sexta-feira, 6 de maio de 2022

CERTIFICAÇÃO DE VINHO - Estimável razão de ser

5 de Maio de 2022

UTAD, Vila Real

Comunicação nas III Jornadas de Enologia e Viticultura: Inovação e Criação de Valor

Associação Nacional de Estudantes de Enologia e Viticultura

Manuel Cardoso 

 


 

A todos muito Boa Tarde!

1. Agradeço o convite da ANEEV - Associação Nacional de Estudantes de Enologia e Viticultura, que me foi endereçado pela Eng.ª Adriana Vicente, pela mão da minha amiga Prof.ª Ana Alexandra Oliveira, e poder estar hoje aqui nestas III Jornadas de Enologia e Viticultura: Inovação e Criação de Valor, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), onde fui aluno na pós-graduação de Ciências Agrárias há mais de vinte anos. Este convite revela uma grande e imerecida consideração por mim, pelo que o agradeço especialmente.

Compete-me falar sobre CERTIFICAÇÃO.

2.      Devo começar por dizer-lhes, especialmente às senhoras que me convidaram, que deveriam ter feito uma certificação prévia do que vou dizer, para que se pudesse cumprir um dos desígnios básicos dum processo de certificação: o de que o produto corresponda às espectativas do seu fruidor porque, como já preveni tantas vezes, sendo eu apenas um amador informado, correrão o risco de me ouvir e no fim sair defraudadas, como acontece a tantos que adquirem vinho nos supermercados, olhando só ao preço, por ser barato, não interpretando os sinais do rótulo sobre certificações ou a sua ausência ou, pior ainda, assumindo uma certificação determinada como correspondente, só por si, a qualidades que, depois, não se revelam nem no copo nem na boca.  Desculpem-me, se não corresponder ao que esperam ouvir sobre este tema mas o que lhes direi será feito de forma honesta e com o objectivo de ficarem contentes com o tempo gasto: essas qualidades de certificação eu posso dar, a de que o processo foi feito com honestidade e com o objectivo de os satisfazer, duas qualidades à estimável razão de ser duma certificação de vinhos feita com ética: que seja honesta e procure a satisfação do consumidor.

3.      A Certificação começou muito antes do que se poderá supor hoje em dia: os selos das ânforas, as marcas nas barricas, as cartas de recomendação que acompanhavam as suas remessas, transportadas nas embarcações que desde há milénios sulcavam o Mediterrâneo, o Golfo Pérsico e as costas europeias e africanas do Atlântico, tudo isso eram processos de certificação dos vinhos que circulavam pelo Cáucaso e pela Ásia Menor, Grécia e Creta, Etrúria, Hispânia, Gália, Africa… O primeiro “Mercado Único Europeu” existiu no extraordinário Império Romano que, bem organizado administrativamente como era, não poderia deixar de ter os seus documentos de acompanhamento de mercadorias, certificações e políticas de protecção de produtos. Conceptualmente, não estamos a inventar nada, hoje em dia, estamos a repetir o que foram leis, métodos e processos outrora já utilizados numa sociedade sofisticada como era a romana e que também já antes, nas sociedades sofisticadas da Babilónia, da Pérsia, da China e da Índia, existiram como exigência das classes abastadas e cultas. O Vasco Avillez gosta de contar que pelos portos de Corinto e do Pireu e por outros em que cada vez mais se fazia essa circulação de vinho, havia umas ânforas e barricas especiais, dum vinho destinado especialmente aos cristãos, assinaladas com as letras XPTO, uma abreviatura da palavra grega "Χριστός" ("Christós" - Cristo), sigla com que Jesus Cristo aparece mencionado em numerosos documentos romanos, medievais e posteriores, vinho esse que, por isso distinto e considerado melhor, desde a sua origem ao seu mercado de destino, o dos cristãos para as suas cerimónias religiosas, hoje em dia, a Missa. Era uma forma de certificação desse vinho, da sua qualidade especial. Por extensão semântica, compreendemos assim porque dizemos que algo de especial seja xpto, nos nossos dias!...

4.      Várias vezes ao longo da história a certificação tem surgido como um método de luta contra a falta de qualidade provocada pela fraude e pela ganância: os casos do Chianti, delimitado pelos Médici em 1716, do Tokaj, classificado em 1730, e o caso, que muito nos deve orgulhar, em Portugal, da delimitação e regulamentação da área de produção do vinho do porto no Alto Douro, em 1756, a primeira a ter em simultâneo uma delimitação, classificação, regulamentação e organismo de regulação e controlo, a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, a Real Companhia Velha.

5.      O que é certificar? Uma leitura no nosso Dicionário da Academia das Ciências não deixa quaisquer dúvidas: certificar é provar que é verdadeiro; provar que está certo. Aquele que prova deve ser simultaneamente credível para quem quer certificar e para quem quer certificar-se. Ser credível significa ter idoneidade para o efeito o que, de forma simples, engloba, no “ser idóneo”, as qualidades de ser apropriado (ou seja, adequado ao vinho), capaz (de distinguir um vinho, por exemplo), apto (conveniente para o que se pretende) e competente (conhece e consegue ajuizar e fazer determinada tarefa). Pode parecer ociosa esta questão de vocabulário, mas se for entendida cientificamente, é fácil descobrir nestas palavras a honestidade, a satisfação do consumidor e a eficiência que deve fazer com que uma determinada menção num determinado rótulo, garanta aquilo que se espera estar dentro duma garrafa.

6.      Desde os inícios, por isso, que a certificação está ligada às demarcações e definições de origem dum produto como subjacentes à sua genuinidade e qualidade. Daí que a nível de cada país fossem surgindo, sobretudo por proteccionismo económico, as designações e delimitações regionais com o seu órgão regulador e de controlo (que simplificadamente aqui designaremos por CVRs), que todos conhecem, que tanto valor têm acrescentado aos vinhos – e tanto poderão acrescentar ainda! Com a política europeia começou a prevalecer uma visão de conjunto sobre estas matérias (não só para o vinho) e nas últimas décadas do século XX o pensamento foi-se compondo também com o vector do desenvolvimento regional. Convergindo todos esses desígnios, surgiram as DO, DOC ou DOP e as IGP e IG, regulamentadas, produtos com distintivos de qualidade, certificações que vieram dar segurança ao consumidor sobre a origem e conformação a determinados critérios de qualidade na produção, ao mesmo tempo que permitem ao produtor a diferenciação do seu produto e, com isto, ser expectável a sua valorização. Os OC, Organismos de controlo das DO e IG são as CVRs, o IVBAM e o IVDP, cada um na sua região (Aviso 175/2022 do IVV).

7.      Mas... A evolução dum processo relacionado com um produto como o vinho não poderia ser linear nem simples, porque tem numerosas variáveis a interferir na sua produção e consumo, na sua oferta e procura e… na opinião pública – mesmo que os actores desta opinião pública não produzam nem consumam, nas sociedades democráticas com liberdade de expressão têm uma palavra a dizer sobre o assunto e temos que viver com isso. E que nos condiciona. Ampliando, por desconhecimento, muitas das variáveis negativas que já os produtores e demais operadores no sector há muito vêm constatando e sobre elas tomando medidas. Aqui chegados, entramos num outro patamar de importância da certificação, que passaremos a abordar resumidamente, para não maçarmos, cingindo-nos ao essencial.

