terça-feira, 12 de agosto de 2025

A Padaria e a alma das coisas


Reeditado do EGGAS.


©Manuel Cardoso

 

Quando vivíamos no Bairro Alto, em Lisboa, na Travessa da Espera, a nossa janela da sala, no rés-do-chão, estava a metros, do outro lado da Rua das Gáveas, da loja de vidros quadriculados, azulejos brancos e balcão de mármore sobre uma madeira pintada dum branco-farinha, e vinha de lá, em instantes benfazejos, o hálito envolvente do pão fresco a pedir para fazer parte de nós. 

Na Póvoa do Varzim, há imensos anos, o nosso andar arrendado para férias ficava, nesse Julho e Agosto, por cima duma nuvem encantadora de papo-secos ou moletes, pãezinhos de leite e regueifas, que adivinhávamos nas prateleiras do piso, por baixo, da Padaria Cadeco, esquina transversal à Junqueira, e fizeram as delícias dessas semanas inesquecíveis de praia em que os trincávamos com fiambre que sabia a fiambre, queijo que sabia a queijo e panados com um pão ralado que hoje em dia não há – e até com chocolate, umas tablettes de comacompão, que se compravam aqui e ali, cuja energia de alta tensão ainda agora faz efeito só de as lembrar!

Na nossa vida profissional de veterinário de aldeias, esquadrinhando nos recantos menos prováveis, muitas vezes pudemos surpreender as fornadas de trigos e centeios a entrar ou sair de fornos antigos, acontecimento em que se misturavam os tons vermelhos e escuros do fogo, com os brancos e cinzas das masseiras e das bolas de pão para cozer, embrulhados em toalhas e panos aos quadrados, até ficarem sob a abóbada de barros queimados, encaixada em granitos ancestrais, tons de brasa branca do calor, arrumados com uma pá de madeira, manobrada por sombras negras dos lenços à cabeça das mulheres, que rezavam auspícios ou davam graças, os polvilhavam proferindo orações e imprimindo símbolos na massa ainda mole. 

Tudo tão especial e tão excepcional, mas que, por fazer parte das nossas rotinas, nem nos dávamos nem damos conta, a sério, da sua especialidade e excepcionalidade: o podermos trincar um pão. Deveríamos considerá-lo com muito mais importância:  se já existisse no Paraíso, Adão e Eva não se teriam deixado levar a troco duma simples maçã! Impor-se-lhes-ia, mais alto, o cheiro do pão cozido, algo que lhes saberia doce e muito mais agradável - e os teria mantido na linha!

Esse etéreo perfume, capaz de nos transportar, de imediato nos preencher todos os sentidos, e que nos permite fechar os olhos e abstrair do ruído envolvente. O duma padaria.

Em Macedo, toda a vida o sortilégio acontece a quem passe na rua que vai do jardim para a estação: numa porta discreta, com apenas um passo num degrau, entra-se num território totalmente diferente. O ar morno, pairando nele a farinha com notas de tosta, açúcar, amêndoa e, até, coco, elementos em gradientes leves e ponderados no meio da predominância do de trigos e centeios, com côdeas que apetece logo barrar de manteiga ou comer mesmo assim sem mais, impregna a nossa vontade de um sentimento de dali não sair, jamais. E ver tudo, aspirar tudo. Os pães nos cestos de vime e canastras de castanho, as prateleiras com biscoitos e bolos, a decoração volátil no tempo, a porta aberta para o aposento mágico onde se misturam os ingredientes, levedam as massas e cozem as obras de arte.

Ditas assim mesmo, obras de arte, porque nesta padaria deambulou com afã uma peculiar artista portuguesa, a Túlia Saldanha, que também serviu de mote a um outro post, O termómetro, a pastelaria e a arte.

O ponto do cérebro onde se misturam os déjà vu com reminiscências, saudades e memórias, ganha especial intensidade neste ambiente em que tantas vezes entabulámos conversa com a Clarita e o Eduardo. Como se fosse o aleph de Borges, como se fosse o dia em que tive o meu baptismo de voo num monomotor Cessna descolando da pista de terra de Macedo, com o Eduardo aos comandos, o meu Pai ao lado segurando o meu sobrinho Miguel ao colo porque estava com coqueluche, subindo aos 10000 pés sobre a Serra de Bornes num largo círculo, descendo depois e aterrando com a emoção que me dura até hoje. Que já era lendário na nossa casa, o Eduardo Saldanha, com as histórias que dele se contavam como piloto da Força Aérea Portuguesa, as suas aterragens de emergência a merecer primeiras páginas de jornal, e de quando, no mesmo Cessna, também com o meu Pai ao lado, em passagens razantes e repetidas, bombardearam, com pacotes de manteiga, açúcar e farinha, um medeiro da casa da Maria Isabel Charula, nos Cortiços – tendo ela que mandar desfazer e refazer a meda de palha para poder recolher os ingredientes para o seu saboroso bolo inglês de nozes!

Que, nessa época, era na Padaria do Saldanha que havia uma estante luminosa SPAR com a melhor das manteigas Martins & Rebelo, chocolate Lily’s, farinha Triunfo, refrigerantes, iogurtes a sério e coisas afins. O Eduardo tinha uma peculiar perspectiva das coisas, frases de ironia inteligente, mentalidade matemática aplicada à vida quer quando jogava bilhar com o João Pires e o Luís Madeira, a ouvirem Fausto Papetti ou Sinatra, quer quando zarpava para a neve no seu Porsche, sintonizado para as pistas de ski. “Manel, quem te conhecia com esse cabelo?! Pensei que eras uma das tuas irmãs!” e ambos nos ríamos, eu algo embatucado nos meus catorze ou quinze anos, enquanto ele contava, para um cartucho de papel, os pãezinhos e os biscoitos de amêndoa que eu tinha ido comprar.

O Alcino, irmão do Eduardo, salvou-nos, na nossa pequena cidade, de ficarmos sem a Padaria Macedense, gerida agora pelo seu filho Nuno. Já com redecorações, arranjos, novidades. Sem perder o encanto. 

Como a Brasileira, a Pastelaria Benard, a Nacional ou a Versailhes, em Lisboa, todas lojas antigas por onde passou um sopro de progresso mas sem lhes alterar o carácter nem o conforto dos velhos e novos clientes. Curioso, porque involuntário, mas forçoso e verdadeiro, este associar mental duma padaria com pastelarias de referência! Coisas dos espíritos da farinha!

