes, predilecção de brincadeiras de miúdo, nos
trabalhos de se plantarem as batatas no Lameirão – que hoje é um parque de
estacionamento! – junto ao ribeiro, em Macedo, era divertido ir em cima da
grade de alisar a terra, seguro com a mão forte do Henrique Ginja para não me
deixar escorregar o pé, bem agarrado ao pau que na vertical nos servia de prumo
e em baixo engatava a argola da vara que a parelha de machos puxava. Tal como me
era fascinante conduzir a água, com um sacho, vertida da nora engenhosa movida
a burro ou, inovação!, dum motor eléctrico do poço, despejada caudalosamente
numa pequena vala à cabeceira da horta, percorrendo um a um cada rego, que tínhamos
de obstruir logo que o seu percurso chegava à ponta, com uma sachada de terra
empapada, soerguida como um pequeno dique, e mudava-se para outro onde entrava
cheia de vontade, correspondendo à minha emoção. Cheguei a ter um barquinho de
papel a ir por aqueles canais como se estivesse no Nilo e fosse o cesto onde se
escondera Moisés! Quantos fins de tarde ali passei com os tão amigos Irene e Norberto
Silva, o Senhor Silva electricista, cheios de paciência para mim,
explicando coisas, apontando os escaravelhos que tinham vindo da América e que
eu achava bonitos e lógicos porque as batatas tinham vindo também. Eram
apanhadas em dias de safra e canseira, nem todas ao mesmo tempo, porque umas
eram as arran consul, outras as arran banner e outras as kennebec
(aprendi nesse tempo rancônsul, rambana e canibet, está visto!). Depois eram
guardadas no escuro, palha por cima, num dia misterioso polvilhadas com um pó
perigosíssimo que nos impedia de irmos brincar para a loja das batatas (ouvi
sussurros na cozinha de que a mulher do…… se tinha matado com “remédio das
batatas” e pensei que fosse esse pó – só anos mais tarde percebi que tinha sido
com o líquido de pulverizar contra o escaravelho!).
Há centenas de maneiras de comer batatas, mas as que se me
gravaram de infância foram as batatas cozidas, as assadas e as fritas, nas
variantes de rodelas e em palitos, com mais variantes ainda. Os purés! As
palha, do bacalhau à Braz. As do pudim de batata (que era enformado de forma a
parecer um castelo da Disney e em que uma das torres desabava no trajecto, do
tabuleiro com a travessa, entre a cozinha e a sala de jantar). As novas,
cozidas com casca! Todas elas eram batatas e ponto!
Já no Colégio de Cernache (o CAIC dos Jesuítas)
apareciam de vez em quando umas batatas feitas pelo Irmão Leal com pontos
verdes de salsa e cheiro de vinagre, cujo sabor recordo com saudade. O ligeiro
travo ácido do vinagrete misturava-se com a polpa e eu não deixava sobrar
nenhuma.
Nesses anos setenta, a Pilar e eu aprendemos a fazer
tortilhas, com batatas fatiadas com uma pré-cozedura, e saiam-nos sempre bem. Com
cenas cómicas das tentativas de as virarmos como na TV, impulso da frigideira,
splash que nem sempre ficava centrado! Foi por causa do meu Pai e, sobretudo,
por causa da Pilar que eu comecei a ler os livros da Colecção Vampiro e os
outros – eles e a minha Mãe andavam sempre com um para todo o lado, iniciado, e
chegava a discutir-se o caso à mesa, sem revelar desfechos, com a ajuda das
capas crípticas de Cândido Costa Pinto – e sem revelar alguns pormenores mais
tarde muito interessantes, mas que para a minha Mãe, mais puritana, seria
intolerável serem ali desvendados. Nesses livros havia venenos, como os das
nossas batatas, capazes de colocar problemas aos melhores detectives! E comecei
a pensar que este “fruto”, logo a seguir à maçã da Bíblia, seria o mais
importante. Como eram simples, fantásticas e cultas, essas conversas à mesa:
fiquei a saber que nem a Bíblia se refere, alguma vez que seja, a batatas, nem
que estas sejam um fruto: isso sim, um tubérculo, uma forma de caule!