8.      Desde há século e meio que se começaram a generalizar novas práticas culturais, intensivas, com um apoio técnico e científico que melhoraram a produtividade e permitiram o acesso de muito mais pessoas a muito mais alimentos. Um deles, o vinho. Com consequências na biodiversidade, na qualidade dos ecossistemas, na paisagem: as áreas de vinha tornaram-se estremes na sua maioria e aumentaram de extensão em muitas regiões, não respeitando o mosaico existente na paisagem. De alguma forma, tal como são essenciais para o desenvolvimento regional, as vinhas e a produção de vinho têm particularidades que fazem com que, quer os viticultores, quer os vitivinicultores, quer as empresas do sector, quer os consumidores informados, dêem cada vez mais importância aos factores relacionados com a qualidade e com o impacto social e ambiental que possam ter.

9.      Os relacionados com a qualidade têm sido resolvidos – e muito bem – com os novos conhecimentos e profissionalismo instalado em todas as etapas deste processo que transforma as uvas em produto alimentar ou de deleite. Os sistemas de garantia de qualidade, escritos e descritos nas normas ISO 8402-1994 e 9001-2008, em que os produtores assumem a responsabilidade por procedimentos e métodos correctos e usam recursos para que o produto final tenha os atributos e a ausência de defeitos expectável pelo consumidor, têm vindo a reforçar a confiança deste consumidor no líquido que se encontra dentro das garrafas, dos bag-in-box, das latas ou das embalagens PET ou mesmo daquele que lhe é servido a copo nos bares e restaurantes. Segurança em higiene e toxicologia, em saúde, em serviço (facilidade de utilização, apresentação e conservação) e em satisfação (atributos sensoriais). Um sistema de garantia de qualidade assegura que o conjunto de características do produto lhe confere aptidão para satisfazer as suas necessidades implícitas e explícitas. Não é por acaso que muitos momentos significativos, de felicidade ou de tristeza, de partilha de emoções, de comemoração social ou do desencadear duma agradável e pessoal tempestade romântica, decorram de se beber um copo – ou dois! – dum vinho de qualidade!

10.  Estamos a uma distância espacial e temporal enorme da de há vinte ou trinta anos atrás em matéria de confiança e qualidade nos nossos vinhos! Por causa dos licenciados com competência em enologia? Sem dúvida. Mas também por causa dos compromissos assumidos pelo produtor nos programas de qualidade certificada – cá está! – e na sua transparência de declarar assumi-los e aceitar ser controlado sobre o seu cumprimento.

11.  Há os aspectos relacionados com o respeito pelo ambiente, pela biodiversidade e pela saúde: estarão salvaguardados pelos programas MPB, Modo de Produção Biológico, com mais ou menos variantes, apoiados por incentivos financeiros da União Europeia, no nosso caso, e com numerosos programas similares ou correlacionados em quase todos os países produtores de uvas para vinho. Há o programa da Produção e Protecção Integrada em que o objectivo é a obtenção de frutos sãos com boas características organolépticas e de conservação e, simultaneamente, com a preocupação de qualidade pelo produto associada à sua segurança alimentar e rastreabilidade baseado em boas práticas agrícolas, com gestão racional dos recursos naturais e privilegiando a utilização dos mecanismos de regulação natural em substituição de fatores de produção, contribuindo, deste modo, para uma agricultura sustentávelEm Portugal é a DGADR quem superintende nos sistemas de Produção e Certificação de Qualidade nomeadamente sobre Agricultura e Produção Biológica e Produção Integrada, estando disponível e facilmente acessível no seu site toda a informação pertinente sobre DOP/IGP/ETG e MBP, os laboratórios designados para controlo oficial, os organismos de controlo delegado, etc. etc. Todos eles são credíveis programas de execução, controlo e certificação que dão ao consumidor uma imagem – substantiva – de confiança nos vinhos e demais produtos que ostentam nos seus rótulos os símbolos destas certificações. Seria fastidioso estar aqui a elencar os diferentes programas de todos os países, informação, aliás, que está à distância de cliques e com possibilidade de interactividade pessoal: quase todos os dias as redes sociais têm apresentações e debates com grande nível e em que podemos colocar perguntas aos seus protagonistas nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália, em todo o mundo! O sector do vinho está a ser exemplar em transparência e em fluxo de informação em termos de CERTIFICAÇÃO e de cumprimento de programas de sustentabilidade.

12.  Decorrendo do que já referimos, tem-se evoluído muito na consciência ambiental das repercussões da agricultura/viticultura/vitivinicultura e tem ganho um relevo assinalável a concepção de sustentabilidade, para muitos parcialmente entendida como ambiental mas que tem de ser assumida na sua complexidade holística e base económica. Recomendo vivamente, porque acessível, a leitura do artigo Inventory of environmental certifications throughout the world, de V. Lempereur, M. Balazard et C. Herbin, do Institut Français de la Vigne et du Vin, apresentado ao 42nd World Congress of Vine and Wine em 2019, com abundante e muito interessante informação a este respeito, em que vem expressamente mencionado o Plano de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo e a importância da aceitação transversal das Normas ISO 14001 respeitante à salvaguarda ambiental e 26000, à responsabilidade social. Portugal, neste campo, tem dado passos importantes e não estamos desfasados em relação ao resto do mundo vitivinícola. Muitas das nossas empresas estão na vanguarda da execução de programas de certificação, com cumprimentos exemplares e, na maioria dos casos, irrepreensíveis. Há outras CVRs empenhadíssimas, como a CVR Vinho Verde, a CVR Dão, a CVR Península de Setúbal e outras, que estão a recorrer a serviços de empresas de referência para aconselhamento e formatação de iniciativas. A Consagra, a Agroges, a Consulai, a PortoProtocol (e haverá ainda outras que peço desculpa por não mencionar), têm feito trabalhos notáveis, uns mais públicos do que outros, de assessoria e aconselhamento actualizado. E entidades privadas e públicas, como a ViniPortugal, a ACIBEV, a CAP, a FENADEGAS/CONFAGRI, a AEVP, a ADVID, a ATEVA, o INIAV, a DGADR, as DRAPs, outras ainda, têm promovido sessões, nos últimos anos, de informação e debate, em que estes temas da certificação e da sustentabilidade têm ganho a importância que merecem.    

13.  A OIV, pela sua Resolução 518-2016 (indispensável o estudo desta Resolução), definiu os princípios gerais para uma Vitivinicultura Sustentável nas suas vertentes ambientais, sociais, económicas e culturais. É uma resolução fulcral em termos de dar uma perspectiva global ao mundo do vinho para o estabelecimento dum referencial comum em sustentabilidade, para que cada país possa ter o seu programa compatibilizado com os demais. Complementada pela Orientação OIV 641-2020, toda ela um guia de aplicação da OIV dos princípios da Vitivinicultura Sustentável. É à luz destes instrumentos normativos que o IVV em articulação com a Vini Portugal – Wines of Portugal, desde 2021 está a desenvolver um Programa Nacional de Certificação de Sustentabilidade para o Sector Vitivinícola de Portugal, que estará disponível em breve, segundo sabemos, e que será acessível a grandes e a pequenas empresas, voluntário, faseado e inclusivo, que evita a duplicação de certificações para todos os que já tenham em execução os seus próprios programas e nas cláusulas em que se sobreponham, que respeita as diferenças regionais mas que uniformiza procedimentos para as empresas multiregionais de forma a evitar burocracia e despesas desnecessárias e que, finalmente e muito importante, permitirá ter, às empresas portuguesas, um cunho distintivo e favorável para os seus negócios.