Dir-me-ão que a Padaria resiste porque tem qualidade e a mantém, desde a época do bolo-rei no Natal para a época dos folares na Páscoa, de todo o ano nos pães, biscoitos e pastéis de nata originais. Nos económicos. Nos cocos. Nos amendoados. Em todos os outros. Resistirá, por isso, sim. 

Mas também por uma razão simples e essencial: a de que é a partir de todos esses produtos, daquelas paredes, dos sacos de papel sobre o balcão, das folhas do vegetal de embrulho, daquelas máquinas e fornos, de todas as pessoas que os manobram, que se desprende e fica a pairar no ar e no tempo o intangível da alma especial das coisas. Intangível que chega até nós pelo cheiro inimitável duma padaria. Que nos arrebata. 

E bem-aventurados os que se deixam arrebatar pelo cheiro duma padaria!       

 

      

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Trás-os-Montes e Valle Pradinhos


Artigo republicado do EGGAS mas editado em Agosto 2025 para este blogue.


Manuel Cardoso

  

Os vinhos de Trás-os-Montes, eruditos pelo seu passado mais do que bimilenário, conjugam-se e declinam-se em diversos modos, tempos, pessoas e números. Têm um fundo comum, um étimo fundacional, uma raiz ancestral, um segredo de carácter: a sua honestidade. 

Nas Arribas do Douro e nas do Sabor, nas aldeias de Talhas e Talhinhas, em Valle Pradinhos, nas Arcas, em Montalegre, em Sobreiró, em Arcossó, em Sonim, em Parada de Infanções, no Lombo ou Jou ou Uva, no Planalto Mirandês ou de Carrazeda, nas encostas e recônditos de Rebordelo ou Sendim ou Valpaços, no Vidago ou em Anelhe, em Vale de Salgueiro ou noutros vales e veigas, como em Veiga de Lila a Quinta de Vale dos Montes, invocando os Távoras de Mirandela e Mogadouro, fazendo sentar à mesa o Palmeirim de Inglaterra ou nela pousando garrafas de Santa Valha, ou da Quinta de Valle Madruga, se pode estar, mesmo sem convite (entre quem é!) numa animada prova com produtores em que tudo se discute menos o seu carácter e genuinidade chãos. Porque todos os sabem.

Tal como todos sabem quando é chegado o momento: desconcertados que estão os nove meses de Inverno e três de Inferno, conhecidos como nunca os terroirs e climats dos diferentes microambientes de cada produtor, o comportamento das castas e a utilização judiciosa das leveduras indígenas e exóticas, está-se no limiar da grande fase, em que o interesse pelos vinhos produzidos na mais desconhecida região de Portugal despertou e valorizar-se-ão sem precedentes. Assim como, vir para os vales e serras e planaltos de Trás-os-Montes produzir, corresponderá à adaptação de muitas marcas aos tumultuosos solavancos do clima.

Normalmente, os vinhos são tecnológicos, com produção de uvas e elaboração científica em que intervêm terroir, climat, leveduras e savoir faire. Normalmente. Porque em Trás-os-Montes há, para além disso, que contar com a mitologia. Não só a dos trasgos na vinha e na adega com tropelias, mas aquela mitologia de que são feitos os sonhos e as memórias, a vontade visionária e o respeito pelo legado. Em que intervém, indissociável e finamente molecular, um herdado amor pela Arte.

De tudo isto há um perdurável e verdadeiro paradigma: os Vinhos de Valle Pradinhos. Tintos, brancos e rosés, ainda uma bagaceira velha que é uma poção mágica capaz de despertar todo o tipo de musas, já há mais de um século que se começaram a derramar neste recanto bucólico e inspirador, descoberto e adquirido por Manoel Pinto de Azevedo numa das suas deambulações à caça, no início do século XX, ainda antes da Primeira Grande Guerra. 

É o DO e IG que mais perto de nossa casa tem as vinhas, facilmente visíveis para quem viaje na A4 (a mais bonita autoestrada de Portugal) a subir do Romeu para a Amendoeira, aterro e viaduto compridos sobre Vale Pradinhos, onde crescem as Riesling, Gewürztraminer, Malvasia Fina, Pinot Noir, Cabernet Sauvignon, Touriga de Portugal, digo, Touriga Nacional, Tinta Amarela, Tinta Roriz, Tinta Gorda, todas parceladas e vindimadas com cuidado, segundo a sua evolução característica, objecto duma criteriosa gestão do calendário, dos tempos de vindima e da sequência de controlo de frio até às demais operações. 

Um campo experimental, existente já há dezenas de anos, esteve na origem de algumas das decisões então tomadas para a plantação dos hectares mais modernos do Casal de Valle Pradinhos, cuja ciência de Bordéus foi infundida por João Nicolau de Almeida e cuja ciência actual, aproximando-se a uma trintena de vindimas, tem tido a vara de condão excepcional de Rui Cunha. Se dizemos vara de condão, é por uma razão de ser não só mitológica: é que há segredos só entendíveis por iniciados com poder para tal, tal como o que está contido nas garrafas The Lost Corner, ou nas Tinta Gorda - Vinhas Velhas, ou nas do rosé e dos brancos, dos mais raros e bem conseguidos vinhos de sempre. 

O fundo científico da operação de vinha e adega tem a marca desses dois protagonistas, mas só foi possível porque antes deles teve luz e orientação dadas pela constelação Pinto de Azevedo, que a si fez agregar muitos outros que ao longo do tempo foram operando as transformações com efeitos e matizes, os matizes das obras de Arte. 

Que não é palavra usada à toa: muitos escritores e artistas tiveram acolhimento nesta constelação nas páginas d’ O Primeiro de Janeiro, jornal portuense, puderam viajar a este interior, então tão longínquo, no já recuado século XX!, e ficar como convidados na extraordinária Estalagem do Caçador, vir a Vale Pradinhos viver na obra que se foi fazendo, comungando nas vidas que se foram cumprindo. 

Ferreira de Castro (que chamava de D.Maria I de Trás-os-Montes e III de Portugal à D. Maria Pinto de Azevedo!), Agustina Bessa-Luís, Jorge Barradas, Graça Morais (que teve por padrinhos de casamento a D. Maria e Júlio Resende, outro dos habitués…), …  todos beberam do Vinho de Vale Pradinhos, avant la lettre, mesmo sem a ciência enológica de hoje.

