Versão bilingue, em português y en castellano, da comunicação apresentada em Zamora no dia 25.06.2022 no âmbito do XVI Encuentro Duero/Douro.
© Manuel Cardoso
Junho 2022
1.
Com a mundialização e os efeitos da
uniformização cultural promovida pela televisão, pela informação e pela maior
facilidade de transportes, e, sobretudo, com o desaparecimento dos controlos
das fronteiras no espaço europeu e as mais de três décadas que já temos de
livre circulação de pessoas e mercadorias nas estradas que as cruzam, seria de
esperar que o carácter da vida das pessoas que habitam no seu entorno se teria
já fundido de tal modo que estariam apagadas, no dia a dia, todas as
características distintivas dos seus dois mundos, incluindo as alimentares.
Puro engano, pelo menos no que nos toca, na nossa velha fronteira do Douro.
2.
Uma fronteira é um espaço e uma criação mental.
Simplificando: espaço de contacto, de separação, de definição, de comunicação e
de salvaguarda. Numa fronteira, nós avistamos o outro que está do lado
de lá ou veio ao lado de cá, temos uma compreensão do que nos separa e sabemos
as regras de passar essa linha, vontade de o fazer se tal nos der mais
liberdade ou nos fizer cumprir a nossa esperança. O movimento entre os dois
lados duma fronteira sempre se teceu e viveu do fascínio da transgressão, do
conhecer o prazer da diferença, do experimentar o exótico e a excitação do
sentimento de fuga ao nosso dia a dia. Ou da necessidade. Por isso uma
fronteira é, também e ainda, um lugar de encontro.
3.
A fronteira entre Espanha e Portugal no Nordeste
do nosso país, e que confina com a Galiza, Leão e Castela, que dum lado tem
Trás-os-Montes e a Beira e do outro a Sanabria, Aliste, Los Arribes e Ciudad
Rodrigo, metade dela ou quase, formada pelos formidáveis Vales do Douro e do
Águeda, também o do Maçãs, é das mais antigas e estáveis do mundo, passada a
escrito no Tratado de Alcañices em 1297 (EC 1335).
4.
Tendência antiga, por ser um vale, nele
circularam as populações pré-históricas; os Romanos cruzavam-na pela sua XVII
via e restante rede, transversal à memorável Via da Prata; os Judeus, porque
era uma forma de equidistância entre as Cortes de Valladolid e de Lisboa, entre
as quais asseguravam a circulação de informações, de cabedais metálicos e de
sobrevivência; estudantes de Portugal iam cursar a Salamanca, clérigos de Braga e Lamego em direcção a Roma,
a Avinhão e a Trento; exércitos pequenos das nossas lutas, hoje quase
incompreensíveis; por Reis e nobres com as suas mesnadas; por uma rica e
sedutora princesa da Arménia com o seu séquito; pela Princesa Isabel com a sua
corte, para vir desde Aragão ser Rainha e Santa em Portugal; por exércitos
colossais e multinacionais que nos séculos XVIII e XIX, para um lado e para o
outro, um deles comandado por Wellington, no cumprimento das suas missões,
deixaram alguma má memória mas também genes e novidades. Nos séculos XIX e XX,
foi atravessada sobretudo por turistas, emigrantes, políticos, refugiados,
escritores e um grande volume de mercadorias e de contrabando.
5.
A fronteira foi e é, também, local de destino e
não só de passagem: a instalação duma sede de bispado, a Diocese de Miranda, no
século XVI, mesmo sobre as escarpas do Douro, moldou significativamente
mentalidades e hábitos, por mais de dois séculos, assim como teve efeito ainda
hoje detectável uma guarnição militar permanente que aí se aquartelou. E a
construção das barragens hidroeléctricas foi disruptiva do marasmo e do secular
isolamento de populações, impactante tanto do lado espanhol como do português,
no tempo de Franco e de Salazar, tendo havido em 1964, em Bemposta e
Aldeadavila, um encontro entre o Chefe de Estado de Portugal, Américo Thomaz, e
do Generalíssimo Franco para a sua inauguração: esses anos, das décadas de
cinquenta e sessenta, indelevelmente marcaram costumes e hábitos que hoje ainda
se percebem bem na cultura e na geografia destes lugares quase despovoados.
6.