14.  O Porquê certificar um vinho não deve ter só a ver com o cumprimento de legislação ou regulamentação, com o melhorar práticas culturais ultrapassadas ou não conformes, com o reduzir impactos negativos no ambiente ou na saúde ou com a sua diferenciação e ganhos económicos (se bem que os ganhos económicos sejam importantes e baste como razão suficiente querer com ela satisfazer um determinado público dum determinado mercado): deve ser uma demonstração de responsabilidade, de correspondência às exigências de clientes e uma atitude cultural de quem compreende o seu tempo – o nosso tempo – e  a nossa forma civilizada de estarmos no mundo. Sem perdermos de vista nem por um minuto que a garantia da sustentabilidade económica deve estar sempre subjacente em todo o edifício produtivo: sem ela não será possível a segurança e a qualidade dos vinhos, a sustentabilidade ambiental do sistema produtivo e sobrevivência dos produtores com um condigno nível de vida.

15.  Normalmente, em Portugal, temos um pouco a mania de ser mais papistas do que o Papa e de acabarmos por exigir de nós próprios mais do que seria necessário para conseguir o que os outros países fazem.

Mas também temos uma atitude diferente, por vezes, mesmo em relação a coisas que parecem fáceis: a do “já está bem assim!”, “para que é que é preciso mais?!”... Creio que nos reconhecemos em ambas: na demasiada exigência ou no desleixo de quem se contenta com menos. Ora, são um grande exemplo de que todos nós, em Portugal, PRECISAMOS MUITO DE CERTIFICAÇÃO. Temos capacidade para nos estimarmos como razão de sermos. A capacidade de ser honestos e de satisfazer os nossos clientes, os nossos turistas e a nós próprios também!

 

Muito obrigado!  

 

 

sábado, 30 de abril de 2022

Vinho do Lombo

© Manuel Cardoso

Foi-me sempre difícil ficar só por um copo ao beber o vinho do Lombo. Várias vezes me aconteceu, há muitos anos, ter de ir tratar dalguma vaca ao meu amigo João Brás e obrigatoriamente passar na sua adega, na casa no Castelo, onde havia várias pipas: a do corrente, rescendente, e que ele destinava ou a um pipo de reserva ou a um para vinagre, consoante a sua sabedoria e a da opinião dos conhecidos, e uma outra, mais bojuda, de onde saíam garrafões por rateio para o João Saldanha, de Peredo, um para mim (uma grande honra!) e para compadres certos de Macedo e doutros lugares. Era um vinho enganador, leve na língua, de côr âmbar, vindo das uvas duma vinha antiquíssima que ainda existe, abandonada, no Alto do Lavôr, a caminho do Azibo, e de cujo açúcar e películas se formava um néctar incomparável e irrepetível todos os anos, cuja alquimia fazia prodígios destilando graus acima de graus e que meteriam num chinelo qualquer, todos os que hoje se afirmam “orgânicos, biológicos e/ou biodinâmicos”: nunca tive uma dor de cabeça depois das saúdes que fizemos na sua adega, onde se produzia esse tal milagre – o de que o vinho espontaneamente surgia no nosso copo mal acabávamos de o esvaziar! Com presunto, ou lascas de bacalhau, ou pão entremeado dum salpicão – ou mesmo só o vinho no copo, num dia escaldante, puro, límpido e com o aroma incrível duma vinha muito velha do Lombo, não sei quantas vezes (mas com que saudade) eu terei saído de lá com a mesmíssima sensação com que hoje recordo, há pouco mais de uma dezena de anos, ter feito o mesmo a altas horas, terminando uma festa comemorativa no Lar da Santa Casa da Misericórdia, na mesma aldeia do Lombo, em que me vi sozinho, não sabendo o que acontecera aos demais. Segundo o Senhor Provedor, meu querido amigo Alfredo Castanheira Pinto, terei nessa noite sido “o que fechou a despensa”. Creio que sim. Mas fui ter a casa sozinho. Porque é o tal sortilégio dos vinhos do Lombo (a aldeia em que “as pessoas do Lombe são com’ó velude!” – adágio certo para gente extraordinária!), o de não nos deixarem ficar só por um copo!

Esclareça-se que, continuando pelo caminho fora depois de passarmos pelo Alto do Lavôr e atravessando o rio Azibo pelas Poldras (as pedras alpondras que devem estar já fincadas no rio pelo menos desde os tempos de El-Rei D.Dinis, ou seja, há setecentos anos!) poderemos passar para os termos de Lagoa, onde, com  saudades também, recordo os copos de vinho fantásticos que se bebiam em casa do senhor Pato Vila, às vezes rápidos nas traseiras do balcão da sua loja comercial, e de Morais, aldeia sobre a qual o Visconde de Vila Maior referiu ser uma das que já em 1866 exportava 334 pipas de 636 litros, numa produção de 360, consumindo-se 26 localmente (média de cinco anos). Lombo, Peredo, Morais, Lagoa, Talhas, todas elas aldeias com encostas para os rios Azibo e/ou Sabor, defronte do planalto para Mogadouro, de Brunhoso, onde, no sítio da Foz do Ribeiro do Poio, escavações arqueológicas recentes demonstraram existir uma unidade romana de produção de vinho, de há dois mil anos, hoje submersa nas águas da magnífica albufeira!

Os vinhos da Quinta e do Casal do Lombo, que pertencem à Santa Casa da Misericórdia de Macedo de Cavaleiros, produzem-se perto dessa vinha do meu saudoso amigo João António Brás no Alto do Lavôr, e na Portela, no Prado, no Vale da Pedra, nas Chãs e no Vale das Vinhas, em que vicejam a Malvasia Fina, a Códega do Larinho, a Alvarinho, a Chardonnay, a Cabernet-Sauvignon, a Syrah, a Tinta Amarela, a Touriga Nacional, a Tinta Roriz, a Touriga Franca e a Moscatel. A par do hectare das vinhas velhas das Chãs, em que ocorre o field blend trasmontano quiçá desde o tempo do Conselheiro Sá Vargas (originalmente o dono do Casal do Lombo) e do seu contemporâneo Visconde de Villa Maior, no século XIX (field blends quantas vezes saboreados por todos nós, felizardos, com a posta à mirandesa, o cabrito ou o bacalhau, no Restaurante Saldanha, em Peredo). Essas vinhas todas, totalizando uma escassa meia dúzia preciosa de hectares, são banhadas por sol a jorros, por pingos de chuva fria, por neblinas e ventos que não obrigam a mais tratamentos químicos que os essenciais, e que produzem uma quantidade rara de garrafas. Em boa hora, Alfredo Castanheira Pinto, já neste século XXI, mandou providenciar uma nova adega, a funcionar desde 2003, responsável por dela saírem prémios, digo, vinhos, que têm merecido o bronze, a prata e o ouro nos Wine Master, na Comissão Vitivinícola Regional de Trás-os-Montes, no CA/Escanções de Portugal e no Wines of Portugal. Um árduo e meritório trabalho de gestão de Susana Viana e de Francisco Castanheira Pinto, sabiamente fazendo equipa com o enólogo Fernando Guerra e, ultimamente, com os da Winelords. Sabiamente, repito. Porque há aqui uma varinha de condão para se conseguir, em tão pequenas (por isso preciosas) quantidades produzidas de vinhos tranquilos, brancos e tintos (soberbos!) e espumante, a procura que os esgota: é que não há só a vontade e instinto em produzir. Há sabedoria. Daí o ter-se ido plantar aos Cortiços, aldeia que se situa paredes meias com o Romeu e Vale Pradinhos, nos terrenos da Estação e de Vale Pereiro, o bouquet de Tintas, Tourigas, Gouveio e Gewurztraminer que, nesta fronteira de xisto com granito e quartzitos, numa Terra Quente que nada deve ao Douro em microclima, permitem a pimenta e o colorido nas conversas sobre vinhos e conseguem a contradição de argumentos que só os grandes atingem.