Assim, não é por acaso que numa das paredes do escritório do Casal de Vale Pradinhos, sob o retrato venerando de Manoel Pinto de Azevedo, está uma pequena, colorida e preciosa aguarela com a sua filha Maria, colocando manualmente rótulos em garrafas, pincel e legenda do genial Guilherme Camarinha: “Porto 20 de Out. de 1968 … como eu estou a ver! – o que se diz uma actividade! – Pudesse eu e aí ia já – a segurar o boião”

Hoje em dia, os rótulos trazem a assinatura da neta de Maria Pinto de Azevedo, a de Maria Antónia Pinto de Azevedo Mascarenhas, design significativo pela mesmíssima característica dos vinhos de Trás-os-Montes: todos os lotes são por si provados e aprovados, para merecerem, com justo orgulho, o seu atestado de honestidade! Santé!        

Muito em breve beberemos aqui, digo, conversaremos aqui, de vinhos ainda secretos ou quase e que irão trazer Trás-os-Montes no seu rótulo, feitos de uvas amadurecidas nas encostas do Sabor, numa aldeia justamente chamada Talhas, chão extraordinário para cepas, e cujo apuro tem sido feito na Adega SMC, Sá Morais Castro. Há escassas semanas foram provados num grupo em que estava uma dona de casa, uma proprietária no Alentejo, um administrador duma das mais importantes cadeias de hotéis em Portugal e eu. Estava calor, Montemor tinha anoitecido, ouviam-se ovelhas, trincávamos salada, moelas, queijos, coisas várias. Os vinhos, ainda de garrafas sem rótulo, ligavam com tudo. Sobretudo connosco. Quando se pensa que já tudo foi feito e inventado em vinhos, não é verdade. Trás-os-Montes tem e irá, cada vez mais, ter, vinhos espectaculares e cheios de carácter - e de novidade! A reservar!   


  

Interessante artigo de José Miguel Dentinho, porque se prende com este nosso, não resistimos a dar aqui o link:

   https://grandesescolhas.com/valle-pradinhos-estorias-e-vinhos-de-um-canto-perdido-em-portugal/?fbclid=IwY2xjawMXt2RleHRuA2FlbQIxMQBicmlkETBlN2laV0pRdFhSOGl0aFdhAR4b1AbuTiBKZPjRDoa4GV6r-3dct5Xn0iDejdCjM6U-oy0Hl2F7A5JEMlJ2Pw_aem_sHayF_ZXlkHgO1zEnjwQMw 

                 

quinta-feira, 17 de julho de 2025

A Aguardente, o vinho e as uvas

 



Este artigo foi originalmente publicado no EGGAS e, agora, o é aqui, revisto.

©Manuel Cardoso

 

Vínica, vitícola ou bagaceira, a aguardente dava e dá para tudo: ferida, inchaço, mal de dentes ou mal de amores, a valer na falta de coragem ou na urgência de afogar remorsos e saudades, para fazer licores, para postura macho na conversa de engate, para o papel vegetal do paio de chocolate, para as rosquilhas, para acompanhar figos secos e nozes no mata-bicho ao amanhecer de dias gélidos, para o cheirinho no café, para o clic de inspiração ao teclar. Para modelar propriedades do vinho e o conservar.

 

Esta última qualidade, que é utilizada em muitos sítios do mundo em muitos vinhos célebres, e noutros, mais raros, de perfil único, de determinadas casas, é à que se recorre, há séculos, para o Vinho do Porto. Historicamente, a aguardente para a aguardentação tem sido destilada dentro e fora da Região Demarcada do Douro, obtida de vinhos e de produtos vitícolas de dentro e fora da RDD. A gestão política das aguardentes, logo desde a criação da Companhia, há quase três séculos,  ocupou uma boa parte das mentes incumbidas de a assegurar nas quantidades, qualidade e preços adequados para o processo da aguardentação. Oficialmente, provinha “das três províncias do Norte” (Douro, Trás-os-Montes e Minho, com esta última a prevalecer) onde a Companhia, aliás, tinha destilarias próprias, e as quintas do Douro produziam também a sua quota-parte, se tivessem instalados ou alugassem os equipamentos próprios para tal, sob a supervisão dos provadores e inspectores oficiais. E também vinha do estrangeiro, por falta dela cá dentro, independentemente das causas desta falta, importações essas que nem sempre correram bem. A contribuição das aguardentes do Centro e do Sul do País para o negócio do Douro veio a ser importantíssima na regulação com que todo o mercado funcionou durante uma boa parte do século XX, tendo havido um brevíssimo período, de 1954 a 1966, em que a Casa do Douro apenas terá utilizado aguardente do Douro no rateio para o benefício dos mostos, quase toda destilada nos seus centros de destilação. Nesta aproximada dúzia de anos (cuja estatística terá de ser revisitada por quem os queira compreender) estará enraizado o argumento de que o Douro se deveria bastar a si próprio, em exclusividade, para destilar toda a aguardente necessária para o benefício, a partir das suas próprias uvas e vinhos.

 

As circunstâncias de mercado em que o mundo económico livre actualmente se movimenta, o custo das uvas duma vindima no Douro (vindima mais difícil e mais cara que noutras regiões), e o facto de que, para fazer um litro de aguardente, são necessários sete litros de vinho, ou mais, em média, tudo isso e uma série de argumentos que aqui não cabem, fazem com que uma hipótese academicamente possível e sedutora (a de que o Douro se baste a si próprio em aguardente para o Vinho do Porto) não passe de ser uma hipótese. Se bem que, no Douro, hoje, a destilação de aguardente vínica e vitícola de base 77% ultrapasse já os 2 500 000 litros e seja exequível aumentar este número para muitíssimo mais, anualmente. Por isso essa hipótese poderia ser real para determinadas categorias de Vinho do Porto.  

 

Não são precisas mais normas nem legislação, para além das que constam no site do IVDP, para que no Douro possa haver os Vinhos do Porto aguardentados exclusivamente com aguardente do Douro, destilada a partir de vinhos ou sub-produtos do Douro. Vinhos que serão duma categoria superior, pelo custo de produção e pelo valor, se quisermos ser justos, das uvas, na RDD: a partir destas uvas se fazem os mostos, os vinhos e a aguardente, vínica e/ou vitícola, para todo o processo. Se um tal vinho tem ou terá vantagens comparativas com os seus congéneres, é algo para que não há suficientes dados publicados.