Uma coisa houve em comum a todos, todos, esses
viajantes e autóctones, emigrantes e imigrantes, fossem quem fossem: todos
comeram e beberam na fronteira ou nas suas imediações. Em traços largos,
podemos dizer que, neste lugar recôndito, longe de tudo, em que é difícil
avistar vivalma, desaparecidas que estão, hoje, até as silhuetas inconfundíveis
da Guarda Fiscal ou da Guardia Civil, neste sítio agreste, desolado,
aparentemente isolado e tão só, contactam dois mundos substancialmente
diferentes. Portugal e Espanha? Sem dúvida. Mas muito mais: a civilização, a
história e a vida, diferentes, resultado de dois destinos imensos: do lado de
Portugal o Atlântico, a África e a Ásia, com as sardinhas e o bacalhau, o
arroz, a malagueta, a pimenta, o piri-piri e o louro, a canela, uns ovos
mexidos ou uma omoleta de espargos … do
lado de Espanha o Mediterrâneo e a América, com o polvo, o azeite, o pimentão
doce e o pimento picante, a salsa, o tomate, a tortilha de batatas.
7.
É evidente que tudo isto pode haver hoje de
ambos os lados como coisas em comum vindas da nossa comum ancestralidade e
geografia: o porco e todos os seus derivados, os gados, a caça, os peixes do
rio… mas não é por acaso que, se estivermos sentados numa feira no planalto do
lado português, será fácil aparecer uma belíssima posta de carne mirandesa na
brasa, para se cortar e comer à navalha sobre o pão, enquanto do lado espanhol será
uma riquíssima tábua de presunto e enchidos que, num ápice, fará o chamamento
dos copos. Bem sabemos que também há alheiras e salpicões do lado português,
tal como há chuletas e carrilleras de cerdo, de cordero lechal e de ternera de
Aliste do lado espanhol, mas isso é já entrar noutro nível de descrição que
implica estar de garfo e faca para, por exemplo, experimentar umas
inesquecíveis molejas ou um ímpar butelo com cascas.
8.
O dia a dia da vida de fronteira não é diferente
do dia a dia da vida das aldeias agrárias dum lado e doutro. Pratos e ementas
humildes e autênticos que podem começar por umas sopas de azeite e alho com
bacalhau desfiado e um ovo escalfado, se forem à portuguesa, ou com presunto,
pimentão e ovos, se forem à espanhola. Mas com as diferenças que o progresso
foi introduzindo e com o destino divergente dos sistemas agrários em evolução,
dum lado e doutro, tirado o efeito da mundialização das grandes superfícies que
tudo poem à disposição e em todo o ano, é detectável o fundo rico da
gastronomia desta finisterra. Um dia a dia de frugalidade e parcimónia
entrecortado pelo pantagruélico dos dias de festa comemorativos, em que de tudo
se assa em fornos de lenha seculares ou em grelhas vastas: leitão, cabrito,
vitela, um porco, um boi!
9.
Já não estamos no tempo da vida agrícola feita
ao compasso do homem a pé e das juntas de bois, a alimentação foi deixando de
se fazer no campo, merenda “de seco” com pão, chouriço e uma bota de vinho,
caldeirada se no tempo das segadas. Hoje, a mecanização transformou horários,
apagou rotinas e permite que as refeições sejam feitas quase sempre em casa ou,
para o pessoal de empreitada, nas tascas e pequenos restaurantes. Por isso, o
visitante turista encontra-se, tantas vezes, lado a lado com os trabalhadores
no mesmo balcão a petiscar – nas tapas! – ou a comer os pratos do dia. Os mesmíssimos
que em Lisboa ou em Madrid? Talvez… mas nem por isso a surpresa, a raridade e
os sabores distintos das cañas e do vinho, dos escabeches e da originalidade de
cada bar, deixam de estar à espera de quem quiser ir à aventura descobrir
sabores. Se nos aperitivos em Portugal habitualmente há um resumo de pão e
azeitonas, torradas com azeite, queijos e presunto, já do lado espanhol há um
sortido de cogumelos, tortilha, churros, morros, callos, cristas e pinchos
variadíssimos a acrescentar que, para quem não for avisado, almoça ou janta bastante
e só com tantos petiscos.
10.