Ainda por cima, porque nos Cortiços, que outrora deram vinhos que chegaram à Corte de D. Luís e de D. Carlos e que foram provados na República, in loco, na Casa Charula, numa recepção a Bernardino Machado, o chão teve a mesma dona, Margarida Pessanha, da família do Visconde das Arcas, a mesmíssima família dona do chão onde então se produziam os vinhos que Villa Maior começa por descrever “No concelho de Macedo existe uma pequena região vinhateira geralmente ignorada, onde se produzem vinhos de superior qualidade, que na opinião de homens muito competentes n’esta matéria, rivalisam com os melhores do Douro”. Seria quase inesgotável, se agora continuássemos para essa zona, a das Arcas e Nozelos e Vilarinho de Agrochão. Um dia o faremos, outra vez.

Hoje, o branco do Lombo já esteve no frigorífico e está aberto, o tinto já o desenrolhámos para respirar e vamos imediatamente fazer saltar a rolha da garrafa de espumante do Casal do Lombo, que a nossa querida visita já chegou – por isso tenho que ir! Como aperitivos, há presunto, queijos de cabra e mistura de ovelha, outros queijos da Queijaria Quinta Vila dos Reis, pão torrado, batatas fritas e azeitonas com alho, azeite e coentros: apareçam! Só aqui faz falta uma pessoa, habitual aos Sábados, com que, infelizmente, hoje já não contamos: o meu irmão Carlos!    

 

quinta-feira, 17 de março de 2022

Muito e bom marketing, para o futuro do vinho de Portugal

© Manuel Cardoso

 

Quer seja no curto prazo, quer seja no médio prazo, o futuro do vinho de Portugal dependerá do aumento da sua procura.

Que queremos dizer com futuro do vinho? Queremos dizer aumento do seu consumo, com aumento do seu valor. Não será compreensível de outro modo.  


Isto irá depender das técnicas vitivinícolas, das embalagens, do transporte, da eficiência de qualquer destes processos, da sustentabilidade económica das empresas e das regiões produtoras, das preferências do público consumidor? Dependerá disso tudo, no todo ou em parte. Mas sem aumento do valor do vinho, sem aumento do valor das uvas, o vinho não terá futuro.

Não há falta de oferta de vinho no mundo. Com oscilações de ano para ano, com vindimas diferentes, com origens nos mercados do novo mundo ou do velho mundo, a quantidade de vinho produzido não só não tenderá a diminuir, como, com alguma variação, poderá mesmo aumentar ao longo das próximas décadas, basta lembrar as novas regiões produtoras na Ásia, na América, até na Europa e, muito provavelmente e num muito curto prazo, no Norte de África. Não será, por isso, pela escassez, que o vinho poderá aumentar de valor. Mesmo com a actual perturbação séria da Guerra da Rússia na Ucrânia, as dificuldades dalguns circuitos de abastecimento serão contornadas e o mercado encontrará formas de recuperar (outra coisa será a questão do álcool e das aguardentes, com uma previsão dum aumento brutal de preços a curto prazo, se durável ou não, não sabemos).

O valor do vinho também não dependerá inteiramente (embora seja um factor importante) da qualidade, que se tem mantido numa ascenção apreciável, com padrões de exigência dificilmente imagináveis há meio século, e que, hoje, se encontra em marcas de gama de preço baixo a surpreender em concursos e a deixar atónitos alguns apreciadores exigentes. Embora, claro está, haja uma relação directa na qualidade e no preço já praticado, há, também, muitas excepções à regra. E não é difícil encontrar vinhos de preço médio com qualidade ao nível dos de preços mais altos (e vice-versa, dir-me-ão).

O imprevisível é sempre o factor mais certo de ocorrer e, por isso, já vejo o sorriso de alguns meus amigos, ao ler estas linhas, de que, “assim, é fácil: afirmar algo e o seu contrário é ter a probabilidade de saírem certos os vaticínios…” mas há o do início destas linhas, que é unívoco: o de que, o futuro do vinho de Portugal, dependerá do aumento da sua procura.

Tem-se feito muito e bom marketing, é inegável, e os números de exportações e vendas têm-no demonstrado. Há empresas de marketing a trabalhar bem, e muito. Mas terá que se fazer mais. Com um pensamento sempre subjacente: se, antigamente, com os meios que havia, foi possível fazer chegar a muitos destinos, mercados, lugares públicos e casas de pessoas, quer a imagem, quer a fama, quer as recomendações para se consumir o vinho português, com os meios de hoje tal tarefa deveria ser omnipresente e constante. Não me levem a mal, mas não resisto a deixar uma pergunta para reflexão: a publicidade ao vinho não estará a funcionar demasiado em circuito quase fechado e voltada para dentro do próprio sector? Não fazia sentido fazer uma grande abertura como fazem, aliás, algumas das marcas que já o perceberam e passaram a promover, nas suas campanhas, em maior escala e em locais e canais não habituais?

Um bem aumenta de valor, pela sua escassez perante a procura. Como não será provável que venha a haver escassez na oferta de vinho, quer nas gamas de qualidade mais alta quer nas outras, há uma maneira de criar a escassez necessária no mercado, para que aumente o seu valor: pelo aumento da procura. Que pode ser induzida.

Daí que o foco da fileira do vinho tenha de estar na criação deste aumento da procura. Com marketing. Marketing moderno e criativo, que capte novos consumidores e que faça com que os que o já são, tenham mais disponibilidade para pagar mais, por melhores vinhos. Correspondência com exigências do público? Sim. Mas não só. Criação, inovação, publicidade informativa e associação do vinho à história do nosso país, do mundo, da felicidade das pessoas.

Todos os anos, milhões de pessoas atingem a idade de poder beber responsavelmente. A maioria delas nunca provou vinho, nunca lhe foi feito um apelo para tal, nunca viu uma publicidade acerca da mais antiga bebida culta da civilização. Todos os anos há um novo público disponível para beber um copo. Nesse, está o grande potencial para aumento da procura. É ao ir ter com públicos novos que estamos a aumentar a base do consumo, que podemos aumentar a procura.

Mas não se pense só nos jovens, nem só nos turistas, nem só no estrangeiro. 
Pense-se em público de todas as idades, geografias, restaurantes e bares.
Pense-se em eventos, na praia, nas piscinas, nos festivais, nos pic-nics. 
Pense-se em todas as horas.
Pense-se fora da caixa. 
Pense-se fora da garrafa! Porque, para se valorizar o que está dentro da garrafa, há imenso a fazer fora dela! 

As imagens deste artigo são da revista Ilustração, propriedade da Livraria Bertrand, precisamente do último número publicado em 1939, tinha começado a II Grande Guerra na Europa. A revista suspendeu, com este número, a sua publicação, por causa das restrições do conflito. Está disponível na net, nos sites de hemeroteca.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Joaquim Manuel de Barros Cardoso e a nossa família do Douro - 1

© Manuel Cardoso

Fevereiro 2022

 

 