 

Será absoluto o argumento de que uma aguardente, por ser neutra por definição e exigência normativa, não possa ter um carácter que exprima a genética, o terroir e o climat das uvas do vinho de que foi obtida? O afinar científico das análises, que têm vindo a evoluir sobretudo nos últimos anos, permite provar que uma aguardente vínica ou vitícola “neutra” a 77%, destilada na Califórnia ou em França, ou destilada cá, com vinhos doutras regiões, poderá ser, e sê-lo-á seguramente, diferente duma mesmíssima aguardente a 77% destilada de vinhos do Douro. Claro que um humilde provador como eu não as distinguiria assim sem mais, mas um enólogo, cuja perícia vise obter um determinado vinho a partir dum determinado mosto, pode e deve querer uma determinada aguardente com ácidos orgânicos e  aldeídos isto ou aquilo, analiticamente falando, para combinar com um mosto analiticamente quejando. Daí que a possibilidade de querer abafar-se um mosto ou fazer-se uma calibragem com uma determinada aguardente e não outra, seja legítima, desde que conforme ao estipulado no caderno de especificações desta DO, tal como a liberdade dos produtores de VP poderem abastecer-se pelo seu caracter e não apenas pelo seu preço ou pela sua origem. Quer com aguardentes autóctones quer alóctones, têm sido feitos belíssimos Vinhos do Porto e as suas extraordinárias qualidades e valor estão hoje, mais do que nunca, em máximos!

 

O Douro tem tudo para se poder impor no mercado das melhores aguardentes do mundo. No segredo de muitas adegas e em cubas e pipas esquecidas (bem, de algumas, pelo menos…) estão guardados hectolitros cuja amostra, vertida num cálice que se possa afagar na mão, cheirar, surpreender-nos com a luz-âmbar que irradia, provar, na língua e com a boca, uma essência que nos transporta quase ao céu, é um privilégio e momento de encantamento arrebatador que nos faz querer mantê-lo interminável e relegar para o oblívio quaisquer outras bebidas espirituosas. Para os que sempre beberam dos melhores whiskies, cognacs, armagnacs, brandies, macieiras e soberanos, de tudo do melhor, compreendem o encanto e prodígio duma destas aguardentes secretas do Douro. E não são só a emoção ou o patriotismo a falarem: é tudo o mais que está ali, e em grande nível. Tenho a certeza de que será com um cálice duma destas aguardentes do Douro que, à entrada no Céu, seremos recebidos, sobretudo aqueles a quem nos for mais difícil esse caminho até lá!

 

D. Maria II, de espírito muito juvenil e maduro, digna de muito mais crédito do que qualquer dos Chefes de Estado que temos tido nos séculos XX e XXI, com a república, deve ter cheirado destes espíritos voláteis do Douro num banquete oficial ou numa confidência da Corte, porque assinou uma legislação, específica para tais aguardentes do Douro, em 1852, que, num país estrangeiro, seria usada até ao infinito para a promover (à aguardente, já que a Rainha não precisa). Connosco, portugueses, quase silêncio, como se faz quase sempre que há coisas ou pessoas a ser distintas pelo seu mérito. De lembrar que essa Rainha, grande Rainha, também subscreveu a fundação da Faculdade de Belas Artes de Lisboa e do Banco de Portugal. Todos os três (as aguardentes do Douro, a Faculdade de Belas Artes e o Banco de Portugal) existem hoje ainda, quais suprassumos do nosso país, resistindo à nossa portuguesinha voracidade iconoclástica de instituições e nomenclaturas.

 

Vivemos num mundo livre com regulamentos que têm de ser aceites em espírito interprofissional. Para que todos possam ganhar dinheiro com a produção e o comércio das uvas, dos vinhos e das aguardentes mais excepcionais de Portugal. Do Douro e do Porto. Dizer mais, será supérfluo. Querer mais, será inovador e legítimo. Sempre.                

terça-feira, 15 de julho de 2025

Rally de Portugal e tardes de vinho quente


 

©Manuel Cardoso

 

Não sei porquê nem me lembro quando, mas era Outono ou Inverno, o que, em Trás-os-Montes, nesses anos, era quase a mesma coisa: fazia frio, vento, chovia há dias e toda a gente dizia que com um ou dois graus a menos, seria neve. A Estalagem desse tempo era ainda a primeira Estalagem do Caçador, construída como se fosse um hotelzinho suíço ou austríaco, um ponto focal para quem deambulasse naquelas terras longínquas, a horas e horas do Porto. Entrava-se e era o conforto: cheiro agradável de escadas de madeira e tijoleira encerada, ar morno de aquecimento central, voz educada do Senhor João que dava as boas-vindas, quadros, tapetes, gravuras e animais de caça empalhados pelas paredes, aroma a café que vinha da sala de estar, um aposento decorado como uma mistura de bar americano com bancos altos ao balcão, e mesas, cadeiras e sofás de fazer inveja numa loja de antiguidades e decoração, candeeiro redondo pendurado do tecto de onde se sustinha um pato real de asas abertas, embalsamado. Um espectacular relógio de cuco dos Alpes dava as horas como se cumprisse uma partitura musical. Mesmo estando-se a ler um dos jornais ou revistas (O Primeiro de Janeiro, o Le Figaro, a Paris-Match e a Jours de France dispunham-se em cima da mesa), era impossível não prestar atenção aos hóspedes que entravam ou às visitas que os acompanhavam. Num desses dias de há cinquenta anos apareceram dois casais nitidamente estrangeiros, vivaços, acompanhados de portugueses algo blasés e que um dos empregados nos sussurrou ser tudo gente “ligada ao rali”, o que nos deixou atentos, surpreendendo-nos que as senhoras (hoje eu diria raparigas) pediram copos de vinho quente! Vinho quente! Era uma première para nós! Apercebi-me que esse pedido motivou uma ida dum dos empregados “lá dentro”, de certeza conferenciar, e, passado um bocado, surge de tabuleiro na mão com dois copos dos que hoje usaríamos para galões, com vinho tinto aquecido, tresandando a chocolate, canela e café. Para nosso espanto, beberam-nos todos em pouco tempo e pediram mais, soltando então os cachecóis que traziam, pousando nos braços do sofá os casacos que, enfim, tiraram, debruçando-se com mais atenção sobre um mapa de Portugal desdobrado na mesa de azulejos, calcado num canto com um cinzeiro para o fixar e, no outro, com um bloco de argolas em que tomavam notas, trocando de mão os cigarros e os lápis.