Todo esse mundo novo me foi envolvendo, revelando-se passo a
passo, ordenado com lógica pelo Padre Pinheiro (divertidamente o “Zèquinha”,
para os alunos do tal colégio) nas aulas em que nos deu botânica! Até chegarmos
à tal tarde, anos depois, nos Vilares da Vilariça, a partir da qual as
gramíneas começaram a morrer e as batatas a representar uma forma ficcionada de
esperança e desesperança, a da última fome.
Nesta altura do ano,[1]
a não ser as batatas apátridas vendidas nas grandes superfícies, que vieram de
longe ou estiveram em atmosferas controladas em grandes câmaras, não há batatas
frescas. Temos em casa as do ano passado, mantidas na obscuridade, de que
irrompem rebentos e que, vistas nessa perspectiva, parecem seres de outro
planeta. Ainda ontem, quando descascava uma abóbora para uma sopa, uma dezena
de batatas aguardava sob a torneira do lava-loiça com os seus cabeludos
rebentos, eriçados como se fosse um pelotão de recrutas, e eu olhei-as de lado,
não fossem mover-se e vir estender-me uma radícula adventícia como no filme A Terra em Perigo. É claro que não há como uma batata
nova, cozida com casca, firme na companhia duma sardinha assada ou, então,
cozida de propósito para lá do ponto, ligeiramente calcada com o garfo para a
fender, embebê-la depois com um fio de azeite que se espalhe pela polpa de
amido. Água, batata a sério, sal e azeite, quem disse que a simplicidade não
pode ser gourmet?! Temos imensa sorte,
em Trás-os-Montes, com as nossas batatas! São das melhores. E, então, as daqui
de Latães, vicejando no Urzedo, no Pai-Mouro, na Portela, no Vale Côvo, no
Prado de Cima, no Vale da Gruda, no Lameirão, nas Fontelas, no Carriçal, na
Cortinha do Vale, no Mosqueiro e noutros sítios onde, além do chão antigo, têm
o esmero do trato como se fossem um tesouro que se desenterra na altura certa
como diamantes, são daquelas que em mercado deveriam ser sempre mais caras do
que as outras porque são muito melhores do que as outras! Mesmo estas velhas, que
são de cá, já chegadas a Fevereiro, livres dos grelos, descascadas com cuidado,
cheiradas para selecionar as íntegras, cozidas na água de cozer as carnes, são
a companhia impagável para compor uma tarde de Inverno com uma travessa de
chouriços, tiras da barriga, febras de ave, cubos de alcatra, uma orelha e um
pé de porco que ferveram lentamente!
Na semana passada a Perpétua e o Marco António deixaram-me
entrar na cozinha do restaurante – que cheirava bem! – e deitar o olho às
batatas fritas. Especiais, a fazer lembrar as da antiga Estalagem. Pareceram-me
ser das ágria, das que também se cultivam nas nossas serras e muitas vêm
de Montalegre. São laminadas numa máquina, mergulhadas em água fria e repousam
no frigorífico, imersas, durante horas. Mais umas horas depois, são escorridas
e secas; fritam em azeite e ficam prontas no momento de irem para mesa,
amarelas, encarquilhadas, crocantes qb. Habitualmente, as estupendas carnes
grelhadas são doses grandes demais e sobram. As deliciosas batatas também nos
chegam à mesa em doses enormes. Costumamos pedir mais.
[1] Este
artigo foi escrito no Inverno e publicado inicialmente no EGGAS, em Fevereiro
de 2023. A fotografia que o acompanha aqui no blogue é duma estampa do “Botânica
Elementar”, de Manuel da Conceição Pires, manual escolar do 3.º ano dos liceus,
1971.