Queridos Mariana e filhotes, manos, sobrinhos e primos, ao escrever sobre este nosso antepassado, Joaquim Manuel de Barros Cardoso (Cotas, 14.12.1791-30.10.1848), faço-o com especiais motivos. Desde pequeno que me tinha habituado a olhar o quadro a óleo do seu retrato, pendurado com alguma ostentação mas também naturalidade na nossa sala de visitas da casa de Macedo, como alguém antigo – “é o seu trisavô, de Cotas, que casou com uma francesa” – que mereceria respeito e que teria tido uma vida interessante – “combateu nas lutas liberais” – mas do qual pouco ou nada eu sabia porque, facto que já mais vezes assinalei, o meu Pai morreu inesperadamente e antes de eu entrar na fase de me poderem ser confidenciadas as histórias de família com mais profundidade. Também soube, pela minha Mãe, que ele e um seu trisavô militar, o General Jacques Filipe Nogueira Mimoso, dos nossos antepassados algarvios, teriam estado em certa fase em campos contrários. Mas tudo vago, sem cronologia nem geografia, sem certezas, perdido na noite dos tempos. Ainda por cima, quando eu fazia alguma pergunta mais concreta, levava com a resposta repetidíssima “e tu para que queres saber isso?” que tanto podia esconder ignorância como o ocultar inconveniências tidas como tal à luz dos preconceitos familiares. O tempo veio a fazer-me ciente de que eram ambas. Nessa altura, ainda pela mão do Pai, eu tinha ido ao arquivo do Registo Civil consultar livros antigos sobre os antepassados de Macedo e pudera ler o assento de nascimento do trisavô Morgado de Macedo, o Bernardino José d’Oliveira, casado com a Josefa Rosa Pereira de Miranda. Aí despertou o meu interesse pela genealogia – que não mais desapareceu toda a vida! – e pela colecção de factos e anedotas familiares. Foi relativamente fácil desenhar um esquema sumário e primitivo com os Costa Borges Oliveira, os Sousa, os Falcões, os Pereiras. Contudo, saber coisas sobre “os de Cotas”, os Cardoso – que era o que mais me suscitava curiosidade! – era algo quase impossível de conseguir, tanto mais que nesse tempo nem havia as comunicações que há hoje, nem a facilidade de obter coisas com cliques, nem a possibilidade de ir ao Douro conhecer os locais de onde tinham vindo o Avô Amadeu e a Tia Eugénia, duas personalidades algo escandalosas para a família e demais parentela de Macedo (dele me ocupei n’ Um Tiro na Bruma, tentando ser-lhe fiel, e da Tia Eugénia basta dizer por agora que nessa viragem do século XIX para o XX, tinha estudado Farmácia na Academia Politécnica do Porto, o que fazia a uma rapariga ser olhada com desconfiança pela sociedade, e tinha sido a primeira diplomada, por ter estudos tinha vindo dar aulas de instrução primária para Vale da Porca e mais tarde casara com um homem uma dúzia de anos mais velho, o Tio José Caetano Ferreira Pinto dos Reis, abrindo a farmácia em Macedo e à porta da qual se sentava a apanhar sol e a fumar o seu cigarro – está-se a ver, anos 10, a reprovação da mentalidade arcaica e atávica daqui do pequeno burgo!). Ambos, Amadeu e Eugénia, eram filhos dum Padre, o bisavô José Étienne de Barros Cardoso (Cotas, 30.10.1846, Porto, 6.06.1905), filho mais novo do Joaquim Manuel. Mexer, por isso, nessas poeirentas memórias de família que tão quietas estavam em étagères escondidos seria o mesmo que levantar nuvens de pimenta que fariam espirrar e chorar. Havia muitas coisas, no entanto, que na casa de Macedo remetiam para o Joaquim Manuel: desde logo os quadros a óleo, pintados em Paris em 1834, o dele e o de sua filha Aspazie Clorinde (Toulouse, 12.07.1830, Cotas, 8.09.1886, solteira, sg), retratada com um colar que ainda me lembro de a Pilar usar, embora sem o crucifixo[1]; um mapa de parede do Douro, dos do Barão de Forrester; um relógio império em mármore e bronze que trabalhava dentro duma redoma de vidro e dava as horas com “plim”; uns quadros românticos com gravuras coloridas e molduras boas, douradas, sobre o amor, o desejo e o prazer, de há duzentos anos; bacias e jarros de faiança e porcelanas de Sèvres, umas peças de Limoges, serviços de chá já desirmanados; um florete de aparato com punho de prata com que às vezes brinquei no quintal como se fosse um dos três mosqueteiros; um óculo inglês que era óptimo para ver ao longe; fotografias, algumas com anotações no verso, felizmente, por exemplo uma do Victor Napoleão Cardoso (n. Cotas, 1.12.1855), mandada do rio Grande do Sul, para onde emigrara em 1869 e de quem descendem muitos primos Cardoso brasileiros e uruguaios; ignoro que mais bugigangas, mais seriam com certeza, e, ainda, livros: as “Lettres de Voltaire”, gramáticas e dicionários… Hoje penso que o Joaquim Manuel deve ter deixado um grande espólio escrito pelo seu punho e uma biblioteca razoável cujo destino não sei. A Macedo não chegou a não ser meia dúzia de volumes. Manuscritos, nada. E para tal deve ter concorrido, como se verá a seu tempo, o facto de, quando morreu, apenas com 56 anos, em Cotas, o seu filho José Étienne ter só 2 anos (o seu pai morreu neste seu aniversário) e, portanto, os seus bens mais pessoais deverão ter levado caminho para o filho mais velho, Joaquim Francisco Adolfo de Barros Cardoso (Escrivão da Comarca de Vila Real, n. Toulouse, 24.08.1832, Cotas, 4.01.1910), já com 16 anos, que mais tarde usou o nome de Joaquim Manuel de Barros Cardoso Falcão (vindo a deixar cair o Falcão, como explicaremos), e que, tendo este tido filhos de pelo menos quatro mulheres mas não tendo casado com nenhuma, facilmente tal terá contribuído para que algumas coisas pessoais tenham levado descaminho. E facilmente daqui se compreende também que a existência de todos esses primos, os “de Cotas”, como em Macedo se dizia, apesar de Joaquim Manuel de Barros Cardoso Falcão ter vivido uma boa parte da sua vida em Vilarinho de São Romão, que hoje por esse mundo fora serão Sousa Botelho, Campos da Costa, Cardoso, Cardoso Calçada, Cardoso Medeiros, Cardoso Reis… , terão feito com que uma cortina de silêncio e de distanciamento os tenha ocultado do meu raio de conhecimento e investigação durante quase toda a vida! De facto, só recentemente, há uma década, consultando os inventários por morte desses Joaquim Manuel, pai e filho, no Arquivo Distrital de Vila Real, me pude dar conta da extensão do problema que teria levado a que a querida Avó Micas, tarde demais, tenha visto com tanto desgosto o seu casamento com o Avô Amadeu. Não terá sido só o ser filho de Padre, que o soube antes do dia de darem o nó, nem a sua vida aventurosa mas o facto, que não é de somenos, de haver uma necessidade permanente de cortar amarras ou nem as atirar, a uma boa parte dessa sua família do Douro. Que pena tenho de os não conhecer a todos pessoalmente, aos descendentes que nossos primos são! O relacionamento dos de Macedo manteve-se com alguns dos mais próximos, descendentes da Tia Eugénia, com um hiato depois da morte do meu Pai, e a quem pude visitar com os Pais da Mariana, meus futuros sogros, no Verão de 1984, quando, a partir da Pousada Barão de Forrester em Alijó, um dos locais onde ficáramos num raid de investigação genealógica que nos levara a vários pontos do País, fizemos uma incursão a Cotas. Nessa tarde conheci a prima Maria Natália e o marido, António Campos da Costa, que descobrimos ser primo também, ele dos descendentes de Vilarinho de São Romão. Mostraram-nos a casa , “a casa das francesas”, conversámos, indicaram-nos um quadro a óleo, da mesma série dos nossos de Macedo, moldura igual, com o retrato do Joaquim Francisco Adolfo em menino. Na igreja explicaram-nos o sítio onde estão enterrados o Joaquim Manuel e a sua mulher, Adélaïde Malenfant, no adro, do lado esquerdo de quem entra pela porta lateral. Numa consulta aos livros de assentos, que mais tarde o meu sogro e eu fizemos na sacristia, pudemos tomar apontamentos essenciais para o que se veio a descobrir e encontrámos, guardada no meio de papelada, uma caixinha ricamente pintada com as armas dos Barros na tampa e um escudo com as cinco chagas no interior. O Pai da Mariana, tendo nós sido mutuamente compagnons de route de investigação genealógica e heráldica, repetiu-me inúmeras vezes que “este seu ramo da família tem de estar ligado ao vinho do porto”, e tinha toda a razão. Vim a poder comprová-lo – e quanto! Com a sua morte, verificada muito cedo na Páscoa de 1993, as investigações ficaram interrompidas durante anos e só muito depois as retomei, numa época já de internet e recursos imensos comparados com o esforço que tivéramos de fazer nessa década de oitenta. A imagem que hoje é possível do trisavô Joaquim Manuel de Barros Cardoso é muito mais completa e nítida e deixa-nos estupefactos o quanto desconhecemos durante tanto tempo, o quanto nos terá sido ocultado pelas razões já expostas: nascido no século XVIII numa família com terras no Douro, produção de vinho de Feitoria e outros bens, sendo o mais novo de pelo menos quatro irmãos, criado, tal como estes, com educação e cultura, ficou órfão de pai aos 18 anos, estudou gramática, habilitou-se a Familiar do Santo Ofício, acompanhou a mãe (que deve ter sido uma senhora de fibra) nos negócios, foi feito Cavaleiro da Ordem de Cristo mas quando surgem os alinhamentos nas novas e velhas correntes políticas inscreve-se nas milícias com o liberalismo na cabeça, combate e é ferido em Coruche da Beira e acompanha a primeira tentativa liberal no Porto mas, doente, consegue embarcar e fugir a bordo do navio inglês Belfast com o então ainda Marquês de Palmela e restante comitiva, desembarcando em Plymouth e seguindo posteriormente para França, onde casa com uma rapariga dezassete anos mais nova do que ele, Marie Adélaïde Malenfant (Rambuillet, 23.02.1808, Cotas, 18.12.1882), tem os primeiros dois filhos em França, residindo em Saint-Étienne de Toulouse, chegando-lhe a notícia do assassinato de sua mãe pelos Miguelistas e do incêndio da sua casa e armazéns no Douro, dirigindo daí uma carta à Rainha D. Maria II a pedir meios de forma pungente porque o seu cabedal se tinha ido “na quebra do Van-Zeller” e nas despesas da sua emigração, regressando depois a Cotas onde reconstrói tudo o que pôde, refaz a sua produção de vinhos, se relaciona com o Barão de Forrester, escreve cartas, artigos e pelo menos um opúsculo e é eleito Presidente da Câmara de Favaios, cargo que desempenha até à sua morte precoce, tendo tido entretanto mais quatro filhos de sua mulher, já cá em Portugal. Numerosas publicações sobre vinhos e sobre o Barão de Forrester se lhe referem. Continuo a juntar materiais sobre este notável antepassado e creio bem que a Torre do Tombo ainda guarda alguns dados importantes que ainda não descobri. Mas, chegados aqui, acho que já é interessante dar a conhecer esta aventura no nosso passado familiar. Por isso, queridos filhos, sobrinhos e primos, estão a ver que especiais motivos há para escrever sobre Joaquim Manuel de Barros Cardoso e a sua família ascendente e descendente. Não por prosápia vã ou glória alheia ou snobismo, porque, como uma vez disse Paulo Portas e repetiu aquando da apresentação d’ Um Tiro na Bruma em Lisboa, o nascimento não se escolhe e na vida o que conta é o que se escolhe, mas para sentimento de satisfação íntima de que é de vidas reais como estas que são escritas as sagas familiares de grandes romances e filmes. A nossa dava para isso, aliás, é um exemplo disso. E lhe pertencemos. Conseguiram ler de um fôlego esta introdução num parágrafo propositadamente único? Então apertem os cintos porque a viagem, e que viagem, ainda só começou! Até breve!               