Há muitos poucos dias recebi da sommelier Teresa Gomes um daqueles emails que se mandam em difusão “aceitas um vinho quente?” e trocámos mensagens sobre variantes de sabores e cheiros para acrescentar à base de vinho tinto. Iremos fazer experiências, cá em casa, numa destas tardes em que, depois dum passeio na mata aqui pela Serra de Ala, a Mariana e eu regressemos com a ponta do nariz gelada e as maçãs do rosto coradas do frio, o que não será difícil acontecer. A última vez que bebemos vinho quente (mulled wine) foi em Sintra, depois do percurso a pé desde a estação de combóio até à Casa do Fauno, onde passámos a tarde a ler e a observar o movimento do bar e do jardim, sacudido a vento, sorvendo em pequenos golos a alquimia de especiarias. No vinho quente, se a base tiver defeitos, tem que haver a mestria de os disfarçar com as especiarias, ou o chocolate, ou o café, ou o que for mais adequado. Não é à sorte que se pode fazer vinho quente. Misturar tudo e… pronto! Não, assim será um desastre intragável com que se desperdiçará o vinho. Primeiro tem que se conhecer o vinho que iremos aquecer (de preferência em vapor ou em banho-maria) e ter a noção de quais as notas que estão no coração, no fundo ou no topo desse tinto (de preferência) porque o calor vai tornar mais exuberantes e efémeras as mais voláteis, mais persistentes as mais pesadas. Por isso, escolher cravinho, canela, chocolate, mel, café, gotas de bagaceira, nozes e avelãs, rodela de laranja, seja o que for, para misturar, não é indiferente e tudo estará correcto, dependerá do gosto de cada um e de como se queira complementar o vinho base! Alecrim e tomilho estará muito bem para quem não vá pelos doces! Menta será arriscado, mas se for apenas uma sugestão, poderá ser um esplendor!

Anteontem chegou à nossa caixa do correio a revista do ACP. Menos magrinha. No Editorial, Carlos Barbosa chama a atenção, entre outras coisas, para o impacto económico positivo do Rally de Portugal e indica-o como um factor de apoio às regiões e de combate à interioridade. Sem dúvida. Naquele dia de há meio século esse rally ou outro fez com que se bebesse vinho quente na antiga Estalagem do Caçador! E tenho a certeza de que, se as pistas fossem escolhidas aqui mais para o interior profundo, poderia ser um enorme factor de progresso, a começar por melhorar a nossa rede de cobertura de telemóvel e internet que ainda é deficiente e impede que se possam dar a conhecer muitos dos recantos bons onde fatias de salpicão e presunto se entremeiam com fatias de queijos e pães caseiros, tostados em brasas, regados de azeite, que também pode ser quente como o vinho, misturado com ervas e especiarias, rijado para migas que afastem o frio numa tarde de emergências de carros atascados ou de pneus a ter de ser mudados sob um temporal de inverno. Tirar os gorros, desapertar o fecho dos blusões, ficar em camisola em frente à lareira a fazer peso numa cadeira que nos deixe ter o copo na mão e ir chegando à boca dessas munições de estalo…, Procol Harum com a Fires do Grand Hotel … letra a ir de encontro à preocupação do momento com o mundo da agricultura: This war we are waging is already lost/ the cause for the fighting has long been a ghost/ malice and habit have now won the day/ the honours we fought for are lost in the fray… Espero que não, será?...    

Este post foi artigo no EGGAS já há uns anos mas ainda ontem, Julho 2025, tomei conhecimento da excelente prestação de Luís Alegria, com as cores de Valle Pradinhos!

Recebemos no Press Release de

Hugo Reis

hugoreis@motorbest.pt I 969100202

Uma imagem com logótipo, símbolo, Carmim, encarnado

Descrição gerada automaticamente:

O piloto Valle Pradinhos conseguiu, na última volta da prova, rolar sem dobragens difíceis e, com isso, voltou a fazer história, com o melhor tempo de sempre de um 1300 no Circuito de Vila Real, ao baixar o seu recorde pessoal para uns notáveis 2:21:497.

Luís Alegria compete num Datsun 1200 (B110) de Grupo 2, em Vila Real, em 2025. 

Campeão Nacional de Velocidade na categoria 1300-H75 nas épocas de 2023, 2020, 2017 e 2007. Participou também em provas do Campeonato de Montanha, no qual já foi Vice-Campeão nos clássicos.
Como navegador de ralis, competiu ao lado de Joaquim Santos, Francisco Romãozinho, Jorge Ortigão, José Pedro Borges, Carlos Bica, Ni Amorim e outros.

Que bom seria se....



domingo, 6 de julho de 2025

Papéis estupendos e deliciosos


 

©Manuel Cardoso

 

“Rosquilhas de aguardente – Um arrátel de assucar, 20 ovos tiram-se-lhe dez claras tudo vem batido até que a massa esteja vem grossa depois deita-se na masseira deitando-se-lhe um quarteirão de aguardente para lavar o tacho e ao amassar deita-se-lhe meio arrátel de manteiga de porco mas que seja vem quente”.

Não sei quem foi a autora. Este pequeno parágrafo está com muitos outros numa folha de papel escurecida pelo tempo e pelo uso em cozinhas antigas, manchas a fazerem-lhe decoração de saboroso currículo de trabalho. Manuseamos tais páginas respeitando o tacto que tiveram de cozinheiras ancestrais e curiosas na sua leitura, de certeza copiadas mais vezes, repetidas ao ouvido de aprendizes e de donas de casa. Estas folhas estariam numa gaveta ou numa caixa do escano ou entaladas num maço que apanhava o fumo e os vapores da cozinha. Apesar de sabidas de cor, serviriam de cábula às iniciantes ou para desfazer teimas e, seguramente, para emprestar às visitas que, da cerimónia fazia parte, pediam para ter a receita do que acabavam de provar.

Aromáticas da aguardente e da canela, ao cozinharem-se e ao trincarem-se, as rosquilhas eram essenciais numa viagem e havia-as guardadas numa terrina, num armário, à espera de visitas inesperadas. Faziam-se fritas em azeite ou, então, iam ao forno num tabuleiro polvilhado, estas mais próprias para poderem ser embebidas em vinho do porto ou da madeira. Como muitas das receitas antigas de bolachas e biscoitos, os amarantinos e os económicos, os cabacos, as broas de amêndoa, as rosquilhas de viúva, todos eles eram munições de boca fáceis de transportar em saquinhos de linho ou cestinhos de verga, úteis para quebrar o jejum e para preencher as horas nas diligências, a pé ou a cavalo, nos comboios ou nos barcos. Nas festas e nos bailes, uma rosquilha a servir de mata-borrão a uma taça de champagne era – e é! – uma forma instantânea de recuperar o fôlego para mais uns quantos rodopios aos saltos.