Há uma coisa que é inevitável notar: se numa
cidade somos atendidos com o profissionalismo de quem presta o serviço a um
cliente, nas aldeias e pueblos da fronteira, quer dum lado quer doutro, somos
servidos por quem está à espera de decifrar logo, na nossa cara, se apreciamos
o que acabámos de trincar ou de beber. Esse momento é decisivo. Para nós e para
quem nos serve. Porque, a partir daí, uma vez ganha a confiança, pode abrir-se
uma possibilidade imensa de provar coisas que não estão na carta, de
experimentar vinhos sem rótulo (que me desculpem as autoridades económicas e,
por favor!, não usem isto para reprimir essa riqueza cultural e património
histórico!) e receitas proibidas pelo politicamente correcto: os escabeches de
peixinhos do rio ou de perdizes, com vinagres e ervas de alquimia caseira, os
pichones com pimientos, os chichos de vinho de alhos de porco de matança, as
sopas de sangue, os próprios vinhos da casa e os perfumes das bagaceiras, tudo
isso só existindo com autenticidade numa sobrevivência temperada de
clandestinidade e transgressão. Que lhe ampliam os sabores, acrescentados de
emoção, de história, de raízes imemoriais.
11. Mas a nossa visita pode fazer-se sem medos,
apoiados nas gloriosas receitas dos livros sobre cozinha de fronteira de que
damos os links, notavelmente escritos e ilustrados, publicados com a chancela
da Junta de Castilla y León e da Comissão de Coordenação da Região Norte de
Portugal. Que são muitas e excelentes, para provar devagar. Hoje vai-se à
fronteira facilmente e sem pressas, como quem busca em si um destino. Um outro
ritmo, intemporal, já que não há filas para a alfândega. Não é por acaso que já
neste século, do lado português, se estão a instalar freiras trapistas,
contemplativas, num novo convento em Palaçoulo e, do lado espanhol, um dos
maiores investimentos turísticos privados aparece incluído na rede slow food.
Duas formas diferentes de o Homem sentir que não vive só de pão mas de outros
entendimentos do Tempo. É o sentimento que nos fica, dum fim de semana de
deambulação nas aldeias e pueblos da raia. O de que saborear a gastronomia
caleidoscópica que a gente, a história e o espaço ali conservam para nosso
desfrute pode bem ser, com um copo de vinho certo, uma extraordinária forma de
meditação sobre o nosso próprio destino. Tantas vezes desencontrado por Espanha
e Portugal, tantas vezes fundido no amor à terra que nos tem reconciliado, a
terra da raia.
Versão em castelhano:
Gastronomía en la frontera del Río Duero
Manuel
Cardoso
Junio
2022
1. Con los efectos de la
globalización y de la normalización cultural promovida por la televisión, por la
información y por la mayor facilidad de transportes, y, sobre todo, con la
desaparición de los controles en las fronteras en el espacio europeo y las más
de tres décadas que ya tenemos de libre
circulación de personas y mercancías en las estradas que las cruzan, sería de
esperar que el carácter de vida de las personas que viven en su entorno ya se
habría fusionado de tal manera que, en el día a día, todos los rasgos
distintivos de sus dos mundos estarían apagados, incluidos los de la alimentación.
Puro error, al menos en lo que a nosotros respecta en la vieja frontera del
Duero.
2. Una frontera es un límite que
es un espacio y una creación mental. En pocas palabras: espacio de contacto,
separación, definición, comunicación y salvaguardia. En una frontera, vemos al otro
que está del otro lado o vino desde allí, tenemos una comprensión de lo que nos
separa y sabemos las reglas para cruzar esa línea, dispuestos a hacerlo si nos
da más libertad o nos hace que cumplamos nuestra esperanza. El movimiento entre
los dos lados de una frontera siempre se ha tejido y vivido desde la
fascinación de la transgresión, de conocer el placer de la diferencia, de
experimentar lo exótico y la emoción del sentimiento de evasión de nuestra
cotidianidad. O por necesidad. Por eso una frontera es también y sigue siendo
un lugar de encuentro.
3. La frontera entre España y
Portugal en el noreste de nuestro país, que limita con Galicia, León y
Castilla, que tiene de un lado Trás-os-Montes y Beira y del otro Sanabria,
Aliste, Los Arribes y Ciudad Rodrigo, la mitad o casi la mitad, formada por los
formidables valles del Duero y del Águeda, también el Manzanas, es una de las
más antiguas y estables del mundo, consignada en el Tratado de Alcañices de
1297 (EC 1335).