Este post segue em: https://adriveinmycountry.blogspot.com/2022/05/joaquim-manuel-de-barros-cardoso-2-os.html   

[1] Estes dois quadros a óleo estavam em estado algo decrépito na tela e o Pai da Mariana ofereceu-nos como presente de casamento uma cópia de cada um para nós, executada pelo José Bénard Guedes e que desde então mantemos na nossa sala de estar, na que o foi em Macedo e na de Latães, já neste século. Os originais regressaram a Macedo onde estão, reentelados e restaurados respeitando o craquelé. A imagem acima é do original.  

sábado, 11 de dezembro de 2021

MIRANDA do DOURO e MOGADOURO no Castelo de BRAGANÇA

Que o castelo de Bragança tenha história, lendas antigas e ainda muito por descobrir nos seus muros, quintais e recônditos, é coisa esperada e de que todos nós estamos cientes. Que é um dos sítios menos conhecidos e mais extraordinários de Portugal, também alguns de nós o sabemos, sendo que a sua justa fama esteja apagada por um trabalho de sistemático silêncio de séculos. Mas que na sua cidadela, ontem, tenha decorrido um evento vínico singular e exclusivo, a trazer Miranda do Douro e Mogadouro até Bragança, e para o qual tive o excepcional privilégio de ser convidado, é coisa inesperada, que não pode passar em claro, sem umas linhas. Para os que participámos foram umas horas descontraídas e cultas, em que provámos vinhos, cozinha de fusão e mérito, e em que à mesa conversámos de coisas sérias e coisas leves, historietas e trocadilhos, e cumprimos de forma alegre e em companhia o lançamento do Projeto Belfo da Arribas Wine Company.



A manhã estava fria mas o sol emoldurado pelas ameias da muralha deixou-nos estar ali perfeitamente, no Largo do Duque D. Afonso, Rua Rainha Dona Amélia, na esplanada do Contradição (o Duque para os de Bragança), enquanto dentro se faziam os preparativos. Frederico Machado e Ricardo Alves, donos e autores do projecto, António Picotês, seu compagnon de route, William Wouters, sommelier em Óis-do-Bairro, João Oliveira, da All Comunicação, o Emanuel e o Luís, da AEPGA. Quando cheguei, o Frederico segurava em algo invejável: uma caixa de vinhos da Filipa Pato e do William. Cumprimentos e apresentações, entrámos.