É com um enorme respeito que se devem coleccionar e preservar bem estas folhas manuscritas, autenticamente desenhadas em escrita cursiva com aparo molhado em tinteiro,  com uma letra que envergonharia as letras de hoje, caligrafia de estilo aprendido e tão treinado quanto as receitas sobre que informa, protegendo-as agora eu em micas mas, sempre que se retiram da transparência para se lhes examinar qualquer pormenor à lupa, libertam o seu cheiro antigo em que se adivinham canelas, açúcar queimado, por vezes pimentas e até louro – algumas com cânforas e alfazemas do tempo guardado e resguardo das traças. Palpitam de vida e inspiram azáfama. 

O núcleo mais antigo de papéis veio-nos parar às mãos no lote dos “que já ninguém quer”, nas palavras da nossa divertida prima Batija, que fez comigo o rebusco final em casa das Tias Sousas, no tempo da outra senhora, antes de ser posta à venda, e me perguntou se eu não quereria escolher algum papel que ainda se aproveitasse, daquele pequeno monte no chão do fundo do corredor, a casa estava já sem móveis – fiquei com todos! Umas dezenas de jornais velhos, partituras para piano com capas de Belle Époque, algumas cosidas com fios de seda porque o uso lhes gastara e rasgara o vinco (imagina-se a cena da pianista e duma ou dum ajudante a dobrar e a mudar-lhe a partitura da valsa para se manter o ritmo da dança, a provocar-lhe o frisson pelo gesto de galanteio…), e umas folhas desirmanadas de velhos livros de receitas. Esta era uma delas. 

Toucinhos do Céu, pudins de pão, de batata, de laranja, pudim gelado em banho-maria, velos de raiba, pudinzinhos dos Remédios, trouxas, castanhas de doces de limas, ameixas e damascos, broas, morcelas pretas e morcelas de lombo, pastéis de Lamego, calda de perdiz, celestes, tigelinhas de Londres, esquecidas de Coimbra, doces das Pedrosas, bolos do Paraíso, francelinos, caracóis, esses, Manuéis, Napolitanos, suspiros de freira, doces de ovos, … muitos mais! Numa das sequências há, à margem, em letras mais pequenas, “Adosinda de Sousa”, o que bate certo com a nossa velhinha tia-avó (então envelhecia-se muito depressa) que ainda conheci e que morreu em 1970 antes de fazer 93 anos: muito culta e inteligente, era a humildade em pessoa, letra a sumir-se, mas muito perfeita, muito correcta.

Lidas hoje, as unidades de medida dessas receitas são notáveis: arráteis, quarteirões, vintenas, meios-tostões, quartilhos, quartas e onças, assim como as designações de peneira de cabelo, água de flor, manteiga do norte…

Podemos pensar estarmos muito longe do tempo destas folhas, com antiguidade mais do que centenária, mas, lendo-as bem e olhando os escaparates de muitas pastelarias, está bem vivo e junto de nós. Com menos coisas pisadas em almofariz ou tendidas com o rolo da massa, porque os electrodomésticos vieram mudar imenso os procedimentos; com muito menos coisas em unidades misteriosas, porque o sistema métrico veio pôr tudo em grama e kilo; com menos alguns dos ingredientes, porque o conhecimento dietético relacionado com a saúde veio impor novas regras. Mas, linha a linha e página a página, ao lerem-se os enunciados de quantidades, dos processos, das recomendações para a massa não ficar grossa ou para o tempo de espera até cozer, arrefecer, ou passar, simplesmente, até poderem consumir-se, ao ler-se todo o empenho que esteve nas descrições e ao sentir-se que havia experiência e amor em toda a actividade da cozinha, é impossível não nos comovermos com a vinda até nós, a 2023, de toda esta informação em suporte papel, desafiando anos e anos, trazendo conhecimento, dando vontade de desatar a experimentar e a provar todas e cada uma das receitas.

Já agora, um arrátel são 459 grama, hoje. Um arrátel valia catorze a dezasseis onças, conforme as zonas do nosso país. O “nosso”, daqui de casa, valia 14 e, por isso, uma onça destas receitas vale 33 grama, tudo aproximadamente, se quiserem experimentar, não se precisa de balança de precisão – precisa-se de sensibilidade culinária, o que não é pouco!

Impossível não terminar com a receita de cup, está-se mesmo a ver os convidados da festa a remexê-lo com uma concha de prata e a vertê-lo para as taças, senhoras a espreitar o colorido da terrina, música de gramofone de manivela, toilettes em esplendor, trincadelas num biscoito com a mão esquerda enquanto a direita, segurando com elegância no cristal, o levava aos lábios na pose estudada e treinada para depois surgir a frase, olhos o fitar o alvo, tom sedutor, “uma delícia estupenda! O que levou?”: 3 garrafas de vinho branco, 3 litros de água mineral bem gasosa, 1 garrafa de champagne, 1 cálice de cognac, 300 gramas de açúcar, variedade de frutas aromáticas (laranja, morangos, ananaz, etc.) cortada em bocadinhos e gelo cortado de igual modo. Junta-se tudo durante duas horas, excepto o champagne, que é na ocasião.     



Este artigo foi previamente por mim publicado no EGGAS.                    

sábado, 21 de junho de 2025

Iogurte grego numa receita francesa comida no Minho

 


©Manuel Cardoso

 

Se num dia de muito calor acontecer passarmos diante dum escaparate com boiões grandes de iogurte grego, devemos comprar pelo menos um e ainda um limão, três pepinos e hortelã de bom perfume (que seja suficiente para enchermos, a mais do que a trasbordar, uma chávena de chá com as folhas cortadas à tesoura). Descascamos os pepinos, rapamos-lhes as sementes e cortamo-los em picado de modo a ficarem quase em papa, salgamo-los e deixamo-los a escorrer bem num coador. Acrescentamos dois dentes de alho esmagadíssimos. E o sumo do limão. E misturamos tudo: o iogurte, os pepinos escorridos com o sal e o alho, o sumo de limão. Provamos para ajustar o sal. Misturamos, cuidadosa e finalmente, a hortelã. Contenhamos a gulodice e deixemos ficar por umas horas no frigorífico. Depois…

…depois podemos provar com salada, ou com carne grelhada, ou com um cabrito no forno, ou com um arroz solto, ou à colherada por puro deleite numa tostinha e cama feita a um branco gelado, um rosé mais gelado ainda, um tinto aberto dos raros que se provam às vezes.