4. Tendencia antigua, por
tratarse de un valle, en él circulaban poblaciones prehistóricas; los romanos
la atravesaban por su vía XVII y el resto de la red, atravesando la memorable
Vía de la Plata; los judíos, porque era una forma de equidistancia entre las
Cortes de Valladolid y Lisboa, entre las que aseguraban la circulación de la
información, los capitales metálicos y la supervivencia; estudiantes de
Portugal fueron a Salamanca, clérigos de Braga y Lamego a Roma, Avignon y
Trento; pequeños ejércitos de nuestras luchas, hoy casi incomprensibles; por
reyes y nobles con sus asignaciones; por una rica y seductora princesa armenia
con su séquito; por la princesa Isabel con su corte, para venir de Aragón para
ser reina y santa en Portugal; por colosales y multinacionales ejércitos que en
los siglos XVIII y XIX, a un lado y al otro, uno de ellos comandado por
Wellington, en el cumplimiento de sus misiones, dejó malos recuerdos pero
también genes y innovaciones. En los siglos XIX y XX fue atravesada
principalmente por turistas, emigrantes, políticos, refugiados, escritores y un
gran volumen de mercancías y contrabando.
5. La frontera fue y es también
un lugar de destino y no sólo un lugar de paso: la instalación de un obispado,
la Diócesis de Miranda, en el siglo XVI, justo en las laderas del Duero, moldeó
significativamente mentalidades y hábitos, por más de dos siglos, al igual que
una guarnición militar permanente que estaba estacionada allí tuvo un efecto
detectable todavía hoy. Y la construcción de las hidroeléctricas interrumpió el
estancamiento y el secular aislamiento de las poblaciones, que repercutió tanto
en el bando español como en el portugués, en tiempos de Franco y Salazar, y en
1964, en Bemposta y Aldeadavila, se produjo un encuentro entre los Jefe del
Estado de Portugal, Américo Thomaz, y el Generalísimo Franco para su inauguración:
aquellos años, de los años cincuenta y sesenta del siglo XX, marcaron de manera
indeleble costumbres y hábitos que aún hoy se entienden bien en la cultura y la
geografía de estos lugares casi despoblados.
6. Una cosa tenían en común
todos, todos, estos viajeros y nativos, emigrantes e inmigrantes, quienesquiera
que fueran: todos comían y bebían en la frontera o en sus inmediaciones. A
grandes rasgos, podemos decir que, en este lugar recóndito, alejado de todo,
donde es difícil ver un alma, faltan incluso las inconfundibles siluetas de la
Guardia Fiscal o de la Guardia Civil, en este agreste, desolado, aparentemente
aislado y solos, entran en contacto con dos mundos sustancialmente diferentes.
¿Portugal y España? Sin duda. Pero mucho más: civilización, historia y vida,
diferente, fruto de dos destinos inmensos: del lado portugués, el Atlántico, la
África y la Asia, con sardinas y bacalao, arroz, guindilla, pimienta, piri-piri
y laurel, canela, revuelto de huevos o tortilla de espárragos… del lado de
España, el Mediterráneo y la América, con pulpo , aceite de oliva, pimientos
dulces y pimientos picantes, perejil, tomates, tortillas de patata.
7. Es evidente que todo esto
puede existir hoy en ambos lados como cosas en común provenientes de nuestra
común ancestralidad y geografía: cerdos y todos sus derivados, ganado vacuno,
caza, pesca de río… pero no es casualidad que, si están sentados en una feria
en la meseta del lado portugués, será fácil ver un hermoso trozo de carne a la
parrilla de Miranda, posta à mirandesa, para cortar y comer con una
navaja en el pan, mientras que en el lado español será una muy rica tabla de
jamón y embutidos que, en un santiamén, hará la llamada de las copas. Bien
sabemos que del lado portugués también hay alheiras y salpicões, así
como del lado español hay chuletas y carrilleras de cerdo, el lechal y la
ternera de Aliste, pero eso ya es entrar en otro nivel de descripción que
implica tener un cuchillo y un tenedor para, por ejemplo, probar unas mollejas
inolvidables o un butelo con vainas secas de judías, único.
8. La vida cotidiana de la
frontera no es diferente de la vida cotidiana de los pueblos agrarios de ambos
lados. Platos y menús humildes y auténticos que pueden empezar con sopas de
aceite y ajo con bacalao desmenuzado y huevo escalfado, si son portuguesas, o
con jamón, pimientos y huevos, si son españolas. Pero con las diferencias que
ha introducido el progreso y con el destino divergente de los sistemas agrarios
en evolución, por ambos lados, si retiramos el efecto de la globalización de
las grandes superficies que hacen que todo esté disponible durante todo el año,
es detectable el rico bagaje de la gastronomía de esta tierra. Un día a día de
frugalidad y economía intercalado con el pantagruélico de las fiestas
conmemorativas, en las que todo se asa en hornos seculares de leña o en amplias
parrillas: cochinillo, cabrito, ternera, un cerdo, ¡un buey!