António e Óscar Geadas de anfitriões, acabámos por ficar instalados na mesa da entrada onde logo apareceram copos com dois dedos de Belfo, vinho de que já falei num artigo https://www.agroportal.pt/das-arribas-do-rio-douro-manuel-cardoso/ , cestinhos de pão (farinha de trigo barbela do Planalto Mirandês, especial como conduto do mesmo projeto) e bola de carne, tacinhas de faiança com azeite novo de santulhana, da Arvólea de Macedo do Mato. Num flash, a Diana Baltazar gravou um vídeo para o Viver Aqui da Porto Canal e que está online. E ficámos depois nós os oito mais os nossos guias e autores do repasto, intérpretes do que se ia passando: croquete de rabo de boi com puré de maçã granny smith de Carrazeda e mostarda savora; uma taça mágica que continha alheira grelhada e pelada, pickle de maçã, croutons de trigo (outra vez barbela), batata palha-frita, gema inteira de ovo a presidir… e que, uma vez misturada, se trincava em garfadas que apeteciam rapar até ao fundo!; grão de bico com salpicão e samos com umas lascas de bacalhau de fazer esquecer o que já tínhamos provado; lombelo de porco bísaro em pequenas fatias e que era dispensável porque o arroz em que assentava era por si um superlativo: carolino do Pepe, José Mota Capitão, da Herdade do Portocarro, cozido com cogumelos silvestres de época, cantarelos, boletus, lactários… que arroz! Nesta fase já tínhamos quase tantos copos em cima da mesa como na do Jacinto no 202, acrescentados num ritual explicado e cheio de observações pelo Frederico e pelo Ricardo, sempre com o António e o Óscar a acrescentar mais curiosidades, o António Picotês também, João Oliveira a tomar notas, Emanuel a explicar o que faziam na AEPGA e a tirar fotos, William e eu a conversarmos sobre a excelência de Portugal! Garrafas várias foram fazendo história: o Saroto branco, o Saroto rosé (autêntico vinho de lavrador, 12%, uma pena que só tenham sido feitas 1200 garrafas!), o Manicómio e o Manicómio G, o Raiola tinto… com um denominador comum a todos estes vinhos: uvas de vinhas antigas das encostas do Douro Internacional da freguesia de Bemposta, pisa a pé, intervenção mínima, leveduras indígenas, manipulações restritas “escola do Dirk”, álcool abaixo de 13% o que, para quem sabe, aumenta a perigosidade do vinho e de que maneira 😊 😊 😊!!! O Manicómio tem a particularidade de em cada ano ser feito com cumplicidades diferentes: com o Dirk o de 2019, o João Tavares de Pina o de 2020, Carmelo Peña Santana o de 2021. E o Manicómio G é feito à parte, estagiado numa barrica escolhida a dedo, G de Geadas. Nos doces voltámos ao Belfo, pois claro: uvas vindas de Peredo de Bemposta duma vinha em que há granito e calcite, mistura rara, field blend de muitas castas mas em que a predominante é a posto-branco ou barranquesa… para eruditos a discussão de sinonímias e encaixe classificativo!, e voltámos ao Belfo muito bem casado: pera fusionada em moscatel com gelado de café, brioche de laranja com creme de queijo,… chocolate… gelado de côco… … … Ninguém estava com vontade de vir embora e à porta cá fora, já nas despedidas e fotos, agradecimentos também à Cíntia, ao Ruben e ao Igor que mantiveram a nossa mesa em ordem com grande profissionalismo.

Para mais sobre o projecto pode e deve ir-se ao site www.arribaswine.com mas não posso terminar este post sem dar um outro link americano porque estão lá referências e um mapa eloquente https://thesourceimports.com/newsletter-december-2021/?fbclid=IwAR2xsQYPENKc-VDH14BJ-XuErIvJCpZ8RxxCglTxts64ztbvlzTCV3KGP3o que foram publicados este mês. Vale muito a pena lê-lo e interpretá-lo com detalhe, até porque foi escrito por quem nos está a ver de longe e não distingue as diferenças entre nós e que tantas vezes nos tolhem por estarmos próximos – e não deviam!

Escrever este post é um exercício de gratidão mas não só. A especialidade dos vinhos e do almoço já o mereceriam com justiça, mas há uma perspectiva mais importante, a meu ver, que tem a ver com todos nós. É que o realizar-se este evento significa que há esperança no desenvolvimento e na permanência de gente nova e empresas novas no interior. Cultivar vinhas nas Arribas do Douro, no Planalto Mirandês, em Montalegre, na Terra Quente ou seja onde for nestas bandas tão longe do mar, manter viva a agricultura com as Arribas Wine Company, com a Menina d’Uva, a Wine Indigenus, com todas as empresas de nome individual ou colectivo que têm surgido nas nossas aldeias, vilas e cidades de interior, é muito mais do que um negócio de vinho: é a sustentabilidade económica da região a afirmar-se, base fundamental para que a cultural, social e ambiental se possam afirmar e manter também. O próprio facto de ter decorrido em Bragança e não em Lisboa ou no Porto também é importante. Por tudo isso, na tarde de ontem, quando me dirigi à minha usada carrinha estacionada ao pé da igreja de Santa Maria no castelo, ao olhar para a torre de menagem (soberba e magnífica como nenhuma outra em Portugal!) pensei por momentos na transcendente importância dos copos que acabáramos de beber. Que também por ali já se bebiam no tempo dos Bragançãos, truculentos, feros e indómitos, teimosos em manter-se na sua terra! Ao arrancar e depois fazer a A4 (também lindíssima como nenhuma outra em Portugal!) senti-me sortudo e esperançoso. Frederico e Ricardo, Muito obrigado!!!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

A Alma dos Vinhos de LISBOA The Soul of Wines

Há tempos, em Setembro, comemorando o aniversário da Mãe da Mariana, com missa e cocktail, no Rodízio, o meu cunhado João Ary e eu estivemos a conversar por largos minutos sob uma ramada perfumada de uvas tintas, castelão algumas, talvez moscatel pelo meio de toda a folhagem, anoitecia com luz atlântica. No dia seguinte, a Mariana e eu deixámos o sítio partindo para o nosso destino de Trás-os-Montes mas sem rota prévia, confiados no nosso instinto de aventura e sabor das estradas (sim, as estradas têm sabores, cheiros e cores, despertam aventuras e vontades). Parámos em Mafra, parámos aqui e ali, parámos em frente ao mar na Praia do Ouro a comer croquetes e bifanas e a beber um copo. Depois fomos para o interior, a  caminho das nossas serras, olhos com vontade de voltar um dia ao Oeste de Portugal, por onde o Favónio sopra abundâncias e pólenes, enchendo as velas dos moinhos e rodando as pás das eólicas, ondulando o mar até muito para cá da orla, fazendo-o galgar o Montejunto e Sintra para lá do Tejo. Esse Setembro passou, já foi há três meses. Só que o mês de Setembro é um mês de sortilégio, vindimas e âncoras, não tivesse sido ele o sétimo do ano clássico, remetido para a nona posição (9, número a reter a quem ler o livro a que nos vamos referir) por decisão de imperadores, estando na letra de canções, sous la pluie ou a outra de Bécaud, inesquecível e intemporal… e, por isso, reapareceu como um boomerang saído da bagageira dum carro, há meia dúzia de dias, entregue que me foi pelo Francisco Toscano Rico: quase três quilos de ciência, história, arte, flavour, terroir e beleza, tudo em forma de livro, comestível e muito bebível, trezentas e trinta e cinco páginas em pés de areia, barro, calcário, aluviões e húmus, escritas – que digo eu?! – cantadas em coro de vários naipes mas em que só por si cada cantor, solista afinado, tem a maestria de o fazer a capela porque todos eles afinaram pelo tom fantástico dado pela A Alma dos Vinhos de Lisboa. [1]



Para se ler apropriadamente, tem de se abrir de início uma garrafa de vinho leve, pelo menos de Colares nas partes mais eruditas, apurando num copo o sentido das frases, em mais outro a qualidade das fotografias e ilustrações, noutro ainda – podemos já ir num Bucelas – para a surpresa do que se aprende, conduzidos pelo António Ventura, reconduzidos pelo Vasco d’Avillez no emocionante se non è vero, è ben trovato, a justificar um Premium duma das quintas ou herdades de Arruda, de Alenquer, de Ourém... Já com esse lastro e antes de irmos às aguardentes da Lourinhã, há que espairecer um pouco pelas praias, pelas salas de museus e pontos de interesse, dançar em arraiais e subir e descer as ruas de Lisboa, inspirar ar e luz e deixar actuar a absorção dos doces e receitas – uma completa folie! – para nos capacitar a não deixarmos nenhuma página por ver, digo, nenhuma DO por provar! Sim, que se é já uma verdade indesmentível, a de que em Portugal pode haver todo o Mundo em vinhos, na região de Lisboa, na alma dos vinhos da Região de Lisboa, há quase toda a História do vinho de Portugal! Não sou eu quem o diz, são as testemunhas convocadas, além dos que já mencionei: José Bento dos Santos, Patrícia Serrado, João Valente, João Pedro Rato, Ricardo Bravo, Ricardo Junqueira, André Teodoro, Andrea Ebert, Sara Quaresma Capitão, Florbela Baptista, António Alexandre, João Rodrigues, João Simões, José Avillez, Miguel Laffan, Paulo Morais, Pedro Mendes, Sancho Esteves, Tiago Velez.