No nosso almoço, o de amigos nascidos nos anos 50, em casa, aliás, nos jardins secretos da Patrícia Jacquot e do Acácio Pimentel, há dias, havia uma mesa cuja decoração foi mudando e por onde passaram coisas óptimas, até as fotografámos para memória futura. Mas quando pensamos nessas mesas sucessivas de cores e surpresas, de mão do Acácio, em que houve queijos e azeitonas, bacalhau, tripas, couscous, milhos, verduras várias e temperos soberbos, cabrito que se cortava com um prato, sabores trasmontanos e minhotos com sangue, cominhos e cravinho, havia uma taça, que se distingue na nossa imagem mental: a do creme de iogurte com pepino, da mão da Patrícia, em que o pepino estava lá, mas tão bem acompanhado que se sumia sem perder a personalidade – seria  o mesmo que uma das fotos de um de nós num museu de cera ao lado da Raquel Welch: nós estamos lá mas o que salta à vista é a Raquel Welch vestida ou não como se quiser. O que tinha aquele iogurte? Houve imensos palpites, mas o aahhh! foi geral quando a Patrícia revelou que o creme tinha pepino: depois de se saber era fácil, só um fruto desses para dar aquela estrutura – e havia ali uma grande mestria em conseguir-se o resultado, aquele resultado e não outro. Rapámos a taça!

A Casa da Deveza, em Azevedo, faz jus ao nome: no Dicionário da Academia, uma devesa é uma alameda que delimita um terreno; lugar cercado por arvoredo; mata ou arvoredo cercado ou murado; souto; campo fértil na margem dum rio. Ora, a casa da Patrícia e do Acácio é isso tudo e ainda mais! Aliás, é o dicionário que está incompleto já que deveria acrescentar (não duvidamos que o será em edições futuras!) pedaço de éden em que os donos recebem os amigos. Com uma vantagem sobre o Éden primordial, já que esse não se sabe onde ficava – e este fica mesmo ao pé de Caminha! (É uma casa particular e não um estabelecimento público, esclareça-se!). Passear naqueles jardins de gosto inglês, em que os nossos pés se afundam em muitos centímetros de relva de folha larga, fez-nos mudar tão bem da nossa vida nesse dia que foi com motivos de alegrias e sem nostalgias tristes que conversámos sobre infâncias, carreiras, negócios, amigos presentes e ausentes, festas e lutos como se um caleidoscópio, especial porque todo ele verde (estávamos no Minho, para todos os efeitos), para lá desse especial porque o verde tinha as intermitências dos áceres, do bambu, do colorido das fatiotas de todos nós, as nossas vozes, o passear dos leões-da-rodésia com a sua agitação e imponência, o imaginar mitológico e anedótico dum canguru por ali aos saltos, o vôo das garças a vir buscar os peixes da taça de água, como se um caleidoscópio, dizia, nos maravilhasse com os vislumbres dos nossos professores, das aulas, das férias, das marotices ingénuas de há meio século em Trás-os-Montes que nos fizeram, afinal, a todos, estarmos ali.

Tenho a certeza de que ao experimentar construir o creme de iogurte, o pepino vai estar a mais ou a menos. O que até será bom, porque teremos de repetir a experiência, até acertarmos, e cada repetição exigirá aprumo e denodo culinário. A Mariana zelará pelo meu aprumo. Para o denodo já pusemos o rosé no frigorífico. Falta vir um dia de calor com uma tarde de sol para irmos buscar o boião de iogurte grego. Até lá, vamo-nos consolando com a amizade das mensagens, das fotos, dos videoclips do nosso grupo dos anos cinquenta no whatsapp!... Qual o rosé que pusemos no frigorífico?! Ah! Pois é!... revelaremos num dia de Verão a sério já que é um rosé a sério, intencional. Saúde, Patrícia e Acácio! 


[Este post foi anteriormente publicado no EGGAS em Junho de 2023]  

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Batatas de toda a vida

 


©Manuel Cardoso

 

 

A minha década de todos os possíveis foi a dos anos setenta. Na faixa de aceleração para a faculdade lia um livro por dia, dos da Colecção Vampiro ou da Argonauta, e lembro-me de, numa tarde de calor, acompanhando o Carlos Cordeiro Ferreira aos Vilares da Vilariça, eu ficar nos degraus de cantaria da casa, à sombra, vale desenrolando-se ao fundo com o bafo quente de Verão, retirar o livro do bolso das blue-jeans, e começar a lê-lo, enquanto ele foi com um caseiro dar uma volta às propriedades. Acabei-o já à noite, em casa, idealizando o seu final como se pudesse ter sido no mesmíssimo vale: A Última Fome, de John Christopher, numa edição mole da Europa-América, versão portuguesa de The Death of Grass. A partir desse dia passei a considerar as batatas num patamar bem acima daquele em que as tinha.

Anos antes, predilecção de brincadeiras de miúdo, nos trabalhos de se plantarem as batatas no Lameirão – que hoje é um parque de estacionamento! – junto ao ribeiro, em Macedo, era divertido ir em cima da grade de alisar a terra, seguro com a mão forte do Henrique Ginja para não me deixar escorregar o pé, bem agarrado ao pau que na vertical nos servia de prumo e em baixo engatava a argola da vara que a parelha de machos puxava. Tal como me era fascinante conduzir a água, com um sacho, vertida da nora engenhosa movida a burro ou, inovação!, dum motor eléctrico do poço, despejada caudalosamente numa pequena vala à cabeceira da horta, percorrendo um a um cada rego, que tínhamos de obstruir logo que o seu percurso chegava à ponta, com uma sachada de terra empapada, soerguida como um pequeno dique, e mudava-se para outro onde entrava cheia de vontade, correspondendo à minha emoção. Cheguei a ter um barquinho de papel a ir por aqueles canais como se estivesse no Nilo e fosse o cesto onde se escondera Moisés! Quantos fins de tarde ali passei com os tão amigos Irene e Norberto Silva, o Senhor Silva electricista, cheios de paciência para mim, explicando coisas, apontando os escaravelhos que tinham vindo da América e que eu achava bonitos e lógicos porque as batatas tinham vindo também. Eram apanhadas em dias de safra e canseira, nem todas ao mesmo tempo, porque umas eram as arran consul, outras as arran banner e outras as kennebec (aprendi nesse tempo rancônsul, rambana e canibet, está visto!). Depois eram guardadas no escuro, palha por cima, num dia misterioso polvilhadas com um pó perigosíssimo que nos impedia de irmos brincar para a loja das batatas (ouvi sussurros na cozinha de que a mulher do…… se tinha matado com “remédio das batatas” e pensei que fosse esse pó – só anos mais tarde percebi que tinha sido com o líquido de pulverizar contra o escaravelho!).