9. Ya no estamos en la época de
la vida agrícola hecha al ritmo del hombre a pie y la yunta de los bueyes, ya
no se hacía la comida en el campo, almuerzo “seco” con pan, chorizo y bota de
vino, guiso si en tiempo de siega. Hoy, la mecanización ha transformado los horarios,
borrado las rutinas y permite que las comidas se hagan casi siempre en casa o,
para los contratistas, en tabernas y pequeños restaurantes. Por lo tanto, el
visitante turista está, tan a menudo, al lado de los trabajadores en la misma
barra tomando un refrigerio: ¡de tapas! – o comiendo los platos del día. ¿Lo
mismo que en Lisboa o Madrid? Tal vez… pero eso no quita que la sorpresa, la
rareza y los distintos sabores de las cañas y el vino, los adobos y la
originalidad de cada barra, ya no esperen a quienes quieran aventurarse a
descubrir sabores. Si en los entrantes portugueses suele haber un resumen de
pan con aceitunas, tostadas con aceite de oliva, quesos y jamón, en el lado
español hay un surtido de setas, tortillas, churros, morros, callos, crestas y
pinchos de una amplia variedad para añadir que, para quien no esté avisado,
quedará almorzado o cenado, -¡ y mucho! - solo con tantos bocadillos.
10. Hay una cosa que es
inevitable notar: si en una ciudad nos atienden con la profesionalidad de quien
presta un servicio a un cliente, en los pueblos y aldeas de la frontera, de uno
y otro lado, nos atienden esos que están esperando descifrar inmediatamente, en
nuestra cara, si disfrutamos de lo que acabamos de picar o beber. Ese momento
es decisivo. Por nosotros y por los que nos sirven. Porque, a partir de ahí,
una vez que te ganes la confianza, se te puede abrir una posibilidad inmensa de
degustar cosas que no están en la carta, de probar vinos sin etiqueta
(disculpen a las autoridades económicas y por favor no utilicen esto para
reprimir esta riqueza cultural ¡y patrimonio histórico!) y recetas prohibidas
por la corrección política: pescados de río o perdices en escabeche, con
vinagres y hierbas de alquimia caseras, pichones con pimientos, chichos hechos
con ajos de cerdos de matanza, las sopas de sangre, los vinos de la casa y los
perfumes de las aguardientes de orujo, todo ello sólo existiendo con
autenticidad en una supervivencia atemperada por la clandestinidad y la
transgresión. Que amplifican sus sabores, sumados con emoción, historia y
raíces inmemoriales.
11. Pero nuestra visita puede
hacerse sin miedos, apoyada en las gloriosas recetas de los libros de cocina de
frontera a los que damos los enlaces, notablemente escritos e ilustrados,
editados con el sello de la Junta de Castilla y León y la Comisión Coordinadora
de la Región Norte de Portugal. Que son muchas y exquisitas, para degustar
despacio. Hoy vas a la frontera con facilidad y sin prisas, como si buscaras un
destino dentro de ti. Otro ritmo atemporal, ya que no hay colas para las
costumbres. No es casualidad que ya en este siglo, del lado portugués, se
instalen monjas trapenses contemplativas en un nuevo convento en Palaçoulo y,
del lado español, aparezca una de las mayores inversiones turísticas privadas
incluidas en la red del slow food. Dos modos distintos en los que el Hombre
siente que no vive sólo de pan sino de otras comprensiones del Tiempo. Es el
sentimiento que queda, después de un fin de semana de vagar por los pueblos y
aldeas de la frontera. Que la gastronomía caleidoscópica que allí las personas,
la historia y el espacio conservan para nuestro disfrute, bien puede ser, con una
copa del vino adecuado, una forma extraordinaria de meditación sobre nuestro
propio destino. Tantas veces desparejado por España y Portugal, tantas veces
fusionado en el amor a la tierra que nos ha reconciliado, la tierra de la
frontera.
Bibliografia:
Diana Manuela Dos
Santos Marques, A casa rural do Planalto Mirandês em meados do século XX:
espaços de confeção dos alimentos, utensilagem e práticas alimentares. FLUP. 2014.
Links importantes:
https://www.espaciofronteira.eu/wp-content/uploads/2021/08/Recetario_Raya_Receitas_Raia_2021.pdf
https://hermisende.com/wp-content/uploads/2020/06/Recetario-de-la-Raya.pdf
Agradecimentos:
Fernando Bianchi de Aguiar, Mariana Ary, Ana Cristina Ruano, Afonso Ruano,
António Afonso Pimentel, António Picotês, Frederico Machado.