O livro é um monumento esteticamente bem conseguido e testemunho justo da região: setenta produtores de vinho dão pretexto e vontade para umas centenas de copos ao longo do tempo que se quiser e pelo espaço que se preferir. E podemos revisitar todos, não nos ficarmos por uma primeira vez, já que o tema pode ser glosado em rimas várias e interpretado em tocata e fuga, sinfonicamente ou em música ligeira! Para se ser fiel à matéria e argumentar devidamente, teríamos de escrever um livro a propósito deste livro. Mais vale gastar o tempo a sorvê-lo! Seria tão bom que um dia a Família e Amigos pudessem experimentar dos vinhos de Lisboa em série e em festa, explicados e bebidos… pelo que seria interessante que a minha Prima Beni, na Picanceira, se lembrasse de organizar uma tremenda prova dançante, memorável mas que, ao mesmo tempo, nos fizesse esquecer, pelo menos por um instante, estes tempos complicados que vivemos! Não é por acaso que tal lembrança ocorre: é que o subtítulo deste tomo de enoturismo da Região de Lisboa exprime elegantemente que Entre o mar e as serras há um território vinhateiro a descobrir, a provar e a ficar.

Meu caro Francisco Toscano Rico, bem haja por nos recordar, quase nas festas de Dezembro e de Ano Novo, que a surpresa, a boa surpresa, pode sempre estar onde menos a suspeitamos! Parabéns!                        



[1] A Alma dos Vinhos de Lisboa The Soul of Wines, gestor de projecto André Teodoro e coordenação de Patrícia Serrado, textos de Francisco Toscano Rico, António Ventura, João Valente, João Bento dos Santos, Patrícia Serrado e Vasco d’Avillez, edição da CVR Lisboa, Julho 2021, ISBN 978-989-33-2080-8. 

terça-feira, 23 de novembro de 2021

AZEITE 3. Visitas aos lagares

Passar nos lagares, nessas noites frias ou de invernada que encharcavam de alpechim o empedrado e faziam poças com tonalidades à luz ténue da lâmpada da gordurosa e manchada porta de entrada, era bem mais do que um ritual de cumprimentos: dentro, estava-se num conforto húmido e quente, cheiro agradável a azeitona, azeite e lume. Logo à direita, a caldeira em que ardia baga continuamente e se aquecia a água que circulava pelas batedeiras e demais elementos, o barulho e o movimento encadeado de todos em grande azáfama, em contraste com a noite de fora, eram um pulsar de vida na estação mais fria do ano e às horas mais mortas da noite. Esses lagares, ainda de prensas, eram uma evolução tecnológica que já vinha do século XIX, accionados, primeiro, a vapor, depois, a diesel, finalmente, a electricidade, com um motor que gerava uma força rotativa comunicada a um veio de transmissão por uma correia e que deste, por mais outras, fazia funcionar todos os mecanismos que lavavam a azeitona, a moíam, batiam a massa e a espalhavam nos capachos, moviam os êmbolos da prensa de Pascal, bombavam os óleos e águas para o decantador e as centrífugas de onde, finalmente, escorria azeite para o depósito da balança. Nalguns, um dínamo, que também tomava a força duma correia a que se aplicava um giz para que o atrito se mantivesse, gerava electricidade que produzia a luz em grandes lâmpadas de incandescência, acesas sob reflectores de esmalte. Que os homens precisavam delas: para iluminar as pazadas de azeitona tiradas das tulhas e despejadas no tanque de as lavar, no sem-fim ou directamente na tina das galgas; para vigiar as massas e as espalhar nos capachos, sobrepor estes, levá-los de carrinho para as prensas onde ficavam a ser espremidos e a escorrer água e azeite. Quando chegava ao fim o aperto da pilha de capachos, e deles já não saía gota, o grande êmbolo descia, o carrinho era levado para ao pé duma porta e, um a um, como se fosse um separador de bolachas, um rapaz pegava, sacudia, com uma espátula soltava a baga para que o capacho voltasse a ir para mais uma pilha a que se punha a massa já batida. Era um movimento contínuo que durava todo o tempo, ininterrupto, apenas quebrado por uma avaria, por vezes mínima mas que fazia parar todo o lagar, suscitando urgência e, por isso, numa parede, em tábuas desenhadas com os seus perfis, as ferramentas de manutenções e consertos estavam bem visíveis como se fossem armas preparadas para acorrer a uma guerra. À esquerda da entrada, num compartimento com uma janela quadriculada de vidros manchados, uma escrivaninha de pé tinha um livro, blocos de guias e papéis, calendário na parede, untuoso e com rabiscos e notas, de cuja porta aberta se avistava, permanentemente, a balança do azeite. Ao lado desta, numa ardósia, riscos e traços deixavam contar ao longe a cadência dos quilos dourados e verdes passados ao longo da jornada. Durante o dia era frequente cirandarem por ali também os donos das azeitonas para azeite à maquia, tendo-as pesado na balança da entrada, ajudado a descarregar as sacas nas tulhas, deitando o olho como se fossem capazes, por misteriosa sagacidade, de impedir as flutuações de rendimento que todo o percurso entre as duas balanças, a das azeitonas e a do azeite, poderia permitir ao lagareiro menos escrupuloso ganhar mais do que a percentagem apalavrada. Que ganhava. Ou por uma fuga que ia parar aos infernos e cujos olhos de azeite seriam depois recolhidos, ou por uma partida de massa que ficara travada no meio da distração de reparar um desarranjo duma correia partida, ou pela água que correra quente demais e no decantador se tinham trocado no abrir das torneiras ou, grosseiramente, por uma saca de azeitona que ficara perdida no meio do monte de serapilheiras. Mas tudo de boa-fé. Porque ali no canto, à direita da porta de entrada, junto à caldeira onde ardia baga continuamente, torrava-se o pão para experimentar o azeite novo cujas qualidades se não poupavam a ser repetidas ao dono das azeitonas, comia-se em lascas ou assava-se o bacalhau, cozia-se o polvo, as batatas, a couve, regados duma almotolia de lata e decorados com muito alho, em pratos de esmalte, canecas de asa com vinho também novo, copos baços com aguardente que, naquela atmosfera, parecia nem ter álcool.

Muitos destes lagares têm-se modernizado, outros fecharam, a maioria evoluiu para lagares de ciclo contínuo. Quase todos eles com uma falha enorme: não têm um local, adequado aos tempos de hoje, cumprindo haccp e demais normas exigíveis, para que os visitantes possam disfrutar de provas de azeite como quem vai a uma adega disfrutar provas de mosto, possam adquirir conhecimento, possam apreciar e dar o devido valor a uma das mais antigas e tradicionais agro-indústrias de Portugal. Um local em que se possa, numa deslocação de fim de semana ou numa visita de trabalho, trincar uma inesquecível torrada com azeite novo!  

Sem dúvida alguma que uma das melhores torradas que comi na vida já há umas boas três décadas ou mais – que saudades e vontade de a repetir, mesmo que também repetisse ficar com uma das botas encharcadas por não termos visto bem a valeta, ao entrarmos! – foi uma de centeio, com azeite cru e alho, com uma lasca desfiada de bacalhau seco, com vinho do da Mina tirado dum garrafão, rescendente e escorregadio, num anoitecer frio e de vento agreste que batia muito naquele lagar de Castelãos, nesse ano trazido por conta do nosso amigo António Vila Franca!