Há centenas de maneiras de comer batatas, mas as que se me gravaram de infância foram as batatas cozidas, as assadas e as fritas, nas variantes de rodelas e em palitos, com mais variantes ainda. Os purés! As palha, do bacalhau à Braz. As do pudim de batata (que era enformado de forma a parecer um castelo da Disney e em que uma das torres desabava no trajecto, do tabuleiro com a travessa, entre a cozinha e a sala de jantar). As novas, cozidas com casca! Todas elas eram batatas e ponto!

Já no Colégio de Cernache (o CAIC dos Jesuítas) apareciam de vez em quando umas batatas feitas pelo Irmão Leal com pontos verdes de salsa e cheiro de vinagre, cujo sabor recordo com saudade. O ligeiro travo ácido do vinagrete misturava-se com a polpa e eu não deixava sobrar nenhuma.

Nesses anos setenta, a Pilar e eu aprendemos a fazer tortilhas, com batatas fatiadas com uma pré-cozedura, e saiam-nos sempre bem. Com cenas cómicas das tentativas de as virarmos como na TV, impulso da frigideira, splash que nem sempre ficava centrado! Foi por causa do meu Pai e, sobretudo, por causa da Pilar que eu comecei a ler os livros da Colecção Vampiro e os outros – eles e a minha Mãe andavam sempre com um para todo o lado, iniciado, e chegava a discutir-se o caso à mesa, sem revelar desfechos, com a ajuda das capas crípticas de Cândido Costa Pinto – e sem revelar alguns pormenores mais tarde muito interessantes, mas que para a minha Mãe, mais puritana, seria intolerável serem ali desvendados. Nesses livros havia venenos, como os das nossas batatas, capazes de colocar problemas aos melhores detectives! E comecei a pensar que este “fruto”, logo a seguir à maçã da Bíblia, seria o mais importante. Como eram simples, fantásticas e cultas, essas conversas à mesa: fiquei a saber que nem a Bíblia se refere, alguma vez que seja, a batatas, nem que estas sejam um fruto: isso sim, um tubérculo, uma forma de caule!

Todo esse mundo novo me foi envolvendo, revelando-se passo a passo, ordenado com lógica pelo Padre Pinheiro (divertidamente o “Zèquinha”, para os alunos do tal colégio) nas aulas em que nos deu botânica! Até chegarmos à tal tarde, anos depois, nos Vilares da Vilariça, a partir da qual as gramíneas começaram a morrer e as batatas a representar uma forma ficcionada de esperança e desesperança, a da última fome.

Nesta altura do ano,[1] a não ser as batatas apátridas vendidas nas grandes superfícies, que vieram de longe ou estiveram em atmosferas controladas em grandes câmaras, não há batatas frescas. Temos em casa as do ano passado, mantidas na obscuridade, de que irrompem rebentos e que, vistas nessa perspectiva, parecem seres de outro planeta. Ainda ontem, quando descascava uma abóbora para uma sopa, uma dezena de batatas aguardava sob a torneira do lava-loiça com os seus cabeludos rebentos, eriçados como se fosse um pelotão de recrutas, e eu olhei-as de lado, não fossem mover-se e vir estender-me uma radícula adventícia como no filme A Terra em Perigo. É claro que não há como uma batata nova, cozida com casca, firme na companhia duma sardinha assada ou, então, cozida de propósito para lá do ponto, ligeiramente calcada com o garfo para a fender, embebê-la depois com um fio de azeite que se espalhe pela polpa de amido. Água, batata a sério, sal e azeite, quem disse que a simplicidade não pode ser gourmet?!  Temos imensa sorte, em Trás-os-Montes, com as nossas batatas! São das melhores. E, então, as daqui de Latães, vicejando no Urzedo, no Pai-Mouro, na Portela, no Vale Côvo, no Prado de Cima, no Vale da Gruda, no Lameirão, nas Fontelas, no Carriçal, na Cortinha do Vale, no Mosqueiro e noutros sítios onde, além do chão antigo, têm o esmero do trato como se fossem um tesouro que se desenterra na altura certa como diamantes, são daquelas que em mercado deveriam ser sempre mais caras do que as outras porque são muito melhores do que as outras! Mesmo estas velhas, que são de cá, já chegadas a Fevereiro, livres dos grelos, descascadas com cuidado, cheiradas para selecionar as íntegras, cozidas na água de cozer as carnes, são a companhia impagável para compor uma tarde de Inverno com uma travessa de chouriços, tiras da barriga, febras de ave, cubos de alcatra, uma orelha e um pé de porco que ferveram lentamente!

Na semana passada a Perpétua e o Marco António deixaram-me entrar na cozinha do restaurante – que cheirava bem! – e deitar o olho às batatas fritas. Especiais, a fazer lembrar as da antiga Estalagem. Pareceram-me ser das ágria, das que também se cultivam nas nossas serras e muitas vêm de Montalegre. São laminadas numa máquina, mergulhadas em água fria e repousam no frigorífico, imersas, durante horas. Mais umas horas depois, são escorridas e secas; fritam em azeite e ficam prontas no momento de irem para mesa, amarelas, encarquilhadas, crocantes qb. Habitualmente, as estupendas carnes grelhadas são doses grandes demais e sobram. As deliciosas batatas também nos chegam à mesa em doses enormes. Costumamos pedir mais.   



[1] Este artigo foi escrito no Inverno e publicado inicialmente no EGGAS, em Fevereiro de 2023. A fotografia que o acompanha aqui no blogue é duma estampa do “Botânica Elementar”, de Manuel da Conceição Pires, manual escolar do 3.º ano dos liceus, 1971.